sábado, 28 de julho de 2018

A asa de Darwin: um pterossauro transicional


Darwinopterus e sua caça, por Mark Witton.


Os pterossauros foram répteis alados que viveram durante o Mesozóico. Formalmente, pertencem ao grupo chamado de Pterosauria. E não, pterossauros não são dinossauros. O porquê disso renderia um post particular, só para discutir essa questão, e por isso eu me restrinjo a dizer apenas que: pterossauros são os integrantes do grupo Pterosauria, enquanto que os dinossauros integram o grupo Dinosauria. Grupos diferentes, embora relativamente próximos (ver Fig. 1), é o que nos dizem alguns estudos. Veja um pouco mais a respeito clicando aqui.


 
Figura 1. Imagem da Wikipedia, com base em Nesbitt et al. (2017).



O registro fóssil dos pterossauros nos conta que eles viveram do Triássico Superior ao final do Cretáceo, tendo sido extintos, muito provavelmente, em decorrência daquele fatídico evento de extinção que aniquilou também os dinossauros não-avianos (como você sabe, nem todos os dinossauros foram extintos, pois as aves estão por aí, não é?). E é claro, além dos dinossauros e pterossauros, muitas outras espécies também pereceram.



Figura 2. Era Mesozoica. Fonte: Wikipédia: Escala de tempo geológico.


Os pterossauros são conhecidos dos paleontólogos há bastante tempo. Ainda em 1757, em meio a uma coleção de fósseis, o naturalista italiano Cosimo Collini notou algo... diferente. Uma criatura se destacava: parecia ter um bico longo, contudo cheio de dentes afiados, e, mais marcante ainda, a criatura exibia o que parecia ser um fino e alongado dedo. Com base no conhecimento de que os fósseis da coleção tinha origem marinha, Collini concluiu que tal criatura era de origem marinha.

Por volta do início do século XIX, o naturalista alemão Samuel von Sömmering inspecionou o espécime de Collini (Fig. 3). Corretamente, como sabemos hoje, Sömmering argumentou que tratava-se de um animal voador, não aquático. Sömmering classificou o animal como sendo um morcego. Mais adiante no tempo, o espécime recebeu o nome de Pterodactylus antiquus.
 
Entretanto, um certo alguém ousou discordar dessa conclusão. E acontece que esse alguém era nada menos que Georges Cuvier, geralmente considerado o pai da Anatomia Comparada. Cuvier, sopesando as conclusões que poderiam ser feitas a partir da informação fóssil, concluiu que o Pterodactylus era, na verdade, um réptil voador. E por falar em Cuvier, o nome Pterodactylus baseia-se no nome que Cuvier deu ao espécime, a saber, Ptero-dactyle (em francês).  


Figura 3. Pterodactylus antiquus, o espécime de Collini. Fonte: Wikipédia.


Depois que vários fósseis foram coletados, descritos e analisados, os paleontólogos tradicionalmente passaram a dividir toda a diversidade de pterossauros em dois grandes grupos: rhanforrincóides (subordem Rhamphorhynchoidea); e pterodactilóides (subordem Pterodactyloidea).

Os rhanforrincóides geralmente exibiam as seguintes características: aberturas nasais e antorbitais separadas, costelas cervicais alongadas, metacarpos curtos, cauda longa e um quinto dedo do pé consistindo de duas falanges alongadas.

Já os pterodactilóides geralmente exibiam as seguintes características:  aberturas nasal e antorbital fusionadas (formando a fenestra nasoantorbibal), redução extrema ou perda completa das costelas cervicais, metacarpos longos, cauda curta e  um quinto dedo do pé reduzido.

 
Figura 4. Crânio de um rhanforrincóide (D. macronyx) vs crânio de um pterodactilóide (Quetzalcoatlus sp.)




 
Figura 5. Rhanforrincóide (esquerda) vs Pterodactilóide (direita). Fonte: pterodactylus-i-rhamphorhynchus.jpg


Os paleontólogos descobriram que do Triássico Tardio ao Jurássico Tardio, a fauna de pterossauros era composta majoritariamente pelos rhanforrincóides. De fato, os pterossauros mais antigos são todos rhanforrincóides. Como é o caso do Eudimorphodon ranzii, com seus 210 milhões de anos, aproximadamente. Os pterodactilóides fazem sua primeira aparição apenas no Jurássico Tardio.

Além disso, eu também devo dizer que os paleontólogos e sistematas descobriram algo interessante: os rhanforrincóides formam um grupo parafilético, enquanto que os pterodactilóides formam um grupo monofilético. Mais ainda, análises filogenéticas têm monstrado que existem rhamforrincóides mais aparentados a pterodactilóides do que a outros rhanforrincóides. Se você se perdeu nos termos filogenéticos, sugiro leia os post aqui no blog a respeito do assunto. O primeiro da série está aqui.

Ótimo. Vamos por juntas as informações.

Os rhanforrincóides são mais antigos que os pterodactilóides. Aém disso, os rhanforrincóides formam um grupo parafilético. E vários pterossauros rhanforrincóides são mais aparentados aos pterodactilóides do que aos outros rhamforrincóides. 

Com essas informações em mãos, estava bastante claro para os paleontólogos que, com base na descendência com modificação (isto é, evolução em um sentido darwiniano), era de se esperar que antes do Jurássico Tardio, e obviamente posteriormente à origem dos primeiros rhanforrincóides, deve ter vivido o ancestral comum dos pterodactilóides. É de se esperar, também, que esse ancestral tivesse algumas características comuns a ambos os grupos.

Seria, de fato, muito interessante se algum fóssil desse tipo tivesse sido encontrado.  E ele foi!

Em um artigo publicado online nos Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, no dia 14 de outubro de 2009, ano do bicentenário de Charles Darwin,  um time de paleontólogos anunciava o Darwinopterus modularis (Fig. 6), cujo nome é claramente uma homenagem ao grande naturalista inglês. Nas palavras dos autores do artigo:

Darwinopterus modularis gen. et sp. nov., fornece os primeiros insights sobre uma transição proeminente, porém mal compreendida entre pterossauros basais, predominantemente de cauda longa, e os pterodactilóides, mais derivados e exclusivamente de cauda curta. O Darwinopterus exibe uma notável combinação "modular" de caracteres: o crânio e o pescoço são tipicamente pterodactilóides, exibindo numerosos estados de caráter derivado, enquanto o restante do esqueleto é quase completamente plesiomórfico e idêntico ao dos pterossauros basais.  



Figura 6. Darwinopterus modularis, holótipo (esquerda) e o espécime YH-2000 (direita), atribuído a esta espécie. Fonte: clique aqui


Podemos resumir a citação acima do seguinte modo: o Darwinopterus modularis exibe características comuns a rhanforrincóides e pterodactilóides. Exatamente o tipo de fóssil que deveríamos encontrar  se existe mesmo uma relação de descendência com modificação, isto é, uma relação evolutiva, entre os pterossauros rhanforrincóides e pterodactilóides.


A seguir, elenco algumas características do Darwinopterus modularis. (R) significa "tipicamente rhanforrincóide" e (P) quer dizer "tipicamente pterodactilóide". 

  • O crânio é incomumente grande (P)
  • Crânio longo, baixo, o rostro anterior a órbita forma mais de 80% do comprimento do crânio (P)

  • Fenestra nasoantorbital confluente (P)
     
  • Dentição correspondente ao esperado para pterodactilóide basal (P)
     
  • 27 vértebras caudais (R)
     
  • Pescoço relativamente alongado devido alongamento das vértebras cervicais 3 a7 (P)
     
  • Sem costelas cervicais (P)
     
  • Cinturas pélvica e escapular similar a de pterossauros basais (R)
     
  • A glenóide se localiza na escápula ao invés de ser repartida entre escápula e coracóide (R)
     
  • Metacarpo é menos de 70% do comprimento do húmero (R)
     
  • No dígito IV da mão, as falanges 2 e 3 são de dimensões similares e excedem o comprimento das falanges 1 e 4 (R)
     
  • O quinto dedo do pé consiste em duas falanges alongadas, sendo a falange distal fortemente recurvada (R)
 A descoberta do Darwinopterus modularis permitiu com que os pterossaurólogos tivessem alguns insights de como se deu a transição de um pterossauro basal, rhanforrincóide, a um pterossauro com características pterodactilóides. Destacam-se duas fases (ver Fig.7).


Figura 7. As duas fases. Abreviações: cv, vértebra cervical; na, fenestra nasoantorbital; v, quinto dedo do pé; mc, metacarpo; r, costelas cervicais; sk, crânio; ca, cauda.

A primeira fase é definida por algumas mudanças, dentre elas: fusão das aberturas nasais com as fenestras antorbitais, alongamento do crânio, alongamento do pescoço,  perda das costelas cervicais e alongamento do pteróide (osso que dava sustentação à parte anterior da membrana da asa). Nos rhanforrincóides, é comum as aberturas nasais e antorbitais serem separadas por uma barra óssea. Nos pterodactilóides, essas aberturas se fundem, formando uma grande fenestra, chamada fenestra nasoantorbital.

Na segunda fase, três mudanças se destacam: encurtamento da cauda, alongamento dos metacarpos e encurtamento do quinto dedo do pé. Esta redução do dedo está associada à redução do cruropatágio, essa parte da membrana entre as pernas do pterossauros. Ela era bem mais desenvolvida nos rhanforrincóides do que nos pterodactilóides (ver Fig. 8). 



Figura 8. Novamente, rhanforrincóide vs pterodactilóide. Note como o cruropatágio (cruropatagium) é mais desenvolvido no rhanforrincóide (esquerda). Fonte: clique aqui.



Acho que eu nem preciso dizer, mas não faz mal reforçar. A evolução não é algo assim linear. Essas fases são abstrações, para que possamos entender as mudanças que ocorreram. O padrão real da evolução, é algo mais arbustivo.

O Darwinopterus é um ótimo transicional, um daqueles de deixar criacionista descontente. Em seu livro Pterosaurs:, Mark Witton, um paleontólogo e paleoartista, faz o seguinte comentário:

Pterodactilóides são anatomicamente muito diferentes de seus ancestrais, e até que o Darwinopterus fosse descoberto, os passos evolutivos entre estas linhagens não estavam claros. A maneira com que o Darwinopterus liga estas anatomias é notável.
Mas é preciso ter cautela. Eu não quero você leia este post e saia por aí com a ideia de que o Darwinopterus modularis é o ancestral dos pterodactilóides. Não, não é isso. Esse fóssil não deve ser considerado o ancestral. Ele apenas exibe o tipo de características que esperaríamos encontrar no ancestral comum dos pterodactilóides, mas isso não significa que ele seja o ancestral propriamente dito. Isso deve ser aplicado a qualquer fóssil que geralmente chamamos de “transicional”, como é o caso do famoso Archaeopteryx, por exemplo.

A maneira notável com a que o Darwinopterus preenchia uma lacuna persistente era tão impactante, que chegaram a duvidar da autenticidade da descoberta. Mas nenhuma fraude foi detectada. Além disso, outras descobertas confirmaram aquela padrão anatômico aberrante. Uma delas foi anunciada em 2010, em um artigo que contou com a participação de dois brasileiros. A paleontóloga Taissa Rodrigues e o paleontólogo Alexander Kellner, atualmente diretor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

No artigo, o grupo de paleontólogos descrevia dois novos pterossauros de cauda longa, um deles sendo uma nova espécie do gênero Darwinopterus, espécie batizada de Darwinopterus linglongtaensis.

 
Figura 9. Darwinopterus linglongtaensis. Fonte: Wang et al., 2010.  





Em 2011, um grupo de paleontólogos chineses anunciou a descoberta de mais um Darwinopterídeo, um fóssil belamente preservado da espécie que recebeu o nome Darwinopterus robustodens



Figura 10. Darwinopterus robustodens. Fonte: clique aqui.

Juntamente com o Darwinopterus modularis, Darwinopterus linglongtaensis e outros companheiros, o Darwinopterus robustodens  integra a família Wukongopteridae. Ah, antes que eu esqueça, esses fósseis de Darwinopterídeos foram todos coletados na Formação Tiaojishan, China.

Os Wukongopterídeos e outros companheiros fósseis, juntamente com os pterodactilóides, formam um grupo monofilético chamado Monofenestrata. Esse nome faz alusão à presença da fenestra nasoantorbital na maioria dos pterossauros que integram esse grupo.

Obrigado. Até a próxima.

Referências
 
Artigos

Nesbitt, Sterling J.; Butler, Richard J.; Ezcurra, Martín D.; Barrett, Paul M.; Stocker, Michelle R.; Angielczyk, Kenneth D.; Smith, Roger M. H.; Sidor, Christian A.; Niedźwiedzki, Grzegorz; Sennikov, Andrey G.; Charig, Alan J. (2017). "The earliest bird-line archosaurs and the assembly of the dinosaur body plan". Nature. doi:10.1038/nature22037

Andres, B.; Clark, J.; Xu, X. (2014). "The Earliest Pterodactyloid and the Origin of the Group". Current Biology. 24: 1011–6. doi:10.1016/j.cub.2014.03.030

Kellner, A. W. A., (2003): Pterosaur phylogeny and comments on the evolutionary history of the group. pp. 105–137. — in Buffetaut, E. & Mazin, J.-M., (eds.) (2003): Evolution and Palaeobiology of Pterosaurs. Geological Society of London, Special Publications 217, London, 1-347

Lü, J.; Unwin, D.M.; Jin, X.; Liu, Y.; Ji, Q. (2010). "Evidence for modular evolution in a long-tailed pterosaur with a pterodactyloid skull". Proceedings of the Royal Society B. 277 (1680): 383–389. doi:10.1098/rspb.2009.1603

Lü J.; Xu L.; Chang H.; Zhang X. (2011). "A new darwinopterid pterosaur from the Middle Jurassic of western Liaoning, northeastern China and its ecological implications". Acta Geologica Sinica—English Edition. 85 (3): 507–514. doi:10.1111/j.1755-6724.2011.00444.x

Wang, X.; Kellner, A.W.A.; Jiang, S.; Cheng, X.; Meng, X. & Rodrigues, T. (2010). "New long-tailed pterosaurs (Wukongopteridae) from western Liaoning, China". Anais da Academia Brasileira de Ciências. 82 (4): 1045–1062. doi:10.1590/S0001-37652010000400024

Livros
Unwin, David M. (2006). The Pterosaurs: From Deep Time. New York: Pi Press. p. 246.

Veldmeijer, A.J. (2012) Pterosaurs Flying contemporaries of the dinosaurs. Sidestone Press, Netherlands, 133 pp.

Witton, Mark P. (2013), Pterosaurs: Natural History, Evolution, Anatomy.

Blogs

 
Coelho pré-cambriano


http://coelhoprecambriano.blogspot.com/2018/05/pterossauros-sao-dinossauros-certo.html

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...