quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Como organizamos os series vivos? Moléculas X Morfologia (Parte 7)



Há quase um ano atrás, postei o último texto desta série, no qual falamos sobre a importância dos fósseis na sistemática filogenética (se você não leu ele ainda é só clicar aqui). Só para lembrar, esse texto faz parte de uma série maior. Recomendo a leitura dos outros, para entender melhor esse daqui. O primeiro texto está aqui e ao fim de um texto sempre há o link para o próximo.

Hoje falaremos sobre um assunto que todo mundo gosta: tretas. Eu gosto tanto que ele acabou virando tema da minha primeira pesquisa da graduação, o artigo que publiquei ao fim dela ficará nas referências  para aqueles que quiserem dar uma olhada. Lá eu discuto um pouco mais a fundo alguns pontos que abordarei aqui no blog, entre outros detalhes a mais (1). O tema deste texto será uma grandes tretas da sistemática. Afinal, qual o melhor tipo de dado para reconstruir a evolução dos grupos, os morfológicos ou os moleculares?

EM BUSCA DE SINAIS

Toda essa polêmica sobre os diferentes tipos de dados gira em torno de uma questão fundamental: qual destes dados possui maior sinal filogenético? Ou seja, qual possui uma maior quantidade de sinapomorfias conservadas, as quais serão úteis para reconstruir, da maneira mais fiel possível, a evolução de um grupo biológico? 

A FORMA DA VIDA

A morfologia, basicamente os atributos relacionado à forma dos seres vivos, é certamente a fonte de dados mais tradicional para análises filogenéticas. Foi utilizando morfologia que o próprio método cladístico foi desenvolvido por Willi Henning na década de 1950 (para saber mais, leia o texto 1 desta série). Os sinais da forma, apesar de tradicionais e muito úteis, nem sempre são muito acurados para reconstruções filogenéticas. Os dados morfológicos podem ser mais ou menos precisos dependendo de alguns fatores:

1- Escala:

Quando tratamos de grupos muito grandes, como os animais ou mesmo os seres vivos como um todo, começa a haver uma dificuldade de estabelecer as hipóteses de homologia com precisão. Por exemplo, como podemos tratar características como membros de animais em grupos onde sequer eles existem? Há algo em uma água viva que pode ser homólogo à essa característica? O que pode ser usado para traçar homologias entre grupos tão distintos que tiveram ancestral comum há mais de 550 milhões de anos?

Em grandes escalas temporais muitos sinais poderão se perder, ou se tornarem tão sutis a ponto de, no nível macro, serem irrastreáveis e isso acaba causando uma série de complicações. Análises em escalas menores costumam trazer resultados mais satisfatórios com o uso da forma dos organismos; gêneros e famílias tendem a ser muito bem reconstruídos com morfologia. Mas é claro que há exceções, como veremos a seguir.

2-Grupos críticos:

Muitos grupos de organismos possuem morfologia muito pouco informativa, de modo que é difícil encontrar os sinais necessários para agrupá-los de forma convincente. Para ilustrar, observe os exemplos abaixo:

Alguns grupos vegetais muitas vezes possuem sinais morfológicos difusos, altamente variáveis, mesmo entre espécies bastante próximas (1). Veja o exemplo da família Cannabaceae; o lúpulo (usado na cerveja) e a Cannabis são exemplos de membros dessa família. Porém, quando olhamos para morfologia das duas plantas, vemos que há pouca semelhança entre elas, e que na verdade nem o próprio grupo como um todo possui sinapomorfias morfológicas muito bem definidas. (2)

Humulus lupulus e Cannabis sativa, imagens disponíveis aqui e aqui.


Outros grupos complicados de se classificar com base apenas na estrutura são os organismos unicelulares. Há relativamente pouca informação morfologia na superestrutura de bactérias, por exemplo. Isso dificulta a construção de filogenias em diversos níveis hierárquicos, desde gênero a grandes grupos.

Para a sistemática, grupos que apresentam grande quantidade de atributos morfológicos, como Vertebrata (com muitos caracteres, especialmente ósseos) e Arthropoda (com complexos apêndices, grandes variações no aparelho reprodutor e venação de asas, no caso dos Insetos) são aqueles com maior quantidade de sinal filogenético morfológico (1).


Fóssil de Tyrannosaurus rex. Imagem aqui

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Caracteres morfológicos de uma mosca mutuca (Diptera, Insecta). Cabeça, antena, tórax e genitalias à esquerda; Asa à direita. Imagens disponíveis aqui e aqui.



3- Taxons muito modificados:

Quando um grupo sofre modificações extremas isso também dificulta (e muito) seu posicionamento dentro das filogenias. Abaixo veremos 2 exemplos bastante característicos disso.

Os testudines (tartarugas, cagados e jabutis) são provavelmente os vertebrados viventes com a morfologia mais bizarra: eles possuem uma carapaça óssea bastante distinta, suas costelas expandidas são fusionadas a placas dérmicas, formando um casco, e suas cinturas pélvica e escapular estão do lado de dentro caixa torácica (3). Por conta de todas essas modificações ósseas, eles foram classificados como uma linhagem basal de répteis, porém trabalhos moleculares extensos como de Chiari e colaboradores (4) apontam para um posicionamento bem distinto: a linhagem dos testudines seria irmã de Archosauria (grupo que inclui a linhagem dos crocodilos, pterossauros e dinossauros). Linhagens muito derivadas em relação aos grupos próximos tendem a ser bastante complicadas de se posicionar via morfologia.

O próximo exemplo, talvez um dos mais citados durante essa série, é o dos Myxozoa. Esses pequenos seres unicelulares eram classificado como protozoário até que, por meio de análises moleculares, eles foram reclassificados como Cnidários (5). Sim, um animal unicelular! Eles seriam organismos próximos às águas-vivas, hipótese que certamente jamais poderia ter sido imaginada usando apenas dados morfológicos.

Porém, nem tudo é notícia ruim para a morfologia. Esses dados possuem algo extremamente valioso para o estudo da evolução: acesso ao passado.

FÓSSEIS: JÓIAS MORFOLÓGICAS

Dados morfológicos possuem a vantagem de reter informações sobre as biotas do passado, na forma dos fósseis, o que está normalmente (mas não sempre) inacessível aos dados moleculares. No texto passado, falamos exclusivamente da importância dos fósseis para a sistemática e, portanto, não irei repetir em detalhes todas as importantes funções que os fósseis cumprem na cladística. Mencionarei apenas dois papéis fundamentais:

1-Reconstrução da evolução dos caracteres de forma completa: 

Através de uma filogenia com fósseis podemos, de maneira mais precisa, saber o estado de características, que muitas vezes se apresentam como complexas e muito modificadas nos seres viventes (como penas nas aves) em versões mais simplificadas ou intermediárias, o que nos permite traçar hipóteses sobre como, quando e em quais grupos dada característica evoluiu.

2-Reconstrução de características  ancestrais dos grupos: 

Fósseis também nos permitem uma visão mais realista dos caracteres possivelmente presentes nos ancestrais comuns hipotéticos. Isso permite que possamos analisar como pode ter se dado (em qual contexto e a partir de quais aparatos) transições complexas da história da vida na terra, como a conquista do ambiente terrestre por diferentes grupos.

O MUNDO (QUASE) INFINITO DAS MOLÉCULAS

Nessa discussão, há um fato inegável: em termos de quantidade de dados o mundo das moléculas é gigantesco. Enquanto trabalhos morfológicos chegam as centenas de caracteres, uma análise molecular pode conter um número estratosférico deles, em alguns casos equivalente ao tamanho do genoma das espécies utilizadas. No caso de primatas, como nós, essa cifra pode bater a casa dos bilhões de bases nitrogenadas. É claro que a força do sinal filogenético não é necessariamente proporcional ao número de caracteres; compartilhar multicelularidade é certamente mais informativo que compartilhar uma Adenina ou Timina em uma determinada posição do genoma. (1)

Outro fator relevante, que pode ser considerado uma vantagem dos dados moleculares, é o de que eles são ajustáveis em escala. Por exemplo, é muito complicado trabalhar dados morfológicos em escalas muito pequenas. A filogeografia por exemplo, ramo da biologia que estuda relações entre diferentes populações dentro de uma mesma espécie, tem muito pouco a se beneficiar dos dados morfológicos. Em escalas tão curtas de tempo, pouca diferença morfológica entre populações pode ser observada. Enquanto isso, porções do genoma de evolução rápida (com taxas de mutação elevadas) são ideais neste contexto.

No outro extremo, o estudo das relações entre grupos que se separam logo no início da história evolutiva (como Eukaria e Bacteria) podem se utilizar de genes ultra-conservados em ambas as  linhagens. Isso pode facilitar a determinação das relações evolutivas em escalas que, como vimos anteriormente, podem ser muito complicadas para serem tratadas à luz da morfologia.

NÃO EXISTE DADO PERFEITO

Apesar das vantagens citadas acima, os dados moleculares estão longe de ser um dado mágico, blindado contra convergências e outras homoplasias. Há trabalhos mostrando que há também muito ruído nos dados moleculares (1). Filogenias oriundas de diferentes conjuntos de dados moleculares também podem ser bastante conflitantes entre si, de modo que é seguro afirma que ainda existe muito trabalho a ser feito pelos sistematas de modo que consigamos extrair o máximo do seu sinal potencial.

Um efeito recorrente nos trabalhos moleculares é o de atração de ramo longo ("Long Branch Attraction") onde taxons derivados mas com taxas de substituição acima da média são atraídos para a base da filogenia, causando distorções nos resultados (7). Da mesma forma, algumas sequencias acabam sendo erroneamente posicionadas por conta dos "multiple hits" mutações que se acumulam em sequencias específicas, gerando sinal falso e alterando a topologia final.

Certamente não há dado perfeito mas cabe aos sistematas trabalhar para que consigamos extrair sinais dos diferentes conjuntos e conseguir uma reconstrução evolutiva mais fidedigna possível.

ABORDAGENS MISTAS: O QUE FUNCIONA E O QUE NÃO FUNCIONA

Já foram propostas várias abordagens que misturam os dois tipos de  dados. Algumas delas funcionam apenas parcialmente e outras são mais efetivas. A abordagem de evidência total, na qual se coloca ambos os dados em uma mesma matriz e se reanalisa esse novo conjunto, pode ser efetiva quando há poucos dados moleculares disponíveis (1 ou alguns poucos genes). Porém, quanto escalamos para quantidade substanciais de genes, o sinal morfológico acaba sendo matematicamente sufocado e as moléculas acabam por ditar a topologia final (1).


Uma abordagem alternativa seria o consenso. Ela busca tentar encontrar respostas convergentes entre análises que utilizam diferentes tipos de dados, colocando os grupos suportados por mais de um conjunto como mais robustos e confiáveis. Em muitos casos essa abordagem é eficiente, porém quando há topologias fortemente discordantes, o resultado de um consenso pode ser desastroso. Apesar disso, abordagens de consenso  parecem ser o melhor caminho até o momento para tratar os resultados nos casos em que há diferenças numéricas expressivas no número de caracteres (1).

CONCLUSÃO

A cladística é uma ciência histórica. Isso significa que todas as reconstruções que fazemos são tentativas de reconstruir um passado ao qual nós não temos acesso direto. Diferente de alguns ramos da ciência, as hipóteses aqui não podem ser testadas de forma direta, na bancada de um laboratório. Por conta disso é muito difícil dizer objetivamente qual tipo de dado seria melhor (se é que ele existe).

Além desse impedimento, temos que levar em consideração que a evolução de um grupo é algo tremendamente complexo. Para entendê-la é preciso se equipar de todas as armas possíveis: morfologia, geologia, genética, embriologia, ecologia, biogeografia e muitas outras. Propôr a supremacia de um tipo de informação não é só uma posição que carece de base filosófica, mas também ignora a complexidade biológica das questões evolutivas, nos deixando mais longe de entender o mundo vivo e sua história.

No próximo texto continuaremos falando de dados moleculares e morfológicos em uma das aplicações mais interessantes que une ambos com um propósito maior: datar os nós da filogenia, para sabermos quando aproximadamente as divergências entre grupos ocorreram. Até o próximo texto!

REFERÊNCIAS


1- BUENO, Gabriel M.; SANTOS, Daubian; DOS SANTOS, Charles Morphy D. Divergências entre hipóteses filogenéticas: um ensaio sobre a filogenia de diptera. Revista Brasileira de Iniciação Científica, v. 6, n. 5, p. 44-59, 2019.

Deixarei AQUI o Link do Researchgate, lá você poderá baixar o PDF do artigo gratuitamente: https://www.researchgate.net/publication/337110742_DIVERGENCIAS_ENTRE_HIPOTESES_FILOGENETICAS_UM_ENSAIO_SOBRE_A_FILOGENIA_DE_DIPTERA



2- YANG, Mei-Qing et al. Molecular phylogenetics and character evolution of Cannabaceae. Taxon, v. 62, n. 3, p. 473-485, 2013.



3- Essas e outras características incríveis dos Testudines podem ser encontradas no livro "A Vida dos Vertebrados": POUGH, F. Harvey; HEISER, John B.; MCFARLAND, William N. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 2003.


4- CHIARI, Ylenia et al. Phylogenomic analyses support the position of turtles as the sister group of birds and crocodiles (Archosauria). Bmc Biology, v. 10, n. 1, p. 65, 2012.



5- Chang, E. Sally, et al. "Genomic insights into the evolutionary origin of Myxozoa within Cnidaria." Proceedings of the National Academy of Sciences 112.48 (2015): 14912-14917.

6- Veja o texto 6 desta série para mais detalhes: https://coelhoprecambriano.blogspot.com/2018/12/como-organizamos-os-seres-vivos-parte-6.html?m=1

7- Bergsten, J. "A review of long‐branch attraction." Cladistics 21.2 (2005): 163-193.

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