domingo, 5 de julho de 2020

A Origem da Vida: Os ingredientes da vida (Parte 3)


Capa. Ao fundo, concepção artística da Terra primitiva. Imagem disponível aqui.


Autor: Gabriel Bueno

No texto passado (que você pode ser lido AQUI) nós falamos sobre a hipótese heterotrófica da origem da vida. A minha sugesão é que o leia, para compreender melhor o texto de hoje. No fim do texto passado enumerei alguns empecilhos no que diz respeito à hipótese heterotrófica e deixei um problema (o pior deles) para comentar hoje.

Porém, antes de continuar com a hipótese heterotrófica, quero antes enumerar os elementos necessários para o surgimento da vida. Todos prontos? Bora lá!


MATÉRIA, ENERGIA, TEMPO, INFORMAÇÃO E COMPARTIMENTALIZAÇÃO

Apesar do título chamativo dessa sessão, você verá que os ingredientes para a vida são muito mais palpáveis que "matéria" e "tempo" (mas não tão elegantes quanto). Eles são a base pra vida funcionar, ingredientes sem os quais não se pode viver plenamente.

Se olharmos para um organismo vivo, no nível molecular, veremos que há a exigência de pelo menos 5 componentes básicos, que são bastante interdependentes:

1- Matéria: para o mundo vivo, matéria é, em grande parte, um fluxo de carbono orgânico disponível para a construção de todas as moléculas do universo bioquímico. Organismos modernos ou transformam carbono inorgânico por meio de quimiossíntese/fotossíntese (autótrofos) ou consomem carbono orgânico diretamente (comendo o coleguinha vivo ao lado).

2- Energia: para que o carbono e outros elementos disponíveis possam ser combinadas para a formação das moléculas orgânicas (DNA, proteínas, açúcares, lipídios e etc). As fontes comuns utilizadas pelos seres vivos são a luz, a redução de metais e a quebra de compostos orgânicos adquiridos comendo o coleguinha.

3- Tempo (ou melhor, meio de economizá-lo): praticamente todas as reações bioquímicas que ocorrem no organismo, contam com uma ajudinha de catalizadores que vão fazer com reações bioquímicas aconteçam e as moléculas possam ser processadas, criadas ou destruídas em tempo hábil. Em geral utiliza-se íons diversos, enzimas e frequentemente uma combinação de ambos.

4- Informação: Uma forma de armazenar informações que possibilitem que o sistema possa se organizar, mediar processos e se replicar. Normalmente utiliza-se as moléculas de DNA e/ou RNA.

5- Compartimentalização: Uma forma de se isolar do seu meio. Modernamente são utilizadas membranas fosfolipídicas, capas proteicas ou paredes celulares diversas.


MODO DE PREPARO

Os 5 ingredientes listados acima são relativamente simples de serem adquiridos por um organismo vivo atual. Todos eles estão ou no próprio organismo (informação contida no DNA);  nos seres e ambiente a sua volta (energia e carbono biodisponível); ou já se possui a maquinaria e as informações para construí-los. Porém, tentar imaginar como seria possível transitar do primitivo mundo não-vivo - onde só existem minerais e compostos inorgânicos simples - para o complexo mundo vivo é muito mais complicado.

Por simplicidade da teoria, precisamos imaginar que houveram intermediários mais simples da vida, que inicialmente poderiam abrir mão de alguns desses ingredientes, sem que o processo saísse completamente de controle. Esses sistemas "protovivos" então poderiam adquirir posteriormente um ou mais dos ingredientes faltantes, produzindo por fim os primeiros organismos vivos.

Ora, mas a hipótese heterotrófica não propõe algo desse tipo? Sim, mas com dois problemas graves: falta-lhe abundância de matéria e uma tremenda dose de energia.


O PROBLEMA DA RECEITA HETEROTRÓFICA

Podemos resumir a dinâmica da hipótese heterotrófica da seguinte forma:

a) compostos da atmosfera reagem entre si formando biomoléculas na água.

b) depois de várias rodadas do processo anterior se acumulam biomoléculas na famosa sopa primordial.

c) essas moléculas reagem entre si e aumentam de tamanho e complexidade.

d) surge o mundo de RNA, onde os replicadores se multiplicam loucamente, consumindo material orgânico do próprio meio no processo.

Na teoria essa dinâmica poderia gerar: informação (RNA, RNA metilado ou PNA), poder de catálise (através das ribozimas) e compostos lipídicos que poderiam servir como uma membrana. Mas será que essa dinâmica é sustentável o suficiente para podermos escalar a complexidade a ponto de gerar vida? Provavelmente não.

O problema aqui é que, no modelo heterotrófico, quanto mais os replicadores se replicam, mais carbono orgânico precisa ser injetado na sopa (afinal, é ele que irá compor a estrutura das novas réplicas). A quantidade de energia necessária pra sustentar esse aporte é, em ultima instância, improvável de ser fornecida. E essa é uma verdade inconveniente, independente da fonte proposta pelos defensores desse modelo.


O PROBLEMA ENERGÉTICO

Dentre as fontes de energia propostas pelos defensores da hipótese heterotrófica para fornecer carbono à sopa primordial, vamos aqui focar em duas: descargas elétricas e radiação ultravioleta.

A FORÇA DOS RAIOS

Descargas elétricas são a fonte de energia mais clássica proposta para sustentar o início da vida no planeta, tanto é assim que são elas que fornecem energia no famoso experimento de Miller-Urey e em muitas das variações modernas do experimento. Apesar de tremendamente potente, uma descargas elétrica não é um evento frequente o suficiente pra sustentar a introdução massiva de carbono.

Segundo cálculos do nosso autor-base Nick Lane, para sustentar uma dinâmica bioquímica singela, utilizando a eficiência das células modernas, seriam necessários 4 raios por quilometro quadrado por segundo. No Brasil (país com maior incidência de raios do mundo), caem 9 raios por quilometro quadrado POR ANO! O número exigido, portanto, é 14 milhões de vezes a média de raios que atinge o Brasil. Definitivamente essa não parece uma solução viável, por mais furiosa que fosse a atmosfera da Terra primitiva.

ENERGIA SOLAR NA ORIGEM DA VIDA

Raios UV são provavelmente a fonte mais abundante e constante de energia na Terra. No nosso contexto de origem da vida isso era um fato ainda mais gritante, uma vez que na 4 bilhões de anos atrás a camada de ozônio não existia e, portanto, não havia filtração dos raios emitidos pelo jovem sol.

Os raios UV, reagindo com gases expelidos por vulcões, poderiam gerar cianeto que serve muito bem como fonte de carbono orgânico a ser disponibilizado à interminável e voraz dança bioquímica do mundo de RNA. Além disso alguns experimentos conseguiram sintetizar nucleotídeos através da quebra de cianeto via radiação UV. Dois problemas com uma tacada só.

Mas as vantagens de se optar pela abundância dos raios ultravioleta, vem um sério ônus: raios UV são conhecidos assassinos de moléculas orgânicas. Essa é uma verdade que se demonstra com evidências cotidianas.

Um dos cânceres mais comum no planeta é o melanoma (câncer de pele). Sua principal causa são mutações no DNA das células da pele, causadas pela alta exposição a radiação ultravioleta. Se ainda hoje - com uma protetora camada de ozônio pairando sobre nós, nosso DNA protegido por 2 membranas celulares e um poderoso sistema de reparo de DNA - ainda há dano UV tão grande, imagine só o estrago que essa radiação não poderiam causar nas frágeis moléculas da sopa primordial?

Mesmo que essa estratégia fosse estável, sob qualquer taxa razoável de formação de cianeto, sua concentração estável a 25°C seria por volta de 0.002g/L (calculado por Lane, ver referência), o que é muito pouco para fundação da bioquímica primordial.


CONCLUSÃO

Ainda que não esteja morta, a hipótese heterotrófica de origem da vida se encontra hoje em sérios apuros. Apesar de evidências in vitro da síntese de aminoácidos e nucleotídeos, o contexto físico-químico da Terra primitiva, especialmente em termos energéticos, não parece cooperar com essa ideia.

"Ah, mas você só criticou a hipótese heterotrófica,não trouxe nenhuma alternativa!"

Calma lá meu jovem, é exatamente sobre isso que vamos tratar no próximo texto dessa série. Apresentaremos brevemente a hipótese autotrófica, que será a nossa base pra discutir uma possibilidade pra desatar o complexo nó da origem da vida.

Espero você na próxima! Até lá!


REFERÊNCIAS

1- The vital question. Capítulo 3. 

2- Referência dos raios no Brasil: https://bityli.com/1CoYB (com dados do INPE)

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