terça-feira, 28 de julho de 2020

Sobre o frio do leitãozinho - Os poderes da Edição Gênica



Você pode acreditar ou não, mas o primata que segura o leitãozinho na imagem acima sou eu, com meus 15 ou 16 anos, quando era aluno do curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio, no IFCE, Campus Iguatu, Ceará. Ali vivi uns bons três anos e meio da minha vida. Fiz muitos amigos. Aliás, saudades. Mas não é por motivo de comoção que escrevo agora. 

Essa foto foi "ressuscitada" ontem em outro grupo de WhatsApp que nada tem a ver com o IF (mas com pessoas que amo igualmente). Não imaginei que a fosse usar em outro lugar, a não ser nas redes sociais, onde aproveitei pra ressaltar a minha degradação ao longo dos anos. Hoje, no entanto, lia Hacking the Code of Life e acabei tropeçando em uma informação curiosa que casa bem com a foto. Resolvi escrever. 

A maioria dos mamíferos placentários produz, especialmente no tecido adiposo marrom, uma proteína chamada Proteína Desacopladora 1 ou UCP1 (do inglês Uncoupling Protein 1) que exerce a função de "vazar" prótons através da membrana mais interna das mitocôndrias e, no processo, contribui para a dissipação de energia sob a forma de calor. 

Há cerca de 20 milhões de anos, os suídeos ancestrais viviam em ambientes tropicais ou sub-tropicais. Assim, caso a UCP1 viesse a ter sua função comprometida, isso não afetaria muito a sobrevivência desses organismos, uma vez que nesses ambientes relativamente quentes há pouca necessidade, digamos assim, de um sistema de aquecimento extra. De fato, cientistas estima que por volta desse momento no tempo, um gene UCP1  "corrompido" tomou o lugar da versão normal, funcional. É por isso que os suídeos são atualmente incapazes de produzir a proteína UCP1 funcional. 

Como resultado desse evento evolutivo, nossos porcos domésticos, que hoje habitam diversas áreas do globo, inclusive regiões frias, têm algum problema para lidar com as baixas temperaturas. Aliás, onde o frio é um fator considerável, até 20% dos neonatos podem ter suas vidinhas ceifadas, o que é um belo de um prejuízo para os suinocultores. Para evitar tais baixas, gastam uma grana para manter o maior controle possível da temperatura nas baias onde vivem os leitõezinhos. Leitõezinhos. Sim, essa é a palavra que provavelmente usaria Paulino, meu professor de Suinocultura durante o longínquo ano de 2011. 

Graças às poderosas técnicas de edição gênica (gene editing), pesquisadores foram capazes de inserir uma versão funcional do gene UCP1 em leitões e demonstrar que estes tinham a sua capacidade termogênica melhorada e, como benefício adicional, também exibiam um decréscimo na deposição de gordura, algo desejável para suínos de corte.  

É isso. Post curtinho. Me lembram até as notas de aulas do professor Paulino, exceto que ele as trazia escritas no papel. Aliás, o que ele acharia desse texto? 

Referências

CAREY, Nessa. Hacking the Code of Life: How gene editing will rewrite our futures. Icon Books, 2019.

ZHENG, Qiantao et al. Reconstitution of UCP1 using CRISPR/Cas9 in the white adipose tissue of pigs decreases fat deposition and improves thermogenic capacity. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 114, n. 45, p. E9474-E9482, 2017.

HOU, Lianjie et al. Pig has no uncoupling protein 1. Biochemical and biophysical research communications, v. 487, n. 4, p. 795-800, 2017.

A Origem da Vida: Hipótese autotrófica (Parte 4)




Autor: Gabriel Bueno

O texto 3 da nossa série, que pode ser lido AQUI, terminou de certa forma com um balde de água fria. A hipótese heterotrófica está em sérios apuros, sofrendo com as altas exigências energéticas do universo das moléculas. Hoje, tentaremos desatar esse nó energético para podermos seguir adiante e chegar finalmente ao mundo vivo (ou algo que se pareça com ele).


UMA ORIGEM AUTOTRÓFICA?

Pode parecer difícil para o leitor acreditar que a primeira forma de energia biológica do planeta seja autotrófica. Quando ouvimos esse termo, somos diretamente levados a pensar em fotossíntese, que é um processo complexo (um dos mais complexos da biologia) que utiliza enzimas, organelas celulares, membranas, pigmentos e tudo com o que não podemos contar na origem da vida.

Mas é importante lembrar que há maneiras bastante simples de metabolismo autotrófico, que podem ser tão antigos quanto a própria vida. Diversas linhagens de bactérias e arqueas fazem quimiossíntese, processo em que se utiliza compostos inorgânicos do ambiente para gerar energia. Esse é o caso de bactérias que oxidam sulfeto (H2S) para gerar energia e para formar moléculas orgânicas a partir de carbono inorgânico (CO2).

A SOLUÇÃO PERFEITA

No ultimo texto mostramos que o principal ponto problemático da hipótese heterotrófica é a energia. Tanto para disponibilizar carbono para a sopa primordial, quanto para fazer as primeiras reações acontecerem, as fontes de energia naquele contexto eram altamente escassas. Além disso, a exigência energética cresce exponencialmente conforme a bioquímica passa a ficar mais complexa, pois os replicadores precisam de cada vez mais carbono e energia para se replicar.

A hipótese autotrófica reduz a dependência de fontes externas instáveis de energia (como os relâmpagos na sopa primordial) e passa grande parte da responsabilidade de geração de energia para o próprio sistema "protovivo". O papel do ambiente não é mais o de fornecer a energia para a origem do carbono orgânico e reações, ao invés disso ele pode fornecer condições físico-químicas favoráveis para que o próprio sistema "se vire".

Em resumo, com a hipótese autotrófica poderemos deixar de lado a fúria das fontes de energia agressivas (como radiação UV) e inconstantes (como as descargas elétricas) e nos apoiar em um fornecimento de compostos úteis, simples e abundantes na terra primitiva.

CONSEGUINDO OS INGREDIENTES

No texto passado enumeramos 5 ingredientes pra origem da vida: fluxo de carbono reativo, energia livre, catalizadores, uma maneira de compartimentalizar o sistema e uma forma de organizar a informação. Vamos ver de maneira simplificada como o sistema autotrófico lida com cada um desses fatores em comparação com a hipótese heterotrófica concorrente.

FLUXO DE CARBONO

Como vimos no texto passado, a hipótese heterotrófica tem sérias dificuldades em fornecer energia suficiente pra sustentar esse fluxo - e essa exigências cresce exponencialmente conforme a bioquímica avança em complexidade. No fim das contas ela acaba apelando pra soluções desesperadas e ineficazes.

Enquanto isso, no contexto autotrófico, dadas certas condições que discutiremos em um texto futuro, o próprio sistema pode utilizar diretamente o carbono inorgânico, abundante no ambiente, para gerar carbono orgânico.

ENERGIA LIVRE

Esse é um outro ponto crítico para a hipótese heterotrófica, pois o gasto energético para que replicadores se multipliquem de forma indiscriminada é brutal,como discorremos no texto passado.

Já para um sistema autotrófico, a energia para reações químicas vem da oxidação de compostos do meio, de modo que não é necessário a assimilação de outros sistemas ao redor ou um input energético externo. O que simplifica muito o problema.

CATALIZADORES

Essa é uma das exigências na qual a hipótese heterotrófica certamente está mais confortável. As ribozimas (moléculas de RNA com poder de catálise) fazem o papel de catalizador para as reações químicas. Ou seja, o próprio sistema possui poder de catálise resultando em um modelo simples e eficiente. Bom, na verdade também há um problema nesse raciocínio.

Certamente nenhum pesquisador do tema de origem da vida negaria a importância das ribozimas na evolução molecular. Elas certamente cumpriram esse papel central em algum momento entre as primeiras moléculas orgânicas e a vida de fato. Porém, temos que levar em consideração que as ribozimas já são moléculas bastante complexas de modo que depender apenas delas como catalizadoras gera um problema: o que catalizava reações antes delas? Quem catalizou as reações que levaram a formação das primeiras ribozimas?

Nesse ponto, só há uma resposta possível: catalizadores inorgânicos.

Já é um fato conhecido que diversos íons são essenciais para reações químicas inorgânicas e orgânicas. Na bioquímica moderna, muitas vezes eles se associam a enzimas, otimizando o poder de catálise destas. Na origem da vida, as reações poderiam ser catalizadas inicialmente por íons e, posteriormente, por uma associação entre pequenos peptídeos (que se formam por autocatálise) e esses metais. 

É claro que essa solução também pode ser uma saída para a hipótese heterotrófica, porém é importante ressaltar que as concentrações de metais na superfície dos mares é bastante baixa devido à sua densidade. Isso força uma uma restrição na gama de ambientes nos quais a origem da vida poderia ocorrer, caso ela tenha tido que utilizar esse tipo de catalizador.

COMPARTIMENTALIZAÇÃO

Dentre os nossos ingredientes, esse  certamente é o ingrediente mais simples. A compartimentalização emerge sem muitos desafios, desde que haja fluxo de carbono e energia. Os fosfolipídeos - moléculas que formam membranas celulares - têm um comportamento químico muito peculiar, que auxilia na formação de vesículas. Assim que se encontram em concentração viável, elas tendem espontaneamente a se agregar e formar pequenas "vesículas", como mostra a figura abaixo:

Esquema de formação espontâneo de micelas
Esquema de formação de micelas. Imagem disponível aqui.


Uma vez formadas, essas estruturas podem servir como mecanismo eficiente para isolar as moléculas orgânicas do meio externo, compartimentalizando a vida.

INFORMAÇÃO

A informação é o grande trunfo da hipótese heterotrófica. A molécula de RNA, componente central da teoria, terai essencialmente a função de armazenar informação (assim como ainda o faz, nas células modernas). Mas, assim como no caso das ribozimas, esse tipo de organização depende de um grau avançado de complexidade bioquímica e deve ter sido um passo intermediário na origem da vida e não seu cenário inicial.

Antes do advento do replicador primordial, a organização dos sistemas "protovivos" não emanava das modernas instruções advindas de biomoléculas como o RNA. Ela deveria ter vindo única e exclusivamente de propriedades físico-químicas da natureza, na forma de sistemas que o físico belga Ilya Prigogine batizou de "estruturas dissipativas".


AS ESTRUTURAS DISSIPATIVAS

Em todos os cantos do universo nos deparamos com estruturas com um grau de organização bastante complexo mas que não são organizadas por informações codificadas, mas sim fruto do comportamento da natureza. Pense em uma chaleira no fogo: enquanto a água é aquecida, há um movimento contínuo ocorrendo chamado "corrente de convecção". Esse movimento é causado apenas pelo comportamento físico da água e a diferença de temperatura nos diferentes pontos da chaleira. Uma vez cortado o suprimento de energia, a corrente para e o sistema volta ao equilíbrio.

O exemplo da chaleira pode parecer simples demais, mas o mesmo princípio que rege essa organização forma também estruturas mais complexas como os furacões, tornados, correntes marítimas e células de circulação do ar atmosférico (as famosas células de Hadley).

À esquerda, imagem do furacão Lane, vista da ISS. À direita, esquema mostrando as células de Hadley.
Ambas são estruturas dissipativas complexas. Imagens aqui e aqui,

Para termos uma estrutura dissipativa é necessário apenas um fluxo contínuo de matéria e energia que mantenha o sistema longe do equilíbrio. Sei que o papo pode ter ficado um pouco confuso nessa seção, mas a mensagem que preciso que você, leitor(a), entenda, é que um contexto que ofereça um fluxo contínuo de matéria e energia pode gerar uma organização estável - que se mantenha por tempo suficiente - gerando um ambiente favorável para que ocorra a evolução molecular e o início da vida.

OBS: Para aqueles que queiram saber mais sobre sistemas dissipativos e seus exemplos dentro da biologia, vou deixar nas referências um link para uma publicação da Philosophical Transactions of the Royal Society A .

CONCLUSÃO

Chegamos ao fim do texto de hoje com um cenário teórico bem delineado para a origem da vida. Em resumo:

1- A vida deve ter iniciado como um sistema longe do equilíbrio, onde um fluxo de matéria e energia contínuo o manteve estável a ponto de favorecer a formação das primeiras moléculas orgânicas.

2- Esse sistema era autotrófico e utilizava compostos inorgânicos do ambiente para extrair energia para reações e para suprir sua demanda por carbono reativo.

3- Íons presentes no ambiente foram utilizados como primeiros catalizadores de reações químicas e depois se associaram a pequenos peptídeos, aumentando seu poder de catálise.

4- Depois de algum tempo teremos a possibilidade de formação de vesículas polipeptídicas e, posteriormente, um aumento da complexidade molecular.

Todo esse passo a passo foi apresentado até o momento como um modelo teórico. Mas será que existe algum ambiente que cumpra as exigências desse modelo? Onde está o berço da vida na Terra? No próximo texto pretendo responder essas perguntas, mostrando como esse modelo é viável não apenas na teoria, mas também na prática.

Espero que tenham gostado do texto de hoje e espero vocês no próximo. Até lá!

REFERÊNCIAS

1- Nick Lane - The vital question. Capítulo 3.

2- Sobre estruturas dissipativas na biologia: 
https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rsta.2017.0376#d3e248


quarta-feira, 15 de julho de 2020

A mediana não é a mensagem – por Stephen Jay Gould

Capa. Na imagem, Stephen Jay Gould (1941-2002) em Eleuthera, Bahamas, janeiro de 1982, portanto antes de ser diagnosticado com mesotelioma. A imagem da qual fiz o recorte se encontra disponível aqui

Recentemente minha vida cruzou, de maneira pessoal, dois dos famosos ditos de Mark Twain. Um eu deixarei para o final. O outro (por vezes atribuído a Disraeli) identifica três tipos de mentiras, cada uma pior que a outra anterior – mentiras, malditas mentiras, e estatística.

Considere o exemplo padrão de exagerar a verdade com números – um caso bastante relevante para a minha narrativa. A estatística reconhece diferentes medidas de tendência central. A média representa nosso conceito comum de uma tendência central geral – some todos os itens e os divida por um número (100 barras de chocolate para cinco crianças, em um mundo justo, equivale a uma média de 20 barras por criança). A mediana, uma medida de tendência central diferente, é o ponto que marca meio do caminho. Se alinharmos cinco crianças por altura, a criança mediana é menor que duas e maior que as outras duas (que podem ter problemas pra obter sua parcela média de chocolate). Um político no poder pode dizer com orgulho que “a renda média de nossos cidadãos é 15 mil dólares por ano”. E o líder da oposição pode retaliar, dizendo que, apesar disso, “metade dos nossos cidadãos ganha menos de 10 mil dólares por ano”. Ambos podem estar corretos, mas nenhum cita uma estatística com objetividade imparcial. O primeiro invoca a média, o segundo a mediana. Médias são mais altas que medianas em casos assim porque um milionário pode sobrepesar centenas de pessoas pobres no estabelecimento de uma média, mas pode equilibrar apenas um mendicante no cálculo de uma mediana.

A razão maior pela qual há desconfiança ou desprezo pela estatística é mais preocupante. Muitas pessoas fazem uma separação desafortunada e inválida entre coração e mente, sentimento e intelecto. Em algumas tradições contemporâneas, encorajadas por atitudes centradas estereotipicamente no sul da Califórnia, sentimentos são exaltados como mais “reais” e a única base adequada para a ação, enquanto o intelecto é reduzido a elitismo obsoleto. A estatística, nessa dicotomia absurda, muitas vezes se torna o símbolo do inimigo. Como escreveu Hilaire Belloc, “as estatísticas são o triunfo do método quantitativo, e o método quantitativo é a vitória da esterilidade e da morte”.   

Esta é uma história pessoal de estatística, adequadamente interpretada, como profundamente nutritiva e vivificante. Ela declara guerra santa à desclassificação do intelecto, contando uma pequena história para ilustrar a utilidade do conhecimento bruto e acadêmico da ciência. Coração e cabeça são pontos focais de um corpo, de uma personalidade. 

Em julho de 1982, tomei conhecimento que sofria de mesotelioma peritonial, um câncer raro e grave, geralmente associado à exposição ao amianto. Quando revivi após a cirurgia, fiz minha primeira pergunta à minha médica e quimioterapeuta: "Qual é a melhor literatura técnica sobre mesotelioma?" Ela respondeu, com um toque de diplomacia (a única evasiva que ela já fez da franqueza direta), que a literatura médica não continha nada que realmente valesse a pena ler.

É claro, tentar manter um intelectual longe da literatura funciona tão bem quanto recomendar castidade aos Homo sapiens, o primata mais sexy de todos. Assim que consegui andar, fui direto para a biblioteca médica Countway, Harvard, e inseri “mesotelioma” no programa de pesquisa bibliográfica do computador. Uma hora depois, cercado pela literatura mais recente sobre mesotelioma peritonial, percebi, com um entalo na garganta, por que minha médica havia oferecido esse conselho humano. A literatura não poderia ter sido mais brutalmente clara: o mesotelioma é incurável, com uma mortalidade mediana de apenas oito meses após a descoberta. Fiquei atordoado por cerca de quinze minutos, depois sorri e disse para mim mesmo: é por isso que eles não me deram nada para ler. Então minha mente começou a funcionar novamente, e ainda bem.

Se um pouco de aprendizado pudesse alguma vez ser perigoso, encontrei um exemplo clássico. Atitude é claramente importante no combate ao câncer. Não sabemos por que (da minha perspectiva materialista à moda antiga, desconfio que os estados mentais podem influenciar o sistema imunológico). Mas compare pessoas com o mesmo câncer, idade, classe, saúde e status socioeconômico e, em geral, tendem a viver mais aquelas pessoas com atitudes positivas, com uma vontade e um propósito fortes de viver, com o compromisso de lutar e com uma resposta ativa para ajudar seu próprio tratamento, não apenas uma aceitação passiva de qualquer coisa que os médicos dizem. Alguns meses depois, perguntei a Sir Peter Medawar, meu guru científico pessoal e Nobelista em imunologia, qual seria a melhor receita para o sucesso contra o câncer. "Uma personalidade otimista", ele respondeu. Felizmente (já que não é possível reconstruir-se a curto prazo e com um objetivo definido), estou, se é que há algo, calmo e confiante justamente assim.

Daí o dilema para médicos humanos: como a atitude é tão crítica, deve ser anunciada uma conclusão tão sombria, especialmente porque poucas pessoas têm entendimento suficiente das estatísticas para avaliar o que as declarações realmente significam? Dos anos de experiência com a evolução em pequena escala de caracóis terrestres das Bahamas, quantitativamente tratados, desenvolvi esse conhecimento técnico – e estou convencido de que ele desempenhou um papel importante em salvar minha vida. Conhecimento é realmente poder, como proclamou Francis Bacon.

O problema pode ser enunciado de forma breve: o que “mortalidade mediana de oito meses” significa em nosso vocabulário do dia-a-dia? Suspeito que a maioria das pessoas, sem treinamento em estatística, leia a afirmação como "provavelmente morrerei em oito meses" – justamente a conclusão que deve ser evitada, tanto porque essa formulação é falsa, quanto porque a atitude é muito importante.

Evidentemente, não fiquei muito feliz, mas também não li a declaração dessa maneira vernacular. Meu treinamento técnico estabeleceu uma perspectiva diferente sobre "mortalidade mediana de oito meses". O argumento pode parecer sutil, mas as consequências podem ser profundas. Além disso, essa perspectiva incorpora a maneira distinta de pensar em meu próprio campo da biologia evolutiva e da história natural.

Ainda carregamos a bagagem histórica de uma herança platônica que busca essências nítidas e limites definidos. (Assim, esperamos encontrar um "começo de vida" ou "definição de morte" inequívoco, embora a natureza frequentemente nos chegue como contínuos irredutíveis.) Essa herança platônica, com ênfase em distinções claras e entidades imutáveis ​​separadas, nos leva a ver medidas estatísticas de tendência central de maneira errada, de fato opostas à interpretação apropriada em nosso mundo real de variação, tonalidade e contínuo. Em resumo, vemos médias e medianas como "realidades" nuas e a variação que permite seu cálculo como um conjunto de medidas transitórias e imperfeitas dessa essência oculta. Se a mediana é a realidade e a variação em torno da mediana apenas um dispositivo para cálculo, então a conclusão "provavelmente estarei morto em oito meses" pode passar como uma interpretação razoável.

Mas todos os biólogos evolutivos sabem que a variação em si é a única essência irredutível da natureza. A variação é a dura realidade, não um conjunto de medidas imperfeitas para uma tendência central. Médias e medianas são as abstrações. Portanto, observei as estatísticas do mesotelioma de maneira bem diferente – e não apenas porque sou otimista e tendo a ver a rosquinha de massa frita em vez do buraco, mas principalmente porque sei que a variação em si é a realidade. Eu tive que me localizar em meio à variação.

Quando soube da mediana de oito meses, minha primeira reação intelectual foi: Tudo bem, metade das pessoas viverá mais; agora, quais são minhas chances de estar nessa metade? Eu li por uma hora furiosa e nervosa e concluí, com alívio: muito bom. Eu possuía todas as características que conferiam uma probabilidade de vida mais longa: eu era jovem; minha doença havia sido reconhecida em um estágio relativamente inicial; eu receberia o melhor tratamento médico do país; eu tinha o mundo pelo qual viver; eu sabia ler os dados corretamente e não me desesperar.

Outro ponto técnico acrescentou ainda mais consolo [figura 1]. Reconheci imediatamente que a [a curva de] distribuição da variação sobre a mediana de oito meses quase certamente seria o que os estatísticos chamam de "assimétrica positiva". (Em uma distribuição simétrica, o perfil de variação à esquerda da tendência central é uma imagem espelhada da variação à direita. As distribuições distorcidas são assimétricas, com a variação se estendendo mais em uma direção que a outra – assimétrica negativa [com cauda esquerda], se estendida à esquerda; ou assimétrica positiva [com cauda direita], se esticada para a direita.) A distribuição da variação tinha que ser assimétrica positiva, eu raciocinei. Afinal, a esquerda da distribuição contém um limite inferior irrevogável de zero (já que o mesotelioma só pode ser identificado na morte ou antes). Assim, existe pouco espaço para a metade inferior (ou esquerda) da distribuição – ela deve ser comprimida entre zero e oito meses. Mas a metade superior (ou direita) pode se estender por anos e anos, mesmo que por fim ninguém sobreviva. A distribuição deveria ser assimétrica positiva, e eu precisava saber por quanto tempo a cauda se estendia – pois eu já havia concluído que meu perfil favorável me tornava um bom candidato para a metade direita da curva.

Figura 1. Uma curva assimétrica positiva. "Diz-se que a assimetria é positiva quando predominam os valores mais altos das OBSERVAÇÕES, isto é, a Distribuição ou Curva de Frequência tem uma “cauda” mais longa à direita da ordenada (frequência) máxima do que à esquerda". Imagem e texto explicativo disponíveis aqui. 

A distribuição era, de fato, fortemente assimétrica positiva, com uma cauda longa (embora [relativamente] pequena) que se estendia por vários anos para além da mediana de oito meses. Não vi razão para não estar naquela cauda pequena e soltei um longo suspiro de alívio. Meu conhecimento técnico havia ajudado. Eu tinha lido o gráfico corretamente. Eu fiz a pergunta certa e encontrei as respostas. Eu tinha obtido, com toda probabilidade, o mais precioso de todos os presentes possíveis dadas as circunstâncias – tempo substancial. Não precisei parar e seguir imediatamente a ordem de Isaías a Ezequias – Põe em ordem a tua casa, porque morrerás, e não viverás [Isaías 38:1]. Eu teria tempo para pensar, planejar e lutar.

Um último ponto sobre distribuições estatísticas. Elas se aplicam apenas a um conjunto prescrito de circunstâncias – nesse caso, a sobrevivência com mesotelioma sob regime dos modos convencionais de tratamento. Se as circunstâncias mudarem, a distribuição poderá sofrer alterações. Fui submetido a um protocolo experimental de tratamento e, se houver sorte, estarei na primeira coorte de uma nova distribuição com alta mediana e uma cauda direita que se estende até a morte por causas naturais em idade avançada. Até agora, tudo bem [1].

Tornou-se, na minha opinião, um pouco moda demais considerar a aceitação da morte como algo equivalente à dignidade intrínseca. É claro que concordo com o pregador de Eclesiastes de que há um tempo para amar e um tempo para morrer [Eclesiastes 3:1-9] – e quando meu novelo acabar, espero enfrentar o fim com calma e do meu jeito. Na maioria das situações, no entanto, prefiro a visão mais marcial de que a morte é o inimigo supremo – e não encontro nada de reprovável naqueles que se enfurecem poderosamente contra a cessação da luz.

As armas de batalha são numerosas e nada mais eficaz que o humor. Minha morte foi anunciada em uma reunião de meus colegas na Escócia, e eu quase senti o delicioso prazer de ler meu obituário escrito por um dos meus melhores amigos (esse fulano ficou desconfiado e checou; ele também é estatístico e não esperava me encontrar tão longe na cauda esquerda). Ainda assim, o incidente rendeu minha primeira boa risada após o diagnóstico. Pense, eu quase consegui repetir a linha mais famosa de Mark Twain: os relatos da minha morte são muito exagerados [2].

***




[1] Gould faleceu em 2002, aos 60 anos, em decorrência de um adenocarcinoma pulmonar; esse ensaio foi publicado originalmente em 1985, mas “até agora, tudo bem” foi adicionado como nota de rodapé quando o ensaio foi incluído no livro Bully for Brontosaurus  (1991).

[2] Desde que escrevi isso, minha morte foi relatada em duas revistas europeias, com cinco anos de diferença. Fama volat (e dura muito tempo). Eu chiei muito alto nas duas vezes e exigi uma retração; acho que simplesmente não tenho o savoir faire do Sr. Clemens. Nota do tradutor: Gould adicionou essa nota de rodapé quando o ensaio foi incluído no livro Bully for Brontosaurus (1991). 


***

O texto que você leu é uma tradução do ensaio "the median isn't the message" por Stephen Jay Gould. Você pode citá-lo assim:


GOULD, Stephen Jay. A mediana não é a mensagem. Trad. Coelho Pré-CambrianoDiscover, v. 6, n. 6, p. 40-42, 1985.

Se preferir, leia o original:

GOULD, Stephen Jay. The median isn’t the message. AMA Journal of Ethics, v. 15, n. 1, p. 77-81, 2013. Republicado aqui.

domingo, 5 de julho de 2020

A Origem da Vida: Os ingredientes da vida (Parte 3)


Capa. Ao fundo, concepção artística da Terra primitiva. Imagem disponível aqui.


Autor: Gabriel Bueno

No texto passado (que você pode ser lido AQUI) nós falamos sobre a hipótese heterotrófica da origem da vida. A minha sugesão é que o leia, para compreender melhor o texto de hoje. No fim do texto passado enumerei alguns empecilhos no que diz respeito à hipótese heterotrófica e deixei um problema (o pior deles) para comentar hoje.

Porém, antes de continuar com a hipótese heterotrófica, quero antes enumerar os elementos necessários para o surgimento da vida. Todos prontos? Bora lá!


MATÉRIA, ENERGIA, TEMPO, INFORMAÇÃO E COMPARTIMENTALIZAÇÃO

Apesar do título chamativo dessa sessão, você verá que os ingredientes para a vida são muito mais palpáveis que "matéria" e "tempo" (mas não tão elegantes quanto). Eles são a base pra vida funcionar, ingredientes sem os quais não se pode viver plenamente.

Se olharmos para um organismo vivo, no nível molecular, veremos que há a exigência de pelo menos 5 componentes básicos, que são bastante interdependentes:

1- Matéria: para o mundo vivo, matéria é, em grande parte, um fluxo de carbono orgânico disponível para a construção de todas as moléculas do universo bioquímico. Organismos modernos ou transformam carbono inorgânico por meio de quimiossíntese/fotossíntese (autótrofos) ou consomem carbono orgânico diretamente (comendo o coleguinha vivo ao lado).

2- Energia: para que o carbono e outros elementos disponíveis possam ser combinadas para a formação das moléculas orgânicas (DNA, proteínas, açúcares, lipídios e etc). As fontes comuns utilizadas pelos seres vivos são a luz, a redução de metais e a quebra de compostos orgânicos adquiridos comendo o coleguinha.

3- Tempo (ou melhor, meio de economizá-lo): praticamente todas as reações bioquímicas que ocorrem no organismo, contam com uma ajudinha de catalizadores que vão fazer com reações bioquímicas aconteçam e as moléculas possam ser processadas, criadas ou destruídas em tempo hábil. Em geral utiliza-se íons diversos, enzimas e frequentemente uma combinação de ambos.

4- Informação: Uma forma de armazenar informações que possibilitem que o sistema possa se organizar, mediar processos e se replicar. Normalmente utiliza-se as moléculas de DNA e/ou RNA.

5- Compartimentalização: Uma forma de se isolar do seu meio. Modernamente são utilizadas membranas fosfolipídicas, capas proteicas ou paredes celulares diversas.


MODO DE PREPARO

Os 5 ingredientes listados acima são relativamente simples de serem adquiridos por um organismo vivo atual. Todos eles estão ou no próprio organismo (informação contida no DNA);  nos seres e ambiente a sua volta (energia e carbono biodisponível); ou já se possui a maquinaria e as informações para construí-los. Porém, tentar imaginar como seria possível transitar do primitivo mundo não-vivo - onde só existem minerais e compostos inorgânicos simples - para o complexo mundo vivo é muito mais complicado.

Por simplicidade da teoria, precisamos imaginar que houveram intermediários mais simples da vida, que inicialmente poderiam abrir mão de alguns desses ingredientes, sem que o processo saísse completamente de controle. Esses sistemas "protovivos" então poderiam adquirir posteriormente um ou mais dos ingredientes faltantes, produzindo por fim os primeiros organismos vivos.

Ora, mas a hipótese heterotrófica não propõe algo desse tipo? Sim, mas com dois problemas graves: falta-lhe abundância de matéria e uma tremenda dose de energia.


O PROBLEMA DA RECEITA HETEROTRÓFICA

Podemos resumir a dinâmica da hipótese heterotrófica da seguinte forma:

a) compostos da atmosfera reagem entre si formando biomoléculas na água.

b) depois de várias rodadas do processo anterior se acumulam biomoléculas na famosa sopa primordial.

c) essas moléculas reagem entre si e aumentam de tamanho e complexidade.

d) surge o mundo de RNA, onde os replicadores se multiplicam loucamente, consumindo material orgânico do próprio meio no processo.

Na teoria essa dinâmica poderia gerar: informação (RNA, RNA metilado ou PNA), poder de catálise (através das ribozimas) e compostos lipídicos que poderiam servir como uma membrana. Mas será que essa dinâmica é sustentável o suficiente para podermos escalar a complexidade a ponto de gerar vida? Provavelmente não.

O problema aqui é que, no modelo heterotrófico, quanto mais os replicadores se replicam, mais carbono orgânico precisa ser injetado na sopa (afinal, é ele que irá compor a estrutura das novas réplicas). A quantidade de energia necessária pra sustentar esse aporte é, em ultima instância, improvável de ser fornecida. E essa é uma verdade inconveniente, independente da fonte proposta pelos defensores desse modelo.


O PROBLEMA ENERGÉTICO

Dentre as fontes de energia propostas pelos defensores da hipótese heterotrófica para fornecer carbono à sopa primordial, vamos aqui focar em duas: descargas elétricas e radiação ultravioleta.

A FORÇA DOS RAIOS

Descargas elétricas são a fonte de energia mais clássica proposta para sustentar o início da vida no planeta, tanto é assim que são elas que fornecem energia no famoso experimento de Miller-Urey e em muitas das variações modernas do experimento. Apesar de tremendamente potente, uma descargas elétrica não é um evento frequente o suficiente pra sustentar a introdução massiva de carbono.

Segundo cálculos do nosso autor-base Nick Lane, para sustentar uma dinâmica bioquímica singela, utilizando a eficiência das células modernas, seriam necessários 4 raios por quilometro quadrado por segundo. No Brasil (país com maior incidência de raios do mundo), caem 9 raios por quilometro quadrado POR ANO! O número exigido, portanto, é 14 milhões de vezes a média de raios que atinge o Brasil. Definitivamente essa não parece uma solução viável, por mais furiosa que fosse a atmosfera da Terra primitiva.

ENERGIA SOLAR NA ORIGEM DA VIDA

Raios UV são provavelmente a fonte mais abundante e constante de energia na Terra. No nosso contexto de origem da vida isso era um fato ainda mais gritante, uma vez que na 4 bilhões de anos atrás a camada de ozônio não existia e, portanto, não havia filtração dos raios emitidos pelo jovem sol.

Os raios UV, reagindo com gases expelidos por vulcões, poderiam gerar cianeto que serve muito bem como fonte de carbono orgânico a ser disponibilizado à interminável e voraz dança bioquímica do mundo de RNA. Além disso alguns experimentos conseguiram sintetizar nucleotídeos através da quebra de cianeto via radiação UV. Dois problemas com uma tacada só.

Mas as vantagens de se optar pela abundância dos raios ultravioleta, vem um sério ônus: raios UV são conhecidos assassinos de moléculas orgânicas. Essa é uma verdade que se demonstra com evidências cotidianas.

Um dos cânceres mais comum no planeta é o melanoma (câncer de pele). Sua principal causa são mutações no DNA das células da pele, causadas pela alta exposição a radiação ultravioleta. Se ainda hoje - com uma protetora camada de ozônio pairando sobre nós, nosso DNA protegido por 2 membranas celulares e um poderoso sistema de reparo de DNA - ainda há dano UV tão grande, imagine só o estrago que essa radiação não poderiam causar nas frágeis moléculas da sopa primordial?

Mesmo que essa estratégia fosse estável, sob qualquer taxa razoável de formação de cianeto, sua concentração estável a 25°C seria por volta de 0.002g/L (calculado por Lane, ver referência), o que é muito pouco para fundação da bioquímica primordial.


CONCLUSÃO

Ainda que não esteja morta, a hipótese heterotrófica de origem da vida se encontra hoje em sérios apuros. Apesar de evidências in vitro da síntese de aminoácidos e nucleotídeos, o contexto físico-químico da Terra primitiva, especialmente em termos energéticos, não parece cooperar com essa ideia.

"Ah, mas você só criticou a hipótese heterotrófica,não trouxe nenhuma alternativa!"

Calma lá meu jovem, é exatamente sobre isso que vamos tratar no próximo texto dessa série. Apresentaremos brevemente a hipótese autotrófica, que será a nossa base pra discutir uma possibilidade pra desatar o complexo nó da origem da vida.

Espero você na próxima! Até lá!


REFERÊNCIAS

1- The vital question. Capítulo 3. 

2- Referência dos raios no Brasil: https://bityli.com/1CoYB (com dados do INPE)

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...