terça-feira, 25 de agosto de 2020

O Enigma da Origem dos Ornitísquios: Pesquisadores Brasileiros Propõem Uma Solução

 

Os dinossauros são fascinantes e apesar de todos os esforços, que não são poucos, muitos mistérios ainda os cercam. Um desses enigmas é a origem de Ornithischia, aquele grupo de dinossauros que inclui os famosos Triceratops, Ankylosaurus e Stegosaurus, para citar apenas alguns exemplos. Em estudo publicado no periódico britânico Biology Letters, Rodrigo Müller e Maurício Garcia, pesquisadores brasileiros sitiados na Universidade Federal de Santa Maria, atacaram o problema, propondo uma solução bastante interessante. Mas para apreciar a proposta, recapitulemos algumas coisas.

Tradicionalmente, os dinossauros são divididos em dois grandes grupos (fig. 1), Saurischia (incluindo os dinossauros terópodes [como o Tyrannosaurus e as aves] e os sauropodomorfos [como aqueles saurópodes pescoçudos]) e Ornithischia. Enquanto que a origem dos saurísquios é bastante explorada e conta com uma ajudinha do maior número de fósseis do Período Triássico, a aurora dos ornitísquios é mais nebulosa devido a falta de fósseis triássicos que possam ser seguramente atribuídos a esses dinossauros. E é aí que mora o problema. Uma vez que saurísquios e ornitísquios compartilham um ancestral comum e fósseis da linhagem dos saurísquios são conhecidos do período triássico, então a linha dos ornitísquios necessariamente existia durante esse período. Onde estão seus fósseis? Há aí uma lacuna, uma “linhagem fantasma”.

A proposta de Müller e Garcia entra em cena agora.


Figura 1. Divisão tradicional dos dinossauros. A imagem é uma cortesia de Rodrigo Müller, Maurício Garcia e Márcio L. Castro. 

Os silessaurídeos, como o brasileiríssimo Sacisaurus agudoensis (que viveu a cerca de 225 milhões de anos [Triássico, portanto] e foi encontrado em Agudo, Rio Grande do Sul; ver fig. 2) integram um grupo formalmente conhecido como Silesauridae, geralmente considerado uma linhagem de parentes próximos dos dinossauros, embora não sejam dinossauros de fato. Combinando informações anatômicas recentes e não tão recentes extraídas de dezenas de fósseis descobertos ao redor do mundo (incluindo o Brasil), Müller e Garcia construíram uma filogenia, que revelou algo interessante. Muito interessante. Vale ressaltar que antes desse estudo, o “boom” de informações advindas das muitas e fascinantes descobertas realizadas durantes os últimos anos no Brasil e no mundo não haviam ainda sido combinadas em um único e abrangente conjunto de dados. 


Figura 2. Sacisaurus agudoensis, um silessaurídeo brasileiro. A imagem é uma cortesia de Rodrigo Müller, Maurício Garcia e Márcio L. Castro.
 

A filogenia produzida pela análise de Müller e Garcia revela que, ao contrário de parentes próximos, os silessaurídeos são dinossauros de fato! Mais ainda, o estudo sugere que Ornithischia evolui de uma linhagem de ‘Silesauridae’. Isto é, há silessaurídeos que são parentes mais próximos de ornitísquios do que de outros silessaurídeos (quando isso acontece, podemos dizer que Silesauridae é um grupo não-natural, mais especificamente parafilético. Grupos parafiléticos são indicados pelo uso das aspas, como em ‘Silesauridae’. Para saber mais sobre isso, você pode dar uma olhada na série “Como Organizamos Os Seres Vivos” e nos vídeos sobre Sistemática Filogenética nesta playlist do canal). É importante não confundir a hipótese de Müller e Garcia (fig. 3, "nova hipótese") com propostas anteriores que indicavam simplesmente algum grau de relação estreita entre Ornithischia e Silesauridae (fig. 3, "hipótese alternativa").


Figura 3. Hipóteses sobre as relações entre silessaurídeos e dinossauros. A imagem é uma cortesia de Rodrigo Müller, Maurício Garcia e Márcio L. Castro.

Os silessaurídeos são conhecidos de rochas do Triássico de vários localidades do mundo e, portanto, se Müller e Garcia estiverem certos, a lacuna na evolução dos ornitísquios foi agora pelo menos parcialmente preenchida. A proposta ainda sugere que o ancestral dos ornitísquios possivelmente era carnívoro, o que pode parecer estranho, uma vez que os ornitísquios via de regra apresentam características relacionadas à herbivoria (ou seja, dieta a base de plantas). Contudo, não é uma proposta absurda. Longe disso. Esse mesmo padrão pode ser observado no caso dos sauropodomorfos, cujo ancestral também era provavelmente carnívoro.

Os autores ressaltam que ainda é cedo para bater o martelo e dar como resolvida a questão da origem dos ornitísquios e que a hipótese deve ser testada conforme emergirem novas descobertas. É assim que a boa ciência funciona. Com a proposta de Müller e Garcia, podemos traçar um esboço simplificado das relações entre os dinossauros, conforme a figura 4. Nos resta esperar novos espécimes e estudos. 

Figura 4. Filogenia simplificada dos Dinosauria. A imagem é uma cortesia de Rodrigo Müller, Maurício Garcia e Márcio L. Castro.

Para saber mais:

A paraphyletic ‘Silesauridae' as an alternative hypothesis for the initial radiation of ornithischian dinosaurs. 2020. Biology Letters. http://doi.org/10.1098/rsbl.2020.0417

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O HOMEM DE NEBRASKA – CRIACIONISTAS APRENDEM?

 

Capa. Ao fundo, "O homem de Nebraska", reconstrução artística de Amédée Forestier. Dente do Homem de Nebraska próximo à lateral direita da imagem, destacados pelo contorno em branco.  

Se você é só um pouquinho como eu e já cometeu o questionabilíssimo ato de discutir com criacionistas em redes sociais, provavelmente já jogaram o caso do “Homem de Nebraska” na sua cara. Mas senão, tudo bem. Eu explico.

No dia 25 de fevereiro de 1922, Harold Cook, um fazendeiro e geólogo consultor, escreveu para Henry Fairfield Osborn, renomado paleontólogo, para informar sobre um desgastado dente fóssil coletado por ele em 1917, em Nebraska, nos EUA, e que, segundo Harold, parecia muito com um dente humano. Contudo, Harold Cook o havia encontrado em estratos do Plioceno. Já no mês seguinte o fóssil estava com Osborn, que escreveu para Harold dizendo o seguinte:

No instante em que seu pacote chegou, sentei-me com o dente, em minha janela, e disse a mim mesmo: “Parece cem por cento antropoide”. Eu então levei o dente para a sala do Dr. Matthew e o comparamos com todos os livros, todos os moldes e todos os desenhos, concluindo que é o último dente molar superior direito de algum primata superior... Podemos se acalmar amanhã, mas me parece que o primeiro símio antropoide da América foi encontrado.

Em abril daquele mesmo ano Osborn anunciou o Hesperopithecus haroldcookii; enquanto que Hesperopithecus significa “símio ou macaco do mundo ocidental”, o epíteto específico haroldcookii é uma clara homenagem a Harold Cook. Osborn e aqueles que ele consultou acreditavam ter descoberto o primeiro primata antropoide da América. O fato de ser antropoide tinha todo um apelo, uma vez que nós mesmos somos primatas antropoides.  

Mas o status de primata do Hesperopithecus não foi recebido sem críticas. Eu não vou me estender aqui e, portanto, sugiro que consulto o material no saiba mais. Mas o fato é que o reinado do Hesperopithecus só durou até 1927, quando William King Gregory, amigo de Osborn, teve publicado na Science um artigo chamado "Hesperopithecus aparentemente não é um macaco nem um homem."

Expedições organizadas pelo próprio Osborn em 1925 e 1926, com o intuito de coletar mais material que pudesse corroborar a identificação do Hesperopithecus como sendo mesmo um primata antropoide, acabaram com toda a empolgação. De fato, mais material foi encontrado, inclusive partes do esqueleto, mas conforme Gregory relatou em seu artigo, isso revelou que, muito longe de ser um primata, o dente com base no qual foi descrito o Hesperopithecus pertenceu a um tipo de porco selvagem extinto do gênero Prosthennops.

Um banho de água fria.

Paleontólogos profissionais haviam confundido o dente de um suíno extinto com o de um primata antropoide. Eu preciso explicar porque os criacionistas amam essa história?

Mas a verdade é que, ao contrário do que fazem os criacionistas, não devemos olhar para o caso do Homem de Nebraska como um embaraço ou desastre completo. Na verdade, é uma história que mostra a ciência em ação. Ao contrário do método criacionista de esperar publicações para que então possam distorcer, cientistas de fato fazem... Bem, ciência.

 

Eu gosto de olhar para esse caso nos moldes do que Stephen Jay Gould propôs em “An Essay On A Pig Roast”, ensaio que faz parte do livro Viva o Brontossauro, o qual eu já recomendei no canal. Ele sugere que consideremos o todo como uma sequência cronológica em cinco episódios.

O primeiro episódio é “a proposta”. Osborn recebeu o dente que Cook lhe enviara e, após algum estudo, anunciou a descoberta do Hesperopithecus.

O segundo episódio é sumarizado em “dúvidas e propostas alternativas”. Osborn sabia que o material que tinha em mãos era muito fragmentário e que, portanto, havia mais, muito mais a ser estudado e discutido. Em momento algum Osborn afirmou que se tratava de um ancestral humano direto. Sobre o dente, ele disse em um dos seus artigos:

Não se pode dizer que o molar do Hesperopithecus se assemelhe muito a qualquer tipo conhecido de molar humano. Certamente não está intimamente relacionado ao Pithecanthropus erectus na estrutura da coroa molar…. É, portanto, um tipo novo e independente de primata, e devemos buscar mais material antes de podermos determinar suas relações.

Encorajar novos estudos, aliás, caracteriza do terceiro episódio. Osborn contatou colegas ao redor do mundo, fez réplicas do dente e enviou para pelo menos 26 instituições na Europa e na América do Norte. Não é como se Oborn estivesse como medo de ser refutado ou achasse que sua interpretação fosse definitivamente correta. Como resultado, chegaram a Osborn diversas propostas de interpretação da identidade do dente.

Quando algo é problemático, buscar mais dados relevantes geralmente ajuda um pouco. E isso caracteriza o quarto episódio. Osborn, como já mencionado, organizou expedições em 1925 e 1926 para coletar mais material onde o dente problemático foi encontrado.

Por fim, o quinto e último episódio é caracterização pelo reconhecimento do erro, que veio oficialmente sob a forma do já mencionado artigo de Gregory publicado na Science em 1927.

Quando observamos o Homem de Nebraska sob esta perspectiva, só nos resta indagar porque diabos os criacionistas amam um acontecimento que só demonstra a ciência funcionando muito bem. Eles usam o Homem de Nebraska como um dispositivo retórico, para tentar passar a ideia de que a ciência convencional é uma tolice, repleta de erros grosseiros. Mas o fato é que deveriam aprender como funciona a ciência. Se pudessem perceber as sutilezas e reconhecer o verdadeiro valor dessa história, jamais teríamos de ouvir ou ler centenas de barbaridades criacionistas. Fariam um imenso favor a nós e a si mesmos.

Já que a Bíblia lhes é muito importante, eu sugiro aos criacionistas Provérbios, 25:14, onde se pode ler que,

Como nuvens e ventos que não trazem chuva, assim é o homem que se gaba falsamente de dádivas.

Provérbios 25:14


Para saber mais:

 

O ensaio que serviu como base para esse roteiro:

GOULD, Stephen Jay. An essay on a pig roast. Natural History, v. 98, n. 1, p. 14-&, 1989.

 

Artigos citados:

Osborn, Henry Fairfield (May 1922). "Hesperopithecus, the first anthropoid primate found in North America"Science55 (1427): 463–65. doi:10.1126/science.55.1427.463

Gregory, W.K. (1927). "Hesperopithecus apparently not an ape nor a man". Science66(1720): 579–81. doi:10.1126/science.66.1720.579

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Relato de um ex-criacionista


Esse post virou vídeo!

Quando eu tinha 14 anos, fui estudar no IFCE, Campus Iguatu, buscar o diploma de Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio. Para pessoas pobres como eu e meu irmão, essa era uma opção muito cobiçada, uma vez que eu teria a possibilidade de ter uma boa educação (realmente, tive) e ainda ter uma "profissão", caso não quisesse/pudesse dar prosseguimento aos estudos. Eu aprendi muito lá. E foi durante os 3 anos no IF que acabei por desenvolver o meu amor pela ciência - e um certo desgosto pela religião. Mas nem sempre foi assim.

Entrada do IF, Campus Iguatu, Unidade Cajazeiras. Disponível aqui.
   

Quando eu cheguei no IF, a minha visão de mundo era bastante limitada. Sim, eu acreditava que a Terra orbitava o sol e que ela não era plana. Mas pra mim a Terra era um lugar muito especial, e não pelos motivos que penso hoje. Era especial porque foi aqui, nesse planetinha que depois aprendi a chamar de pálido ponto azul, que Deus havia nos criado à sua imagem e semelhança, conforme sugere uma leitura mais literal do Gênesis. A Terra era o lugar que Deus criou exclusivamente para nós. E nós, humanos, éramos o pináculo da criação. Nenhum ser vivo era mais nobre do que nós, eu pensava. 

Eu venho de uma família cristã, majoritariamente católica apostólica romana. E lá no sertão-central onde eu fui criado, todo mundo pensava mais ou menos assim. Eu não era nenhum ponto fora da curva. Ou talvez fosse, muito levemente. Minha memória não é das melhores, mas eu lembro de quando criança eu saber que existiram dinossauros e que eles foram extintos (hoje eu sei que nem todos foram), e não tenho nenhuma lembrança de algum dia ter acreditado que a Terra era muito jovem, apesar da minha visão mais literal do Gênesis. Nesse sentido, quado eu cheguei no IF eu era o que se pode chamar de Criacionista da Terra Antiga, embora na época eu nem soubesse da existência desse termo. O ano era 2010.

Por volta de meados de 2011, se não me engano, eu não mais mantinha essa visão estrita e limitada, moldada pela minha experiência com a religião cristã. O que aconteceu? Pra ser sincero, minha memória é péssima, portanto eu jamais poderia dar um relato detalhado. Mas posso ressaltar algumas coisas. Vou tentar. 

Olhando para o longínquo ano de 2010 eu consigo me lembrar de alguns momentos de empolgação ao estudar o tema origem da vida, que nos foi apresentado pelo professor De Montier. O que é estranho, uma vez que eu cheguei lá completamente averso à ideia de origem natural da vida ou evolução. Inclusive, lembro certa vez ter visto meu irmão lendo "A Origem das Espécies" e ter ficado bravo por isso, pois era uma espécie de sacrilégio questionar a Palavra. Ainda no primeiro ano do ensino médio, eu fiquei apaixonado pela Química. Adonay Loiola, recém doutorado pela Universidade de Manchester, e também o professor Aguinaldo, foram responsáveis por apresentar para mim uma ciência que explicava muito bem diversos fenômenos. Eu fiquei particularmente fascinado pela Teoria Atômica. Átomos e moléculas viraram uma paixão. 

Essa paixão pela química se manteve durante o segundo ano, agora graças à cordialidade e receptividade do professor Rafael Portella, doutorando pela UFC na época. Se não me falha a memória, à época que tive aulas com o Rafael o meu amor pela Teoria Atômica havia me levado ao documentário Átomo, apresentado pelo professor Jim Al-Khalili. Foi nesse documentário que eu aprendi mais sobre o desenvolvimento da Teoria Atômica e comecei a engatinhar em temas como Teoria da Relatividade e Física Quântica. E assim eu fui deslizando da Química para a Física. 

Ao mesmo tempo em que ocorria essa guinada para o lado da Física, outra revolução na minha vida tomava lugar. Eu passei a questionar a Bíblia. As supostas explicações dadas por essa coletânea de livros me pareciam, na melhor das hipóteses e para manter o respeito, superficiais, infundadas e/ou vagas. Além disso, lembro que uma dúvida foi corroendo cada vez mais minha crença em um Deus pessoal: o sofrimento humano. Sim, o problema do mal. Não fazia (e ainda não faz) sentido para mim que num universo governado por um Deus bondoso, nosso Pai celestial, houvesse tanta dor e sofrimento. Eu não preciso nem dar exemplos. Você conhece. Você sofre. Eu também. Todos sofremos. E alguns, infelizmente, bem mais que os outros. 

Não sei dizer como, mas encontrei uns vídeos na internet de um cara chamado... Richard Dawkins. Eu passei a devorar os vídeos. Por volta dessa época eu também devo ter visto uma coisa ou outra do Cristopher Hitchens e do Sam Harris, mas forte na minha memória eu só tenho o Dawkins. Eu virei basicamente o que todo ateu, jovem e chato se torna - um discípulo de Dawkins. Mas isso não foi de todo ruim pois, afinal, Dawkins sempre deixou claro qual era seu ídolo - Charles Darwin. Claro que a essa altura o nome já não me era estranho, mas eu nunca tinha parado pra avaliar as ideias de Darwin. Foi por causa do Dawkins que eu passei a dar mais atenção para a Biologia. Mais uma guinada, portanto. É curioso. Não foi a evolução que me levou ao ateísmo, mas o ateísmo que me levou à evolução.

No Centro de Capacitação da Unidade Cajazeiras fica a biblioteca Lourival Pinho. Disponível aqui.

Muitas outras leituras, vídeos e acontecimentos certamente moldaram a minha mudança de um Criacionista para alguém que aceita a evolução como um fato científico. Eu ressaltei aqui a descoberta do meu amor pela ciência e um desgosto (Dawkins-induzido) pela religião. E por falar em amor pela ciência... Foi nesse processo de descoberta que eu li pela primeira vez algo do Carl Sagan (o livro Bilhões e Bilhões) e assisti alguns episódios de Cosmos na biblioteca do IF, onde havia uma sala para assistir filmes e documentários gravados em mídia física. "O Cosmos é tudo que é, ou foi, ou será". Caramba, quanta nostalgia!

Interior da biblioteca Lourival Pinho. Disponível aqui.

Esse relato parece uma colcha de retalhos. E é mesmo. Minha memória é péssima. Mas se tem algo que me tirou do criacionismo, eu posso dizer que foi a ciência, a boa ciência. E não foi a ciência bruta, publicada nos artigos. Não, longe disso. Foi a ciência que chegou a mim sob a forma de divulgação científica. O meu relato é, evidentemente, pessoal e serviria no máximo como evidência anedótica. Mas me parece que a única forma de combater o criacionismo, que é geralmente a personificação da ignorância, seja o conhecimento. Eu era criacionista por pura ignorância. E muitos ainda o são exatamente pelo mesmo motivo. 

Eu me apaixonei pela ciência. E foi um caminho sem volta. Ainda bem. 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Edição Genômica – Um Milagre Natural

 

Olá
Capa. Doudna (esquerda) & Sternberg. Imagem disponível aqui.


Eu sou péssimo em fazer resenhas de livros. O texto a seguir é a minha tentativa de te convidar a ler “A Crack in Creation: Gene Editing and the Unthinkable Power to Control Evolution” (Uma Rachadura na Criação: A Edição Gênica e o Impensável Poder de Controlar a Evolução), cuja autora principal é a pesquisadora Jennifer Doudna, uma das mentes por trás da revolução recente na edição genômica (o outro autor é Samuel Sternberg, bioquímico e expert em CRISPR). Provavelmente há um Nobel “guardado” para ela. E não só para ela. Emmanuelle Charpentier (que não é autora do livro aqui tratado), outra cientista por trás do desenvolvimento da tecnologia CRISPR, é forte candidata. Anote esses nomes*. Mas vamos ao meu convite!

*Em 07/10/2020 foi anunciado que Doudna e Charpentier foram as laureadas com o Nobel de Química daquele ano. 

A síndrome WHIM é uma doença rara imunodeficiência congênita de herança autossômica dominante causada por mutações (mas não qualquer mutação) no gene CXCR4; nas doenças de herança autossômica dominante, basta que uma das duas cópias do cromossomo carregue o gene alterado). Pacientes acometidos por essa síndrome são extremamente suscetíveis a infecções pelo HPV (papilomavirus humano), o que acarreta no aparecimento de uma extensiva cobertura de verrugas na pele, podendo até, infelizmente, progredir para câncer. Mas não para por aí. A sigla WHIM deriva de Warts (verrugas), Hypogammaglobulinemia (hipogamaglobulinemia; baixos níveis séricos de anticorpos), Infections (Infecções bacterianas recorrentes, no caso) e Myelokathexis (mielocatexia; apotose [morte] de células mieloides [na medula óssea], inclusive, e principalmente, células que viriam a compor o sistema imune). Terrível, sem dúvidas.

Em 2013, um grupo de pesquisa no National Institutes of Health (Institutos Nacionais de Saúde), nos Estados Unidos da América, se via perplexo diante do caso de uma paciente diagnosticada com WHIM ainda na década de 1960. E não só isso. Ela era a primeira pessoal na qual a síndrome fora originalmente identificada. Na literatura científica ela é conhecida como WHIM-09. A surpresa em 2013 não era exatamente o fato de a paciente estar viva. O “problema a ser revolvido” era: embora afetada pela síndrome desde o seu nascimento, quando ela se apresentou ao NIH em 2013 era como se a doença tivesse simplesmente... desaparecido! Segundo relatos da própria paciente, ela estava livre de sintomas há pelo menos 20 anos. O que aconteceu? Um milagre, evidentemente. OU SERÁ QUE NÃO?

Uma vez que cientistas não trabalham com soluções milagrosas, o caso da WHIM-09 merecia uma investigação bem detalhada. Ao analisar o DNA de células da pele, por exemplo, foi constado, para o espanto de zero pessoas, que o gene CXCR4 mutado (isto é, com mutação) ainda estava presente. Mas a surpresa foi tremenda ao investigar-se o DNA das células sanguíneas. Agora sim, para o espanto de todos a mutação se fazia inexplicavelmente... ausente! Você gosta de ação? Espero que sim, pois as surpresas ainda não terminaram. Ao investigar o DNA das células sanguíneas em maior detalhe, foi constatado que uma cópia do cromossomo 2 carecia de um trecho de aproximadamente 35 milhões de “letras” de DNA, trecho esse que inclui o gene CXCR4).

Calma, ainda tem mais. Não bastasse tal deleção (foram deletados pelo menos 164 genes, incluindo o CXCR4), essa cópia do cromossomo 2 parecia rearranjada. Como assim? Os genes e/ou blocos de genes ocupam posições específicas em um cromossomo. Comparado a um cromossomo 2 normal, a cópia do cromossomo 2 sob análise tinha blocos de genes em lugares diferentes do padrão. Um arranjo diferente do normal, portanto. O que diabos havia acontecido com aquela cópia do cromossomo 2 da paciente WHIM-09?

 

Conforme prosseguiu a investigação, uma explicação totalmente natural emergiu – Cromotripsia. É isso, até a próxima! Now, the world don't move to the beat of just one drumPerdão. Continuando. Na cromotripsia, o cromossomo se fragmenta e é então reparado, reconstituído, só que de maneira incorreta, com pedaços realocados em posições diferentes da original e/ou até mesmo deletados. A cromotripsia é geralmente problemática, podendo levar ao desenvolvimento de um câncer. Mas...

No corpo de Kim [pseudônimo da paciente WHIM-09], porém, a cromotripsia acabou tendo outro efeito. Não apenas a célula mutada cresceu normalmente, mas – porque agora estava livre da cópia defeituosa do CXCR4 – a célula estava livre do gene que causava a síndrome WHIM. Contudo, a sorte cega de Kim não terminou aí. Os cientistas do NIH determinaram que a célula afortunada deve ter sido uma célula-tronco hematopoiética, um tipo de célula-tronco da qual se originam todos os tipos de células sanguíneas do corpo e que tem um potencial quase ilimitado de proliferação e autorrenovação. Essa célula havia passado seu cromossomo reorganizado para todas as células filhas, eventualmente repovoando todo o sistema imunológico de Kim com novos glóbulos brancos saudáveis ​​que estavam livres da mutação no CXCR4. Esta cadeia de eventos... tinha efetivamente eliminado a doença que assombrava Kim desde o nascimento.

Certo. Muito fantástico. Impressionante. Mas o que um exemplo como esse está fazendo em um livro que pretende falar de edição genômica? Na verdade, tem tudo a ver! Veja bem. É como se o genoma de uma célula da paciente WHIM-09 tivesse sido naturalmente editado, corrigindo uma condição genética desastrosa para a vida da portadora. Embora a natureza tenha feito essa edição de forma tortuosa e até muito perigosa (poderia ter resultado em câncer, por exemplo), o fim que ela atingiu é impressionante. Uma vez que as pessoas que sofrem com doenças genéticas não podem esperar que a natureza as livre do sofrimento a qual estão submetidas (casos como o relatado aqui não são a regra), não seria muito útil se nós pudéssemos editar controladamente e com precisão os genomas de células e, assim, corrigir mutações debilitantes? Isso tornaria potencialmente curáveis literalmente milhares de doenças. 

Pesquisadoras e pesquisadores ao longo das décadas e ao redor do mundo buscaram encontrar ferramentas capazes reconhecer sequências muito específicas de DNA, fazer um corte preciso na molécula, permitindo o reparo da sequência, abrindo assim a possibilidade para que possamos enviesar o maquinário celular reparador para que introduza ou corrija alguma mutação em uma posição específica. Além disso, os limites de aplicação seriam exponencialmente estendidos se pudéssemos reprogramar essa ferramenta molecular de modo a reconhecer outras sequências com precisão extrema. A tecnologia CRISPR permite tudo isso.

Embora invisível aos nossos olhos, bactérias e arqueas têm travado batalhas contra vírus há bilhões de anos. Em decorrência disso, não é de se surpreender que tenham evolutivamente “descoberto” alguma forma eficiente de combater alguns vírus. Uma das formas mais impressionantes que procariotos usam para combater infeções virais é o que conhecemos como sistemas CRISPR/Cas, que basicamente serve a função de sistema imune. CRISPR (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), traduzindo para o português, significa Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas. "Cas" vem do inglês “CRISPR-associated”, ou seja, “associados às CRISPR”; esses associados são genes que codificam proteínas.

No livro, Doudna & Sternberg contam como foi o passo-a-passo da descoberta desses sistemas CRISPR/Cas (há mais de um tipo), o que levou anos de pesquisa e contou com o envolvimento centenas de mulheres e homens cientistas. Em posse desse conhecimento construído, Doudna e colaborares foram capazes de engendrar um sistema CRISPR/Cas9, que funciona virtualmente em qualquer tipo de célula. O sistema consiste, (muito) simplificadamente, em dois componentes: RNA guia e Cas9. Imagine que você gostaria promover um corte em um gene, exatamente na região contendo a sequência AATTCCGA. Em laboratório, é possível fabricar um RNA guia de modo que ele contenha uma sequência de bases complementares à sequência alvo de DNA. Assim, o RNA guia é capaz de localizar a sua sequência. Uma vez localizada, a proteína Cas9 é então capaz de promover um corte em ambas as fitas da dupla-fita de DNA. 

Agora os mecanismos reparadores da própria célula que teve o DNA cortado entrarão em ação. A célula irá reparar o dano e, na melhor das hipóteses, restaurar a sequência original. Contudo, podemos nos aproveitar da célula para que ela corrija o dano, mas insira uma sequência de nosso interesse. Por exemplo, imagine que o “G” na sequência AATTCCGA esteja associado à alguma doença e que a sequência em pessoas não afetadas pela condição seja AATTCCCA. Uma vez que o sistema CRISPR/Cas9 tenha atuado, fornecemos uma sequência de DNA contendo o trecho AATTCCCA (livre da mutação, portanto) e que seja alinhável à região do gene que sofreu o corte. A célula usará essa sequência que “doamos” e, ao final do processo, o resultado será que a célula terá reparado o dano e, adicionalmente (conforme queríamos), terá automaticamente trocado o “G” naquela posição pelo “C”. Teremos, portanto, editado o genoma dessa célula, removendo a mutação causadora da doença!

Estou sendo bastante simplista aqui. Mas espero que a ideia geral tenha sido passada. Incentivo que você busque mais sobre o funcionamento dessa ferramenta de edição genômica.

Como você deve ter notado, o potencial dessa técnica é imensurável. Milhares de doenças genéticas tem sua cura no horizonte. Um exemplo tirado diretamente do livro é bastante didático e mostra esse potencial espantoso. Anemia falciforme e beta-talassemia são doenças genéticas das mais comuns, e

...ambas resultam de defeitos moleculares na hemoglobina, principal componente proteico dos glóbulos vermelhos e que transporta o oxigênio dos pulmões para os tecidos do corpo. As fontes desses defeitos moleculares são mutações no DNA do gene da beta-globina, que codifica uma das duas cadeias de proteínas únicas que constituem a molécula de hemoglobina.

A anemia falciforme e a beta-talassemia podem, na verdade, ser curadas pelo transplante de medula óssea. Quando os médicos transplantam a medula óssea de um indivíduo saudável para um paciente doente, as abundantes células-tronco do sangue na medula produzem novos glóbulos vermelhos saudáveis ​​para o resto da vida do paciente. O problema com esse tipo de transplante de células-tronco, no entanto, é que não há doadores suficientes que correspondam ao receptor imunologicamente e estejam dispostos a se submeter ao procedimento invasivo...

A edição gênica pode resolver esse problema, permitindo que os pacientes sirvam como receptores e doadores das células-tronco. Se os médicos puderem isolar as células-tronco da medula óssea de um paciente, reparar com CRISPR os genes da beta-globina mutados das células e, em seguida, devolver essas células editadas ao paciente, eles não terão que se preocupar com a disponibilidade de doadores ou o risco de um choque imunológico entre o corpo do paciente e as células transplantadas. Numerosos laboratórios já demonstraram de forma convincente que as células dos pacientes podem ser reparadas com precisão no laboratório e que essas células editadas produzem grandes quantidades de hemoglobina saudável; os pesquisadores até mostraram que as células humanas editadas podem funcionar dentro de camundongos imunocomprometidos. Várias equipes de pesquisa acadêmica, bem como empresas comerciais, estão agora trabalhando para disponibilizar o procedimento a pacientes humanos.

Nesse tipo de procedimento ex vivo (a edição genética é feita em laboratório, fora do sistema vivo, portanto ex vivo; um procedimento in vivo envolveria a alteração do genoma das células enquanto ainda estão no organismo vivo), o que se está alterando é a composição informacional genética de células somáticas, isto é, células cujas alterações no DNA não serão herdadas pelos descendentes daquele indivíduo. Mas é igualmente possível alterar o genoma de um indivíduo que ainda nem nasceu. E mais, essa alteração seria herdada por todos os seus descendentes. A princípio, talvez você não veja muito problema nisso, pois esse tipo de edição pode ser muito desejável no caso de casais que querem ter um filho biológicas, mas são acometidos, por exemplos, por condições genéticas recessivas e, portanto, o descendente também seria acometido. Se pudéssemos remover a base genética dessa condição em prol de uma melhora na qualidade de vida do indivíduo a nascer, hesitaríamos em fazer? Isso em si já é discutível, mas considere o seguinte:

Ironicamente, permitir a edição da linha germinativa nos casos em que previne doenças pode ser o primeiro passo em uma ladeira escorregadia para aprimoramentos flagrantemente não médicos. Isso porque, para cada exemplo direto de aprimoramento genético não médico, há outro que é mais ambíguo.

Um desses exemplos limítrofes de edição da linha germinativa envolve o gene PCSK9, que produz uma proteína que regula o nível de colesterol de lipoproteína de baixa densidade (o colesterol "ruim") de uma pessoa, tornando o gene um dos alvos farmacêuticos mais promissores para prevenir doenças cardíacas — A principal causa de morte em todo o mundo. A CRISPR poderia ser programada para ajustar esse gene e salvar os nascituros do colesterol alto. Isso seria qualificado como edição terapêutica da linha germinativa ou melhoramento por edição gênica? Em última análise, o objetivo pretendido seria prevenir doenças, mas também daria a uma criança uma característica genética vantajosa que a maioria das outras não tem.

Quando se começa a falar em termos de melhoramento genético, o primeiro cheiro que sentimos é o desgostoso odor da escabrosa eugenia. Quase que ecoando Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, Doudna & Sternberg argumentam que

...[M]esmo em países com sistemas de saúde abrangentes, onde pessoas de todas as classes poderiam se beneficiar da edição da linha germinativa, há o risco de que isso possa dar origem a desigualdades genéticas até então invisíveis, criando uma nova "lacuna genética" que só aumentaria com o tempo. Uma vez que os ricos seriam capazes de pagar pelo procedimento com mais frequência, e uma vez que quaisquer modificações genéticas benéficas feitas em um embrião seriam transmitidas a todos os descendentes dessa pessoa, as ligações entre a classe e a genética iriam inevitavelmente crescer de uma geração para a próxima, não importa quão pequena pode ser a disparidade de acesso. Considere o efeito que isso poderia ter no tecido socioeconômico da sociedade. Se você acha que nosso mundo é desigual agora, imagine-o estratificado tanto em termos socioeconômicos quanto genéticos. Visualize um futuro em que as pessoas com mais dinheiro vivam com mais saúde e por mais tempo, graças a seus conjuntos privilegiados de genes. É o material da ficção científica, mas se a edição germinativa se tornar rotina, esta ficção pode se tornar realidade.

Embora essa pareça uma realidade distante, nós precisamos começar a discutir essa possibilidade com urgência. É algo pra ontem. E não cabe somente aos cientistas ou a um seleto grupo de especialistas tomar decisões, propor modelos de legislação e regulamento quanto à questão da edição genômica. Não. Essa é uma discussão que deve ser feita com a participação da sociedade e com sua diversidade muito bem representada. Isso é preciso para que a população possa entender o tanto de benefícios que essa tecnologia pode trazer e não se deixe amedrontar pelos malefícios que também são possíveis. Se nos recusarmos a quebrar as barreiras da comunicação, as barreiras da divulgação e até mesmo as barreiras da educação científica, não poderemos exigir nada depois. Pois é assim,

Quando as pessoas se recusam a reconhecer as mudanças climáticas, rejeitam programas de vacinação para crianças ou insistem que os organismos geneticamente modificados são impróprios para o consumo humano, isso sinaliza não apenas sua ignorância sobre a ciência, mas também uma falha na comunicação entre os cientistas e o público.

A descoberta da ferramenta CRISPR tem muito a ensinar também aos nossos governantes. Ronald Reagan certa vez se perguntou se os EUA deveriam subsidiar a mera curiosidade intelectual. Aqui no Brasil, em pleno 2020, o Presidente faria essa mesma pergunta sem nem mesmo titubear. Mas vejam só,

A Tecnologia de edição gênica baseada em CRISPR... foi inspirada por pesquisas sobre fenômenos naturais guiadas pela curiosidade. A tecnologia que acabamos criando não levou nada perto de dez a vinte milhões de dólares para ser desenvolvida, mas exigiu um conhecimento completo da química e da biologia da imunidade adaptativa bacteriana, um tópico que pode parecer totalmente não relacionado à edição de genes. Este é apenas um exemplo da importância da pesquisa básica – a busca da ciência para compreender nosso mundo natural – e sua relevância para o desenvolvimento de novas tecnologias. Afinal, a natureza teve muito mais tempo do que os humanos para realizar experimentos!

Eu termino essa “review” ecoando A Crack in Creation:

O poder de controlar o futuro genético de nossa espécie é incrível e assustador. Decidir como lidar com isso pode ser o maior desafio que já enfrentamos. Eu espero – eu acredito – que estejamos à altura da tarefa.

 

Saiba mais:

DOUDNA, Jennifer A.; STERNBERG, Samuel H. A crack in creation: Gene editing and the unthinkable power to control evolution. Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Brasil tem Prêmio Nobel? O caso de Peter Medawar

Peter B. Medawar em sua residência, Hampstead, Londres, 22 de abril de 1977. Disponível aqui.

Filho de um pai libanês e uma mãe britânica, Peter Brian Medawar nasceu às 17h:30 do dia 28 de fevereiro de 1915, em Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil. Com seu nascimento registrado no Consulado Britânico, Peter Medawar adquiriu seu status de cidadão britânico. Pela lei brasileira, Peter também teve a sua nacionalidade brasileira reconhecida.  

Aos 13 anos, Peter foi para Inglaterra cursar os estudos secundários no Marlborough College. Em 1932 ingressou no Magdglen College, Oxford, para estudar zoologia sob tutela do professor J. Z. Young. Uma vez concluído o seu bacharelado em Oxford em 1935, Peter trabalhou por um tempo na School of Pathology (Escola de Patologia de Oxford), sob supervisão de Howard Florey (que viria a ser laureado com o Nobel de Fisiologia e Medicina em 1945). E foi ali onde parece ter aflorado o seu interesse pela intersecção entre biologia e medicina. Aos 24 anos, Peter surpreendeu ao obter o primeiro lugar em concurso para a cadeira de microbiologia em Oxford.

Em homenagem prestada a Peter Medawar em 2015, no centenário de seu nascimento, a Sociedade Brasileira de Nefrologia sumarizou bem o desenrolar de sua carreira:


As pesquisas iniciais de Medawar foram dedicadas à cultura de células e à regeneração de nervos periféricos. Foi pioneiro no emprego de modelagem matemática em culturas de tecidos, aplicando-a na análise do crescimento, morfologia e desenvolvimento celular. Durante a Segunda Guerra, prestou serviços na Unidade de Queimados da Glasgow Royal Infirmary. Os intensos bombardeios na Inglaterra causaram muitas vítimas com queimaduras extensas e a rejeição dos enxertos de pele era um dos maiores problemas hospitalares. 

O conhecimento médico da época entendia que a prevenção da rejeição de pele era uma questão de habilidade cirúrgica. Estudando pacientes enxertados, Medawar demonstrou que a rejeição era um problema fundamentalmente biológico. Observando o intervalo para a rejeição e verificando a invasão do enxerto por linfócitos, desenvolveu a teoria da imunidade dos transplantes. Foi pioneiro nos mecanismos de tolerância imunológica adquirida e na imunomodulação com corticoides, que produziu o primeiro impacto positivo no aumento da sobrevida dos transplantes renais. 

Em 1960, como reconhecimento pela excepcional contribuição científica, Peter Medawar recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, juntamente com o australiano Frank Burnet, pelo estabelecimento das bases da tolerância imunológica para a criação do soro antilinfocitário, que modificou definitivamente a história da rejeição pós-transplante de órgãos. Em 1962, foi nomeado chefe do maior laboratório de investigação médica do Reino Unido, o National Institute for Medical Research, e em 1965 recebeu o título de Sir, concedido pela Rainha Elizabeth II. Foi também fundador e primeiro presidente da Sociedade Internacional de Transplantes.

 

Portanto, o Brasil tem pelo menos um Nobelista nascido no País. Contudo, formalmente, quando Peter Medawar foi laureado ele já não era mais portador da nacionalidade brasileira. O que aconteceu foi o seguinte. Quando da sua maioridade, Peter morava fora do país e recebia uma bolsa de estudos do Governo Britânico. No intuito de obter isenção do serviço militar obrigatório brasileiro, buscou apoio em seu padrinho, Salgado Filho, então Ministro da Aeronáuitca. Entretanto, o então Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra (mais tarde Presidente do Brasil) recusou o pedido, argumentando que, sem serviço militar prestado, não havia como manter a nacionalidade. E assim Peter Medawar “deixou de ser” brasileiro. 

Peter Medawar, recém laureado, retornou ao Rio de Janeiro em 1961, recebendo da Universidade do Brasil (atualmente UFRJ) o título de Doutor Honoris Causa. Segundo o próprio cientista, o retorno depois de tantos anos foi motivo de forte emoção. Como curiosidade, um primo de Medawar relatou à Folha de São Paulo (numa entrevista de 1996) que nessa passagem pelo Brasil, Peter teria se encontrado com Jânio Quadros. Em 1969, durante o encontro anual da Associação Britânica, Medawar foi acometido por um acidente vascular cerebral. E assim sua carreira como pesquisador foi sendo interrompida. 

Brilhante cientista, Medawar também foi reconhecido como excelente autor. Richard Dawkins, famoso biólogo de Oxford, não poupa elogios a Medawar. Certa vez Dawkins afirmou que Peter foi o “mais sagaz de todos os escritores científicos”. Alguns de seus livros são: The Uniqueness of the Individual (1957), The Future of Man (1960), The Art of the Soluble (1967), Advice to a Young Scientist (1979), Pluto's Republic (1982), The Limits of Science (1984). Esse último foi publicado no Brasil sob o título “Os Limites da Ciência” (Editora UNESP, 2008). Peter Brian Medawar faleceu em 02 de outubro de 1987. 


Saiba mais:

Homenagem da Sociedade Brasileira de Nefrologia:

YOUNES-IBRAHIM, Maurício. Homenagem da Nefrologia Brasileira a Peter Brian Medawar. Brazilian Journal of Nephrology, v. 37, n. 1, p. 07-08, 2015. Doi: https://doi.org/10.5935/0101-2800.20150001 

 

Página oficial sobre o Nobel de Peter Medawar em 1960:

https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/1960/medawar/biographical/

 

Entrevista do primo de Medawar à Folha em 1996:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/06/mais!/24.html

 

A página na Wiki (em inglês) também conta com bastante informação (referenciada) sobre Peter Medawar:

Wikipedia contributors. (2020, June 26). Peter Medawar. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 16:07, August 5, 2020, from https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Peter_Medawar&oldid=964674973


DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...