segunda-feira, 23 de março de 2020

COVID-19 e Tipos Sanguíneos - Alguma Relação?

Imagem disponível aqui.

Foi depositado no medRxiv um artigo intitulado "Relationship between the ABO Blood Group and the COVID-19 Susceptibility" [A relação entre grupos sanguíneos ABO e susceptibilidade a COVID-19). O estudo, conduzido por pesquisadores chineses, analisou 2173 pacientes com COVID-19, tratados em três hospitais em Wuhan e Shenzhen.

O que eles fizeram exatamente? Basicamente, eles compararam a distribuição de grupos sanguíneos do sistema ABO da população como um todo, em cada área, com a distribuição de tipos sanguíneos das pessoas cometidas pela COVID-19. Conforme Jacinta Bowler reportou no Science Alert:


"De acordo com o estudo, a população normal em Wuhan tem uma distribuição de tipo sanguíneo de 31% do tipo A, 24% do tipo B, 9% do tipo AB e 34% do tipo O. Os portadores do vírus, em comparação, foram distribuídos da seguinte forma: 38% do tipo A, 26% do tipo B, 10% do tipo AB e 25% do tipo O. Diferenças semelhantes foram observadas em Shenzhen".

Após implementação de métodos de análise, os autores chegaram às seguintes conclusões:

"Pessoas do grupo sanguíneo A têm um risco significativamente maior de adquirir COVID-19 se comparadas com pessoas de grupos não-A, enquanto o grupo sanguíneo O tem um risco significativamente menor de infecção em comparação com grupos não-O.

Devo dizer que "significativamente maior" e "significativamente menor", em se tratando de estatística, não significam, respectivamente "muito maior" e "muito menor". Quer dizer apenas que os resultados são suficientemente diferentes do que deveríamos observar se o tipo/grupo sanguíneo não exercesse influência alguma. No presente caso, basta você comparar a distribuições de tipo sanguíneo entre pessoas doentes e saudáveis (no que diz respeito a COVID-19) e ver que não há exatamente um abismo entre as proporções. Muito pelo contrário. 


Na discussão do artigo, os autores comentam o seguinte:


"Neste estudo, nós descobrimos que os grupos ABO exibem diferentes associações de risco para infecção com SARS-CoV-2 resultando em COVID-19. Especificamente, o grupo sanguíneo A foi associado com um aumento no risco, enquanto o grupo sanguíneo O foi associado com um decréscimo no risco, assim demonstrando que o tipo sanguíneo ABO é um biomarcador para susceptibilidade diferencial a COVID-19. Essas descobertas são consistentes com padrões de risco similares de grupos sanguíneos ABO para outras infecções por coronavírus estabelecidos em outros estudos. Por exemplo, Cheng et al. reportaram  que a susceptibilidade de infecção por SARS-CoV em Hong Kong era diferencial com relação aos sistemas de grupos sanguíneos ABO. Os autores descobriram que, comparados com funcionários de hospital de grupos não-O, os funcionários de hospital do grupo sanguíneo O tinham menores chances de ser infectados. Patrice et al. descobriram que anticorpos anti-A inibiam especificamente a adesão de células que expressavam proteína S do SARS-CoV a linhagens de células que expressavam ACE2. Dada a similaridade na sequência de ácidos nucleicos e na ligação ao receptor enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) entre SARS-CoV e SARS-CoV-2, a menor susceptibilidade do grupo sanguíneo O e maior susceptibilidades do grupo sanguíneo, no que diz respeito a COVID-19, poderiam estar ligadas a presença de anticorpos anti-grupo-sanguíneo, particularmente anticorpos anti-A, no sangue. Essa hipótese necessita de estudos diretos para ser provada. Pode haver também outros mecanismos subjacentes a susceptibilidade diferencial dos grupos sanguíneos ABO a COVID-19, que requerem estudos adicionais para elucidação." 

Algo que é importante de ressaltar é que o "risco" a que os pesquisadores se referem na verdade trata-se do risco de precisar de hospitalização devido a COVID-19, não o risco de ser infectado pelo vírus. A razão disso é que os pacientes avaliados no estudo foram somente aqueles que desenvolveram sintomas intensos o suficiente ao ponto de buscar um hospital.  
Vale ressaltar, ainda, que o estudo, no momento em que escrevo, aguarda revisão por pares e, portanto, ainda não foi publicado. Inclusive, alguns pesquisadores expressam algumas suspeitas quanto às conclusões do estudo (veja aqui, por exemplo). Além disso, não há motivos para desespero se você é do grupo A. Nem de relaxo, se você é do grupo O.  

O que o estudo preliminar aponta é que há alguma diferenciação no risco de hospitalização e evolução da doença no que diz respeito ao sistema ABO para tipos sanguíneos. Não é tudo ou nada, 0 ou 1. Vários fatores podem influenciar no desenvolvimento e curso da COVID-19. 

Mais importante que isso, o tipo sanguíneo não determina se você vai ou não contrair o SARS-CoV-2. Portanto, faça um favor a si mesmo(a), fique em casa e tome as precauções necessárias.   



quarta-feira, 18 de março de 2020

Polêmica em âmbar: não é dinossauro?


Capa. Foto, tomografias e desenhos esquemáticos da Oculudentavis. Fonte: Xing et al., 2020.


Olá, tudo bem? Trago atualizações* sobre a mais recente polêmica paleontológica – Oculudentavis. Como vocês sabem, o  espécime, uma cabeça em âmbar, foi descrito em uma publicação da Nature como sendo um dinossauro avialano, mais  mais próximo das aves modernas do que o Archaeopteryx o é.
*atualizações das atualizações no final do post.

Porém, muitos especialistas duvidaram da alocação do Oculudentavis dentro do clado Avialae. Argumentaram que, na verdade, seria um lepidossauro. Ou seja, seria da linhagem da qual fazem parte os lagartos, serpentes (que também são lagartos) e o tuatara.

Pelo visto, não é nem mesmo um dinossauro. Sequer é um arcossauro. Há duas razões básicas pra gente concluir isso.


Primeira razão

A Mickey Mortimer, do The Theropod Database Blog, que inclusive foi uma das primeiras pessoas a questionar a identidade da Oculudentavis, incluiu o espécime numa análise filogenética mais apropriada para avaliar o posicionamento filogenético dele. Resultado? Recuperou Oculudentavis como sendo lepidossauro (fig. 1).

Figura 1. Posicionamento filogenético segundo Mortimer. Se Oculudentavis fosse um dinossauro, estaria junto do Archaeopteryx nessa filogenia. 


O Oliver Rauhut incluiu o Oculudentavis em outra matriz de análise filogenética, que ele considerou mais adequada para avaliar o posicionamento. Resultado? Lepidossauro, novamente (fig. 2).   
 
Figura 2. Comentário do Oliver Rauhut sobre o posicionamento filogenético a Oculudentavis. Direto do grupo Tetrapod Zoology, Facebook.


Basta? Não. O Andrea Cau, que é também um especialista bem conhecido, avaliou o posicionamento do Oculudentavis usando duas matrizes diferentes. O resultado: ambas indicam que é um lepidossauro (fig. 3).

Figura 3. Comentários do Andrea Cau sobre o posicionamento filogenético do Oculudentavis. Direto do grupo Tetrapod Zoology, Facebook.  

 
Conclusão: as análises alternativas, realizadas por pessoas diferentes, utilizando bases de dados diferentes, concordam que não se trata de um dinossauro avialano, mas um lepidossauro. É curioso, para dizer o mínimo, que um paper revisado por pares, publicado na Nature, tenha um resultado tão facilmente contestado.


Segunda razão

Essa é uma razão mais dolorosa. Lá no grupo do Tetrapod Zoology, atrelado ao Blog homônimo, foi realizado um "exposed" do primeiro autor do paper (fig. 4), Lida Xing.

Uma pessoa (fulano, vamos dizer assim) postou o seguinte [livre tradução]:

Puta merda...

A comunidade chinesa de paleontologia de vertebrados perdeu as estribeiras a respeito do paper do Oculudentavis na Nature, em particular no que diz respeito a integridade do autor principal, Lida Xing.

Exemplo: [Daí a pessoa deixou dois links]

O Xing tem reagido colericamente quanto aos questionamentos da identidade aviana do fóssil. Uma série de alegações embaraçosas  a cerca do manuscrito e do espécime em questão também emergiram.

Fiz algumas perguntas e obtive essa resposta de um paleontólogo de vertebrados chinês profissional, com quem trabalhei em estreita colaboração, as quais eu repito aqui com sua permissão (com correções em inglês)

[Daí lemos as palavras do pesquisador Chinês]

“Olá, fulano

Eu assumo que você sabe do paper do Oculudentavis khaungraae e as questões que emergiram. A coisa toda é uma piada e eu sinto muito pela Jingmai [uma das autoras do paper publicado na Nature]. O “primeiro autor”, Lida Xing, é um baita cuzão, trapaceiro e mentiroso, e um belo de um grande lixo.

1 – Ele contribuiu com quase nada no que diz respeito ao paper em si, apenas apresentou-os [os outros autores] ao proprietário do âmbar e assegurou que o espécime era aviano com imagens que ele forneceu.

2 – Ele sabe de outros espécimes possivelmente coespecíficos que claramente preservam anatomia pós-craniana típica de lagarto, desde muito antes do paper ser aceito, ainda assim ele escolheu não avisar a Jingmai até o último minuto, depois que ela já tinha gravado suas declarações agora amplamente públicas em apoio a sua descoberta.

Ele agora está sendo questionado por toda a comunidade chinesa de pesquisa em paleontologia de vertebrados e respostas adicionais de pesquisadores proeminentes que condenam o artigo da Nature serão publicadas em breve. Ele reagiu ferozmente a repreensão da  imprensa acadêmica, especialmente as declarações recentes de Wang et. al., que são altamente críticas a seu trabalho e tem usado seus seguidores nas mídias sociais como um comunicador científico popular para assediar e ameaçar vários desses autores. Ele afirma a seus seguidores nas mídias sociais que seu trabalho está sendo alvo de "figurões" e "senhores acadêmicos" do IVPP [Institute of Vertebrate Paleontology and Paleoanthropology].

Obviamente, isso nem toca a enorme questão ética dos métodos de exploração de como o âmbar de Mianmar é coletado.

Diga a todos que você conhece para nunca colaborar com esse babaca”.

Figura 4. Sobre a conduta de Lida Xing.


É isso, gente. Infelizmente, um grande escândalo para a paleontologia. Algo deplorável, altamente condenável. É impressionante como algo assim acabou indo parar na Nature

Tendo em vista essas duas razões que eu apontei aqui, acho que é mais plausível concluir que Oculudentavis não é um dinossauro, mas um lepidossauro. 

UPDATE:

Tomei conhecimento de um artigo, ainda para ser publicado (mas já disponível aqui), no qual os autores analisam as tomografias originais e concluem que:

Um conjunto de sinapomorfias dos squamata, incluindo dentes marginais pleurodontes e um fenestra temporal inferior aberta, esmagadoramente apoiam sua afinidade com os squmata, e que a atribuição aviana ou dinossauriana da Oculudentavis está conclusivamente rejeitada.

UPDATE 2 (22/072020):


Os autores decidiram retirar o artigo. Em nota publicada na Nature, disseram:

"Nós, autores, estamos retirando este artigo para impedir que informações imprecisas permaneçam na literatura. Embora a descrição de Oculudentavis khaungraae permaneça precisa, um novo espécime não publicado lança dúvidas sobre nossa hipótese em relação à posição filogenética do HPG-15-3."

Você pode ler a nota original aqui:

Saiba mais:

O artigo que levantou a treta:

XING, Lida et al. Hummingbird-sized dinosaur from the Cretaceous period of Myanmar. Nature, v. 579, n. 7798, p. 245-249, 2020.


Post no The Theropod Database questionando o status dinossauriano da Oculudentavishttp://theropoddatabase.blogspot.com/2020/03/oculudentavis-is-not-theropod.html?m=1

Wang et al. 2020: 

(Em chinês) Wang, W.L. ZhihengY. HuM. WangY. Hongyu, and J. Lu. 2020. The "smallest dinosaur in history" in amber may be the largest mix-up in history, _. Institute of Vertebrate Paleontology and Paleoanthropology. Accessed 2020-03-18.


terça-feira, 17 de março de 2020

Coronavírus - Lições Evolutivas

Eletromicrografia de vírions SARS-CoV-2 com coronas visíveis. By NIAID Rocky Mountain Laboratories (RML), U.S. NIH - https://www.niaid.nih.gov/news-events/novel-coronavirus-sarscov2-images, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=87089605.


Estamos em meio a uma pandemia de COVID-19, doença infecciosa cujo causador é o coronavírus SARS-CoV-2. Já tem muita gente boa, bem mais gabaritada do que eu, cobrindo o assunto. Por isso, quase não tenho abordado o tema. Hoje eu vou ressaltar algumas coisas, muito mais sobre a evolução do que a respeito do vírus e da doença em si. 

Foi publicado hoje (17/03/2020) na Nature Medicine um artigo sobre as possíveis origens do SARS-CoV-2. Logo de cara, preciso dizer que os autores são enfáticos ao dizer que "nossas análises mostram claramente que o SARS-CoV-2 não é um vírus construído em laboratório ou manipulado propositalmente".

Uma das evidências que apontam para essa conclusão é a seguinte:

"Enquanto as análises acima sugerem que o SARS-CoV-2 pode se ligar ao [receptor] ACE2 humano com alta afinidade, análises computacionais predizem que a interação não é ideal e que a sequência RBD [Receptor Binding Domain] é diferente daquelas que, para o SARS-CoV, foram demonstradas ótimas para a ligação ao receptor."

Se alguém tivesse de engendrar uma cepa de coronavírus para se ligar com maior especificidade aos receptores  ACE2 humanos, muito provavelmente teria utilizado as soluções otimizadas já conhecidas. 

Só há outra opção: o vírus evoluiu naturalmente. Sendo assim, é interessante notar como a evolução pode encontrar solução diferentes para um mesmo problema (se ligar a receptores eficientemente, no caso). Muitas pessoas são tentadas a olhar como os organismos biológicos resolvem seus problemas e concluir que, invitavelmente, aquelas soluções observadas são as únicas possíveis. 

No caso do SARS-CoV-2, não só o vírus encontrou uma solução diferente. Ela sequer é a mais otimizada. A evolução frequentemente apronta dessas. Ela encontra um caminho, mas nada garante que é o mais curto, o melhor, nem o único possível. Podem haver alternativas menos custosas (em termos de número de mutações, por exemplo), porém mais eficientes. Os criacionistas precisam entender isso, antes de qualquer cálculo de probabilidade tosco. 

No estudo publicado, os autores ressaltam outra característica notável do SARS-CoV-2:

"A proteína spike do SARS-CoV-2 tem um sítio de clivagem (furina) polibásico funcional no limite entre S1 e S2*, [o que foi adquirido] por meio da inserção de 12 nucleotídeos".

*S1 e S2 são domínios da proteína spike. Aliás, são as proteínas spike quem conferem o aspecto de "coroa". 

E daí? Bem, sem entrar nos detalhes, eu posso dizer que os autores argumentam que estudos permitem ligar a presença desse sítio de clivagem com a infectividade do vírus. Tá, mas e daí? 

Temos aqui um exemplo claro que como a evolução é capaz de alterar o genoma, inclusive adicionar "informação genética", seja de forma adaptativa (como parece ser o caso, uma vez que essa inserção pode contribuir para a infectividade do vírus) ou não. Sem mágica, apenas processos naturais. Outro aspecto que já está mais do que na hora dos criacionistas entenderem. 

Mas se entendessem, não seriam criacionistas. 


Mantenham-se bem informados. E cuidem-se!

O artigo:

Andersen, K.G., Rambaut, A., Lipkin, W.I. et al. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nat Med (2020). https://doi.org/10.1038/s41591-020-0820-9. 

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...