segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Criacionistas destruíram a importância do experimento de Lenski





(Essa post é o roteiro desse vídeo lá no Canal Coelho Pré-Cambriano)

No dia 4 de Fevereiro de 2014 aconteceu um debate no Creation Museum, Kentucky, entre Bill Nye (um engenheiro mecânico e divulgador cientifico, conhecido como Bill Nye The Science Guy) e Ken Ham, fundador da Answer in Genesis e bacharel em ciências aplicadas com ênfase em biologia ambiental. O tema do debate era o seguinte: A Criação é um modelo viável para as origens? O debate pode ser resumido como sendo o confronto entre um evolucionista e um criacionista da Terra Jovem.

O Debate foi rolando e num certo momento Ken Ham entrou no assunto do experimento de evolução em longo prazo com a bactéria E. coli, conduzido desde 1988 num laboratório da universidade de Michigan liderado por Richard Lenski.

Em resumo, lá em 1988, Richard Lenski pegou uma colônia de E. coli e usou ela como ancestral  de 12 linhagens quase idênticas, que crescem em um meio contendo glicose e citrato, mas que, num ambiente aeróbio, só usam glicose como fonte de alimento, não sendo capaz de usar citrato nesse meio. Desde então, estas 12 linhagens têm evoluído em laboratório separadamente. Isso bem resumido. Não quero entrar em detalhes aqui, pra não prolongar demais o post. Vou deixar link na descrição de um trecho do livro O Maior Espetáculo da Terra, onde Richard Dawkins explica o experimento detalhadamente, comentando inclusive os resultados disponíveis naquela época.

Acontece que, em uma dessas 12 linhagens, evoluiu a capacidade de crescer e triunfar utilizando citrato em condições aeróbias, algo que a cepa ancestral não era capaz de realizar. Descobriu-se que a evolução dessa capacidade se deu em três etapas: primeiro, ocorreram mutações que não tinham efeito nenhum sobre a capacidade de crescer utilizando  citrato, mas permitiram que, quanto outras mutações específicas ocorressem, o uso de citrato fosse minimamente eficiente. Então, essas primeiras mutações são como potencializadoras de mutações que vieram a ocorrer posteriormente.

A mutação que permitiu o uso de citrato envolveu a duplicação de um segmento de DNA contendo um gene que codifica uma proteína transportadora de citrato para dentro da célula. Em condições aeróbicas, normalmente um "interruptor genético" garante que esse gene fique desligado. Mas, devido ao modo como ocorreu a duplicação, outro "interruptor" fez com que esse gene fosse ligado, a proteína transportadora passou a ser produzida e a exercer sua função, que é a de importar citrato do meio externo para o interior da célula.

O terceiro passo foi o refinamento do uso de citrato. Mutações adicionais, essencialmente mais duplicações daquele segmento de DNA, aumentaram os níveis da proteína transportadora de citrato, resultando numa vantagem para as bactérias que possuíam essas mutações, pois mais citrato poderia ser incorporado e usado como fonte de energia.

Esse é um exemplo fantástico de evolução envolvendo várias mutações consecutivas, nem todas elas tendo um efeito adaptativo direto. Esse experimento, que segue sendo performado, mesmo depois de 30 anos, tem desdobramentos sobre a evolução da vida aqui na terra e no universo, mas isso é assunto para outro post. Vamos voltar ao debate. O que os criacionistas tem a dizer sobre o experimento de Lenski?

No debate, Ken Ham mostrou um vídeo de um microbiologista criacionista comentando o experimento de Lenski. Veja o que ele diz aqui.

A crítica dos criacionistas se resume, então, a dizer que “não houve evolução de informação genética nova”. Eu não vou nem entrar na questão do que seria exatamente informação genética. Mas vamos nos perguntar: essa crítica é válida?

Respondendo a esse tipo de crítica, Zachary Blount e Richard Lenski disseram o seguinte:

A alegação de que "nenhuma nova informação genética evoluiu" é baseada no fato de que as bactérias adquiriram essa nova habilidade reorganizando os elementos genéticos estruturais e regulatórios existentes. Mas é como dizer que um novo livro - digamos, A Origem das Espécies de Darwin, quando apareceu pela primeira vez em 1859 - não contém novas informações, porque o texto tem as mesmas letras e palavras antigas encontradas em outros livros.

Em um contexto evolutivo, um genoma codifica não apenas proteínas e padrões de expressão, mas informações sobre os ambientes em que os ancestrais de um organismo viveram e como sobreviver e se reproduzir nesses ambientes, tendo proteínas úteis, expressando-as em condições apropriadas (mas não em outras), e assim por diante. Portanto, quando a seleção natural - isto é, sobrevivência e reprodução diferenciais - favorece bactérias cujos genomas têm mutações que lhes permitem crescer com citrato, essas mutações certamente fornecem informações novas e úteis para as bactérias.

É assim que a evolução funciona - não é como se novos genes e funções aparecessem do nada. Como escreveu o geneticista bacteriano e laureado com o Nobel, François Jacob (Science, 1977): “A seleção natural não funciona como um engenheiro. Funciona como um latoeiro - um latoeiro que não sabe exatamente o que ele vai produzir, mas usa o que encontra ao seu redor, sejam pedaços de barbante, fragmentos de madeira ou papelão velho; em resumo, funciona como um latoeiro que usa tudo à sua disposição para produzir algum tipo de objeto viável”.

Dizer que não há novas informações genéticas quando uma nova função evolui (ou mesmo quando uma função existente melhora) é um red herring que é promulgado pelos oponentes da ciência evolutiva.

"Red herring" significa algo que induz a erro ou distrai o foco de uma questão relevante.

A evolução não tem que necessariamente que criar genes do nada para resolver toda e qualquer situação. Frequentemente, a evolução trabalha por meio da bricolagem, modificando o que já tem, ou tentando novas combinações, novos circuitos genéticos. Os criacionistas precisam entender isso. Muitos entendem, só não querem aceitar.

Para saber mais:

Descrição do experimento de Lenski:

DAWKINS, Richard. O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução. Companhia das Letras, 2009. Descrição e alguns resultados do experimento: https://drive.google.com/open?id=161oGKphcR3lT01nERFhKiV4pc6bLsZQ2

Sobre os resultados do experimento:

Blount, Z.D., Borland, C.Z. and Lenski, R.E. (2008) Historical contingency and the evolution of a key innovation in an experimental population of Escherichia coli. Proceedings of the National Academy of Sciences 105:7899-7906.

Blount, Z.D., Barrick, J.E., Davidson, C.J. and Lenski, R.E. (2012) Genomic analysis of a key innovation in an experimental Escherichia coli population. Nature 489:513-518.

QUANDT, Erik M. et al. Fine-tuning citrate synthase flux potentiates and refines metabolic innovation in the Lenski evolution experiment. Elife, v. 4, p. e09696, 2015.

Página oficial do experimento:

Resposta de Blount e Lenski a críticas feitas por alguns autores:

Larry Moran discute um pouco a crítica e a resposta aqui:



quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Como organizamos os series vivos? Moléculas X Morfologia (Parte 7)



Há quase um ano atrás, postei o último texto desta série, no qual falamos sobre a importância dos fósseis na sistemática filogenética (se você não leu ele ainda é só clicar aqui). Só para lembrar, esse texto faz parte de uma série maior. Recomendo a leitura dos outros, para entender melhor esse daqui. O primeiro texto está aqui e ao fim de um texto sempre há o link para o próximo.

Hoje falaremos sobre um assunto que todo mundo gosta: tretas. Eu gosto tanto que ele acabou virando tema da minha primeira pesquisa da graduação, o artigo que publiquei ao fim dela ficará nas referências  para aqueles que quiserem dar uma olhada. Lá eu discuto um pouco mais a fundo alguns pontos que abordarei aqui no blog, entre outros detalhes a mais (1). O tema deste texto será uma grandes tretas da sistemática. Afinal, qual o melhor tipo de dado para reconstruir a evolução dos grupos, os morfológicos ou os moleculares?

EM BUSCA DE SINAIS

Toda essa polêmica sobre os diferentes tipos de dados gira em torno de uma questão fundamental: qual destes dados possui maior sinal filogenético? Ou seja, qual possui uma maior quantidade de sinapomorfias conservadas, as quais serão úteis para reconstruir, da maneira mais fiel possível, a evolução de um grupo biológico? 

A FORMA DA VIDA

A morfologia, basicamente os atributos relacionado à forma dos seres vivos, é certamente a fonte de dados mais tradicional para análises filogenéticas. Foi utilizando morfologia que o próprio método cladístico foi desenvolvido por Willi Henning na década de 1950 (para saber mais, leia o texto 1 desta série). Os sinais da forma, apesar de tradicionais e muito úteis, nem sempre são muito acurados para reconstruções filogenéticas. Os dados morfológicos podem ser mais ou menos precisos dependendo de alguns fatores:

1- Escala:

Quando tratamos de grupos muito grandes, como os animais ou mesmo os seres vivos como um todo, começa a haver uma dificuldade de estabelecer as hipóteses de homologia com precisão. Por exemplo, como podemos tratar características como membros de animais em grupos onde sequer eles existem? Há algo em uma água viva que pode ser homólogo à essa característica? O que pode ser usado para traçar homologias entre grupos tão distintos que tiveram ancestral comum há mais de 550 milhões de anos?

Em grandes escalas temporais muitos sinais poderão se perder, ou se tornarem tão sutis a ponto de, no nível macro, serem irrastreáveis e isso acaba causando uma série de complicações. Análises em escalas menores costumam trazer resultados mais satisfatórios com o uso da forma dos organismos; gêneros e famílias tendem a ser muito bem reconstruídos com morfologia. Mas é claro que há exceções, como veremos a seguir.

2-Grupos críticos:

Muitos grupos de organismos possuem morfologia muito pouco informativa, de modo que é difícil encontrar os sinais necessários para agrupá-los de forma convincente. Para ilustrar, observe os exemplos abaixo:

Alguns grupos vegetais muitas vezes possuem sinais morfológicos difusos, altamente variáveis, mesmo entre espécies bastante próximas (1). Veja o exemplo da família Cannabaceae; o lúpulo (usado na cerveja) e a Cannabis são exemplos de membros dessa família. Porém, quando olhamos para morfologia das duas plantas, vemos que há pouca semelhança entre elas, e que na verdade nem o próprio grupo como um todo possui sinapomorfias morfológicas muito bem definidas. (2)

Humulus lupulus e Cannabis sativa, imagens disponíveis aqui e aqui.


Outros grupos complicados de se classificar com base apenas na estrutura são os organismos unicelulares. Há relativamente pouca informação morfologia na superestrutura de bactérias, por exemplo. Isso dificulta a construção de filogenias em diversos níveis hierárquicos, desde gênero a grandes grupos.

Para a sistemática, grupos que apresentam grande quantidade de atributos morfológicos, como Vertebrata (com muitos caracteres, especialmente ósseos) e Arthropoda (com complexos apêndices, grandes variações no aparelho reprodutor e venação de asas, no caso dos Insetos) são aqueles com maior quantidade de sinal filogenético morfológico (1).


Fóssil de Tyrannosaurus rex. Imagem aqui

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Caracteres morfológicos de uma mosca mutuca (Diptera, Insecta). Cabeça, antena, tórax e genitalias à esquerda; Asa à direita. Imagens disponíveis aqui e aqui.



3- Taxons muito modificados:

Quando um grupo sofre modificações extremas isso também dificulta (e muito) seu posicionamento dentro das filogenias. Abaixo veremos 2 exemplos bastante característicos disso.

Os testudines (tartarugas, cagados e jabutis) são provavelmente os vertebrados viventes com a morfologia mais bizarra: eles possuem uma carapaça óssea bastante distinta, suas costelas expandidas são fusionadas a placas dérmicas, formando um casco, e suas cinturas pélvica e escapular estão do lado de dentro caixa torácica (3). Por conta de todas essas modificações ósseas, eles foram classificados como uma linhagem basal de répteis, porém trabalhos moleculares extensos como de Chiari e colaboradores (4) apontam para um posicionamento bem distinto: a linhagem dos testudines seria irmã de Archosauria (grupo que inclui a linhagem dos crocodilos, pterossauros e dinossauros). Linhagens muito derivadas em relação aos grupos próximos tendem a ser bastante complicadas de se posicionar via morfologia.

O próximo exemplo, talvez um dos mais citados durante essa série, é o dos Myxozoa. Esses pequenos seres unicelulares eram classificado como protozoário até que, por meio de análises moleculares, eles foram reclassificados como Cnidários (5). Sim, um animal unicelular! Eles seriam organismos próximos às águas-vivas, hipótese que certamente jamais poderia ter sido imaginada usando apenas dados morfológicos.

Porém, nem tudo é notícia ruim para a morfologia. Esses dados possuem algo extremamente valioso para o estudo da evolução: acesso ao passado.

FÓSSEIS: JÓIAS MORFOLÓGICAS

Dados morfológicos possuem a vantagem de reter informações sobre as biotas do passado, na forma dos fósseis, o que está normalmente (mas não sempre) inacessível aos dados moleculares. No texto passado, falamos exclusivamente da importância dos fósseis para a sistemática e, portanto, não irei repetir em detalhes todas as importantes funções que os fósseis cumprem na cladística. Mencionarei apenas dois papéis fundamentais:

1-Reconstrução da evolução dos caracteres de forma completa: 

Através de uma filogenia com fósseis podemos, de maneira mais precisa, saber o estado de características, que muitas vezes se apresentam como complexas e muito modificadas nos seres viventes (como penas nas aves) em versões mais simplificadas ou intermediárias, o que nos permite traçar hipóteses sobre como, quando e em quais grupos dada característica evoluiu.

2-Reconstrução de características  ancestrais dos grupos: 

Fósseis também nos permitem uma visão mais realista dos caracteres possivelmente presentes nos ancestrais comuns hipotéticos. Isso permite que possamos analisar como pode ter se dado (em qual contexto e a partir de quais aparatos) transições complexas da história da vida na terra, como a conquista do ambiente terrestre por diferentes grupos.

O MUNDO (QUASE) INFINITO DAS MOLÉCULAS

Nessa discussão, há um fato inegável: em termos de quantidade de dados o mundo das moléculas é gigantesco. Enquanto trabalhos morfológicos chegam as centenas de caracteres, uma análise molecular pode conter um número estratosférico deles, em alguns casos equivalente ao tamanho do genoma das espécies utilizadas. No caso de primatas, como nós, essa cifra pode bater a casa dos bilhões de bases nitrogenadas. É claro que a força do sinal filogenético não é necessariamente proporcional ao número de caracteres; compartilhar multicelularidade é certamente mais informativo que compartilhar uma Adenina ou Timina em uma determinada posição do genoma. (1)

Outro fator relevante, que pode ser considerado uma vantagem dos dados moleculares, é o de que eles são ajustáveis em escala. Por exemplo, é muito complicado trabalhar dados morfológicos em escalas muito pequenas. A filogeografia por exemplo, ramo da biologia que estuda relações entre diferentes populações dentro de uma mesma espécie, tem muito pouco a se beneficiar dos dados morfológicos. Em escalas tão curtas de tempo, pouca diferença morfológica entre populações pode ser observada. Enquanto isso, porções do genoma de evolução rápida (com taxas de mutação elevadas) são ideais neste contexto.

No outro extremo, o estudo das relações entre grupos que se separam logo no início da história evolutiva (como Eukaria e Bacteria) podem se utilizar de genes ultra-conservados em ambas as  linhagens. Isso pode facilitar a determinação das relações evolutivas em escalas que, como vimos anteriormente, podem ser muito complicadas para serem tratadas à luz da morfologia.

NÃO EXISTE DADO PERFEITO

Apesar das vantagens citadas acima, os dados moleculares estão longe de ser um dado mágico, blindado contra convergências e outras homoplasias. Há trabalhos mostrando que há também muito ruído nos dados moleculares (1). Filogenias oriundas de diferentes conjuntos de dados moleculares também podem ser bastante conflitantes entre si, de modo que é seguro afirma que ainda existe muito trabalho a ser feito pelos sistematas de modo que consigamos extrair o máximo do seu sinal potencial.

Um efeito recorrente nos trabalhos moleculares é o de atração de ramo longo ("Long Branch Attraction") onde taxons derivados mas com taxas de substituição acima da média são atraídos para a base da filogenia, causando distorções nos resultados (7). Da mesma forma, algumas sequencias acabam sendo erroneamente posicionadas por conta dos "multiple hits" mutações que se acumulam em sequencias específicas, gerando sinal falso e alterando a topologia final.

Certamente não há dado perfeito mas cabe aos sistematas trabalhar para que consigamos extrair sinais dos diferentes conjuntos e conseguir uma reconstrução evolutiva mais fidedigna possível.

ABORDAGENS MISTAS: O QUE FUNCIONA E O QUE NÃO FUNCIONA

Já foram propostas várias abordagens que misturam os dois tipos de  dados. Algumas delas funcionam apenas parcialmente e outras são mais efetivas. A abordagem de evidência total, na qual se coloca ambos os dados em uma mesma matriz e se reanalisa esse novo conjunto, pode ser efetiva quando há poucos dados moleculares disponíveis (1 ou alguns poucos genes). Porém, quanto escalamos para quantidade substanciais de genes, o sinal morfológico acaba sendo matematicamente sufocado e as moléculas acabam por ditar a topologia final (1).


Uma abordagem alternativa seria o consenso. Ela busca tentar encontrar respostas convergentes entre análises que utilizam diferentes tipos de dados, colocando os grupos suportados por mais de um conjunto como mais robustos e confiáveis. Em muitos casos essa abordagem é eficiente, porém quando há topologias fortemente discordantes, o resultado de um consenso pode ser desastroso. Apesar disso, abordagens de consenso  parecem ser o melhor caminho até o momento para tratar os resultados nos casos em que há diferenças numéricas expressivas no número de caracteres (1).

CONCLUSÃO

A cladística é uma ciência histórica. Isso significa que todas as reconstruções que fazemos são tentativas de reconstruir um passado ao qual nós não temos acesso direto. Diferente de alguns ramos da ciência, as hipóteses aqui não podem ser testadas de forma direta, na bancada de um laboratório. Por conta disso é muito difícil dizer objetivamente qual tipo de dado seria melhor (se é que ele existe).

Além desse impedimento, temos que levar em consideração que a evolução de um grupo é algo tremendamente complexo. Para entendê-la é preciso se equipar de todas as armas possíveis: morfologia, geologia, genética, embriologia, ecologia, biogeografia e muitas outras. Propôr a supremacia de um tipo de informação não é só uma posição que carece de base filosófica, mas também ignora a complexidade biológica das questões evolutivas, nos deixando mais longe de entender o mundo vivo e sua história.

No próximo texto continuaremos falando de dados moleculares e morfológicos em uma das aplicações mais interessantes que une ambos com um propósito maior: datar os nós da filogenia, para sabermos quando aproximadamente as divergências entre grupos ocorreram. Até o próximo texto!

REFERÊNCIAS


1- BUENO, Gabriel M.; SANTOS, Daubian; DOS SANTOS, Charles Morphy D. Divergências entre hipóteses filogenéticas: um ensaio sobre a filogenia de diptera. Revista Brasileira de Iniciação Científica, v. 6, n. 5, p. 44-59, 2019.

Deixarei AQUI o Link do Researchgate, lá você poderá baixar o PDF do artigo gratuitamente: https://www.researchgate.net/publication/337110742_DIVERGENCIAS_ENTRE_HIPOTESES_FILOGENETICAS_UM_ENSAIO_SOBRE_A_FILOGENIA_DE_DIPTERA



2- YANG, Mei-Qing et al. Molecular phylogenetics and character evolution of Cannabaceae. Taxon, v. 62, n. 3, p. 473-485, 2013.



3- Essas e outras características incríveis dos Testudines podem ser encontradas no livro "A Vida dos Vertebrados": POUGH, F. Harvey; HEISER, John B.; MCFARLAND, William N. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 2003.


4- CHIARI, Ylenia et al. Phylogenomic analyses support the position of turtles as the sister group of birds and crocodiles (Archosauria). Bmc Biology, v. 10, n. 1, p. 65, 2012.



5- Chang, E. Sally, et al. "Genomic insights into the evolutionary origin of Myxozoa within Cnidaria." Proceedings of the National Academy of Sciences 112.48 (2015): 14912-14917.

6- Veja o texto 6 desta série para mais detalhes: https://coelhoprecambriano.blogspot.com/2018/12/como-organizamos-os-seres-vivos-parte-6.html?m=1

7- Bergsten, J. "A review of long‐branch attraction." Cladistics 21.2 (2005): 163-193.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Por que estamos sujeitos ao escorbuto?

Causada por uma deficiência crônica de Vitamina C, o escorbuto já preocupou muito mais do que hoje. Na época das grandes navegações, essa doença causou a morte de muitos e muitos marinheiros privados de uma alimentação balanceada. A história do escorbuto e sua relação com as navegações fornece um dos primeiros exemplos de um experimento com grupo controle, realizado por James Lind, que acabou concluindo que o escorbuto podia ser tratado com uma dieta rica em frutas cítricas [1]. 

A Vitamina C, ou ácido L-ascórbico, realiza uma série de funções no organismo [2]:

"[É] um nutriente essencial para humanos e está intimamente relacionada com a manutenção dos tecidos conjuntivos intercelulares, osteoides, dentina e colágeno. A Vitamina C tem importantes papéis como cofator, complemento enzimático, co-substrato, agente redutor e é um antioxidante em várias reações bioquímicas."

Ao contrário de nós, a maioria dos mamíferos consegue sintetizar seu próprio ácido L-ascórbico [3]. Como nós não conseguimos produzir a nossa Vitamina C, temos que ingeri-la sob a forma de alimento, geralmente frutas cítricas e alguns vegetais [2]. Se  não a ingerirmos por um longo tempo, estaremos sujeito ao escorbuto.  

Mas qual a razão de não conseguirmos sintetizar a Vitamina C?

O fato é que não conseguimos produzir a enzima L-Gulonolactona Oxidase, que catalisa uma das reações na via de síntese do ácido L-ascórbico. O gene que codifica esta enzima, presente na maioria dos mamíferos, possui 12 éxons. Nos humanos, o homólogo desse gene é um pseudogene unitário (para saber mais sobre os tipos de pseudogene e suas características, clique aqui), o pseudogene GULO ou pGULO, que apresenta apenas 5 dos 12 éxons totais. Não bastasse isso, o locus no qual se localiza o pGULO sofreu um bombardeio com retrotranspósons (sobre estes, clique aqui), e as partes ainda identificáveis foram carregadas com muitas mutações (inserções, deleções e códons de parada prematuros) [3][4]. É devido a toda essa bagunça que nós não expressamos a enzima GULO e, portanto, não somos capazes de sintetizar Vitamina C [5]. 

Assim como nos humanos, os outros símios possuem um pseudogene GULO. Ao que tudo indica, a mutação mais antiga, e que talvez foi a responsável por desativar o gene, deu origem um códon de parada prematuro compartilhado por todos os símios [6]:


"Inserções e deleções causadoras de frameshifts, mutações nonsense, e deleções genômicas são observadas na sequência GULO humana, indicando que um antigo pseudogene que tem experienciado numerosas mutações secundárias. A análise de mutações compartilhadas mostra que humanos, chimpanzés, macacos rhesus e saguis compartilham uma mutação nonsense [que transformou um códon codificante de um aminoácido em um códon de parada], enquanto o gálago, camundongo e o cão compartilha o códon TGG para triptofano . Portanto, a inativação do GULO ocorreu antes da separação entre macacos do Velho e do Novo Mundo (> 40 milhões de anos atrás)". 

Figura 1. Códon de parada prematuro no pseudogene GULO destacado em cinza. As letras brancas dentro das elipses cinza indicam os aminoácidos codificados. Image disponível em [3]. 


Assim como o pseudogene UOX (discutido aqui), o pseudogene GULO é o legado de um ancestral comum a humanos e outros símios. Darwin [7] certa vez escreveu que "o homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva". No genoma também, Darwin. 

No próximo post sobre essa assunto, trataremos da possível relação entre o surgimento do pseudogene GULO e a posterior fixação do pseudogene UOX. Até lá!


Referências 

1 - Wikipedia contributors. (2019, December 9). Scurvy. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 14:22, December 15, 2019, from https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Scurvy&oldid=929905459

2 - AGARWAL, Anil et al. Scurvy in pediatric age group–a disease often forgotten?. Journal of clinical orthopaedics and trauma, v. 6, n. 2, p. 101-107, 2015. 

3 - FINLAY, Graeme. Human Evolution: Genes, Genealogies and Phylogenies. Cambridge University Press, 2013.

4 - INAI, Yoko; OHTA, Yuriko; NISHIKIMI, Morimitsu. The Whole Structure of the Human Nonfunctional L-Gulono-γ-Lactone Oxidase Gene-the Gene Responsible for Scurvy-and the Evolution of Repetitive Sequences Thereon. Journal of nutritional science and vitaminology, v. 49, n. 5, p. 315-319, 2003.

5 - NISHIKIMI, Morimitsu; YAGI, Kunio. Molecular basis for the deficiency in humans of gulonolactone oxidase, a key enzyme for ascorbic acid biosynthesis. The American journal of clinical nutrition, v. 54, n. 6, p. 1203S-1208S, 1991.

6 - ZHU, Jingchun et al. Comparative genomics search for losses of long-established genes on the human lineage. PLoS computational biology, v. 3, n. 12, p. e247, 2007.

7 - Darwin, C. R. 1871. The descent of man, and selection in relation to sex. London: John Murray. Volume 2. 1st edition.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Por que humanos estão sujeitos a ter gota?


Figura 1. Everybody hates the gout.



Purinas são bases nitrogenadas que participam de uma série processos e compõem moléculas nas células. Duas purinas, adenina e guanina, são componentes do DNA e do RNA. Além disso, purinas fazem partes de importantes moléculas do metabolismo, como ATP, GTP, cAMP e coenzima A. Adicionalmente, a adenosina pode agir com um neurotransmissor [1].

Nos grandes símios (humanos, chimpanzés, orangotangos e gorilas), o produto final da degradação das purinas é ácido úrico, que forma íons e sais conhecidos como uratos; ambas as formas são excretadas na urina [2] [3]. Concentrações elevadas de uratos no soro induzem gota, uma condição patológica na qual sais de urato se cristalizam e depositam-se nas juntas e nos rins, causando danos [3].  

Em média, as concentrações séricas de urato nos humanos chegam perto do limite de solubilidade, contrastando dramaticamente com a condição  observada em outros primatas, como lêmures, nos quais as concentrações de urato são dez vezes menores [3].

O que explica esse acúmulo de ácido úrico nos grandes primatas?  

Na maioria dos mamíferos, uma enzima chamada Urato Oxidase, codificada pelo gene UOX, é a primeira de uma série de outras enzimas envolvidas no metabolismo das purinas [4], que degradam o ácido úrico, reduzindo, assim, os seus níveis séricos.

Nós humanos possuímos uma versão mutante do gene UOX, um pseudogene no qual uma simples mudança de C para T, em uma posição específica da sequência do éxon 2, transformou o códon CGA (o qual codifica o aminoácido arginina) no códon TGA, que indica o fim prematuro da tradução da proteína Urato Oxidase, a enzima que de grada ácido úrico [4]. O produto prematuro do pseudogene UOX, não consegue realizar a função da Urato Oxidase e, como consequência, os níveis de ácido úrico permanecem elevados.


O mais interessante de tudo é que todos os grandes símios compartilham essa mesma mutação conosco, na mesma posição específica, indicando que essa mutação é o legado histórico de um ancestral comum a humanos, chimpanzés, gorilas e orangotangos.


Figura 2. Pseudogene UOX, alinhamento de sequências  de diferentes organismos. O códon de parada prematuro está destacado em cinza. Imagem disponível em [4]   


Devo mencionar que os gibões também apresentam algo similar ao que aconteceu nos grandes primatas. Dentre as mutações que ocorreram no pseudogene UOX dos gibões, está uma mutação também no éxon 2, comum as seis espécies de gibão examinadas no estudo que reportou tais resultados [5],  mas diferente daquela que ocorreu na linhagem dos grandes primatas. Embora a mutação também tenha convertido um códon CGA em TGA, a mutação é diferente porque ela ocorreu em uma posição diferente da sequência. Por ser exclusiva daqueles gibões, ela indica que eles são todos derivados de um mesmo ancestral comum.  

Referências

1 - Wikipedia contributors. (2019, December 14). Purine. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 22:03, December 15, 2019, from https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Purine&oldid=930664759

2 - MAIUOLO, Jessica et al. Regulation of uric acid metabolism and excretion. International journal of cardiology, v. 213, p. 8-14, 2016.

3 - Berg JM, Tymoczko JL, Stryer L. Biochemistry. 5th edition. New York: W H Freeman; 2002. Section 25.6, Disruptions in Nucleotide Metabolism Can Cause Pathological Conditions. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK22372/

4 - FINLAY, Graeme. Human Evolution: Genes, Genealogies and PhylogeniesCambridge University Press, 2013.

5 - Masako Oda, Yoko Satta, Osamu Takenaka, Naoyuki Takahata, Loss of Urate Oxidase Activity in Hominoids and its Evolutionary Implications, Molecular Biology and Evolution, Volume 19, Issue 5, May 2002, Pages 640–653, https://doi.org/10.1093/oxfordjournals.molbev.a004123


domingo, 8 de dezembro de 2019

Os Dragões Targaryen



Targaryendraco wiedenrothi. Paleoarte: cortesia de Vitor Silva.  Conheça o trabalho dele no Facebook e no DeviantART


Rodrigo Pêgas é uma personalidade interessante, um (a)migo querido e um intelecto brilhante. Doutorando pela UFABC, Pêgas (que para a minha honra e alegria é meu parceiro no Laboratório de Paleontologia de Vertebrados e Comportamento Animal, LAPC-UFABC) já contribuiu, apenas em 2019,  com a descrição de três espécies: Iberodactylus andreui  (Holgado et al. 2019 ), Nurhachius luei (Zhou et al. 2019) e a espécie nomeada por Pêgas et al (2019), Targaryendraco wiedenrothi (imagem acima), da qual trataremos aqui. No trabalho mais recente dele, Pêgas et al. reavaliaram um espécime já conhecido há mais de duas décadas, mas cujas afinidades eram bastante obscuras. O trabalho teve desdobramentos importantes. 

Figura 1. Rodrigo Pêgas e o holótipo do Nurhachius luei. Instagram.



O espécime em questão foi descoberto na Alemanha por Kurt Wiedenroth em 1984 e consiste em fragmentos da mandíbula e elementos da asa esquerda. Rupert Wild (1990) atribuiu o material a uma nova espécie do gênero Ornithocheirus, a qual ele chamou de Ornithocheirus wiedenrothi, numa clara homenagem ao descobridor dos fósseis. De forma brilhante e contundente, Pêgas et al. demonstraram que esse espécime na verdade merece o seu próprio gênero, uma vez que possui uma característica diagnóstica (ver Fig. 4) que não permite o seu enquadramento no gênero Ornithocheirus. Sendo assim, o que antes era O. wiedenrothi, agora é Targaryendraco wiedenrothi

O nome genérico é uma combinação de "Targaryen" e "draco". "Targaryen" é uma referência aos dragões da Casa Targaryen, que na saga A Song of Ice and Fire possuem ossos de coloração escura; os fósseis do Targaryendraco são escuros, como se pode ver na figura 2. Quanto a "draco", bem... é uma referência a associação muitas vezes explorada entre pterossauros e dragões. Algumas características dos pterossauros serviram de inspiração para a construção dos dragões.  Além disso, um livro publicado em 1901 pelo paleontólogo Harry Seeley, e que lidava especificamente com pterossauros, teve como título Dragons of the Air: An Account of Extinct Flying Reptiles (Dragões do Ar: Um Relato de Répteis Voadores Extintos). 



Figura 2. Porção anterior da sínfise mandibular do Targaryendraco  em vistas dorsal (A e B) e lateral esquerda (C e D). Imagem: Rodrigues & Kellner 2013.


Os estudo conduzido por Pêgas et al., além de revelar uma nova espécie, também trouxe como novidade o estabelecimento de uma nova e bem sucedida linhagem de  pterossauros até então não reconhecida, a qual eles batizaram de Targaryendraconia (Fig. 3). Esse novo clado foi recuperado como sendo grupo-irmão de Anhangueria, um grupo que inclui, entre outros pterossauros, Anhanguera piscator e Tropeonathus mesembrinus (tem vídeo no canal sobre ele).  



Figura 3. Filogenia temporalmente calibrada ressaltando as relações filogenéticas do Targaryendraco e de Targaryendraconia. Imagem: Pêgas et al. 2019. 



A característica mais conspícua nos targaryendraconianos, ou seja, a mais evidente, são as arcadas* extremamente estreitas, especialmente a porção inferior anterior formada pelos ossos dentários (Fig. 4). Além disso, as margens laterais da metade anterior de ambos arcadas (inferior e superior) são aproximadamente paralelas. Nos anhanguerianos, parentes próximos dos targaryendraconianos, as margens divergem progressivamente na região posterior à roseta (uma expansão arredondada). Seguindo a estreiteza das arcadas, o sulco mediano da sínfise dentária também é bastante estreito; a sínfise é a união entre os dentários esquerdo e direito. Mais uma vez, isso contrasta com a condição observada nos anhanguerianos, nos quais o sulco mediano é  largo. 
*Me foi sugerido pelo próprio Rodrigo Pêgas que eu traduzisse "jaw" como "arcada".  

  
Figura 4. Sínfise dentária do Targaryendraco. Abreviações: alv = alvéolo; m.g. = sulco mediano; odp = processo odontoide; rid: "elevação". É digno de nota que a característica dianóstica do Targaryendraco wiedenrothi enquanto espécie é a construção particular do processo odontoide: "processo odontoide com uma borda oclusal aguda que é formada pela confluência das elevações marginais do sulco dentário oclusal" (Pêgas et al. 2019, p. 4). Imagem: Pêgas et al. 2019.




A distribuição temporal dos targaryendraconianos se deu desde pelo menos o Hauteriviano (representante: Targaryendraco wiedenrothi) até o Cenomaniano (representante: Cimoliopterus cuvieri). Quanto à distribuição geográfica, os targaryeindraconianos habitaram a América do Norte (Aetodactylus halli e Cimoliopterus dunni), Europa Ocidental (Camposipterus nasatusCimoliopterus cuvieri e Targaryendraco wiedenrothi), América do Sul (o brasileiro Barbosania gracilirostris) e Austrália (Aussiedraco molnari).   


Aqui eu tentei fazer um resumo do trabalho, ressaltando alguma pontos cruciais. Há uma matéria interessante publicada online pela NatGeo. Eu sugiro fortemente que voce leia o artigo. Vale muito a pena, e lá está tudo bem detalhado e explicado. Fica a dica. Até a próxima!


Referências

HOLGADO, Borja et al. On a new crested pterodactyloid from the Early Cretaceous of the Iberian Peninsula and the radiation of the clade Anhangueria. Scientific reports, v. 9, n. 1, p. 4940, 2019.

ZHOU, Xuanyu et al. Nurhachius luei, a new istiodactylid pterosaur (Pterosauria, Pterodactyloidea) from the Early Cretaceous Jiufotang Formation of Chaoyang City, Liaoning Province (China) and comments on the Istiodactylidae. PeerJ, v. 7, p. e7688, 2019.

PÊGAS, Rodrigo V.; HOLGADO, Borja; LEAL, Maria Eduarda C. On Targaryendraco wiedenrothi gen. nov.(Pterodactyloidea, Pteranodontoidea, Lanceodontia) and recognition of a new cosmopolitan lineage of Cretaceous toothed pterodactyloids. Historical Biology, p. 1-15, 2019.

WILD, Rupert. Ein Flugsaurierrest (Reptilia, Pterosauria) aus der Unterkreide (Hauterive) von Hannover (Niedersachsen). Neues Jahrbuch für Geologie und Paläontologie-Abhandlungen, p. 241-254, 1990.

PICKERELL, J. Unusual toothy pterosaur found hidden in the wrong group. 2019. Disponível em <https://www.nationalgeographic.com/science/2019/11/new-pterosaur-species-named-for-targaryen-game-of-thrones-dragons/>. Acesso em 07/12/2019.


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