Capa. Ao fundo, "O homem de Nebraska", reconstrução artística de Amédée Forestier. Dente do Homem de Nebraska próximo à lateral direita da imagem, destacados pelo contorno em branco. |
Se você é só um pouquinho como eu e já cometeu o questionabilíssimo ato de discutir com criacionistas em redes sociais, provavelmente já jogaram o caso do “Homem de Nebraska” na sua cara. Mas senão, tudo bem. Eu explico.
No
dia 25 de fevereiro de 1922, Harold Cook, um fazendeiro e geólogo consultor,
escreveu para Henry Fairfield Osborn, renomado paleontólogo, para informar sobre
um desgastado dente fóssil coletado por ele em 1917, em Nebraska, nos EUA, e que,
segundo Harold, parecia muito com um dente humano. Contudo, Harold Cook o havia
encontrado em estratos do Plioceno. Já no mês seguinte o fóssil estava com
Osborn, que escreveu para Harold dizendo o seguinte:
No instante em que seu pacote chegou, sentei-me com o
dente, em minha janela, e disse a mim mesmo: “Parece cem por cento antropoide”.
Eu então levei o dente para a sala do Dr. Matthew e o comparamos com todos os
livros, todos os moldes e todos os desenhos, concluindo que é o último dente
molar superior direito de algum primata superior... Podemos se acalmar amanhã,
mas me parece que o primeiro símio antropoide da América foi encontrado.
Em
abril daquele mesmo ano Osborn anunciou o Hesperopithecus haroldcookii;
enquanto que Hesperopithecus significa “símio ou macaco do mundo
ocidental”, o epíteto específico haroldcookii é uma clara homenagem a
Harold Cook. Osborn e aqueles que ele consultou acreditavam ter descoberto o primeiro
primata antropoide da América. O fato de ser antropoide tinha todo um apelo,
uma vez que nós mesmos somos primatas antropoides.
Mas
o status de primata do Hesperopithecus não foi recebido sem críticas. Eu
não vou me estender aqui e, portanto, sugiro que consulto o material no saiba
mais. Mas o fato é que o reinado do Hesperopithecus só durou até 1927,
quando William King Gregory, amigo de Osborn, teve publicado na Science um
artigo chamado "Hesperopithecus aparentemente não é um macaco nem
um homem."
Expedições
organizadas pelo próprio Osborn em 1925 e 1926, com o intuito de coletar mais
material que pudesse corroborar a identificação do Hesperopithecus como
sendo mesmo um primata antropoide, acabaram com toda a empolgação. De fato,
mais material foi encontrado, inclusive partes do esqueleto, mas conforme
Gregory relatou em seu artigo, isso revelou que, muito longe de ser um primata,
o dente com base no qual foi descrito o Hesperopithecus pertenceu a um
tipo de porco selvagem extinto do gênero Prosthennops.
Um
banho de água fria.
Paleontólogos
profissionais haviam confundido o dente de um suíno extinto com o de um primata
antropoide. Eu preciso explicar porque os criacionistas amam essa história?
Mas
a verdade é que, ao contrário do que fazem os criacionistas, não devemos olhar
para o caso do Homem de Nebraska como um embaraço ou desastre completo. Na
verdade, é uma história que mostra a ciência em ação. Ao contrário do método
criacionista de esperar publicações para que então possam distorcer, cientistas
de fato fazem... Bem, ciência.
Eu
gosto de olhar para esse caso nos moldes do que Stephen Jay Gould propôs em “An
Essay On A Pig Roast”, ensaio que faz parte do livro Viva o Brontossauro,
o qual eu já recomendei no canal. Ele sugere que consideremos o todo como uma
sequência cronológica em cinco episódios.
O
primeiro episódio é “a proposta”. Osborn recebeu o dente que Cook lhe
enviara e, após algum estudo, anunciou a descoberta do Hesperopithecus.
O
segundo episódio é sumarizado em “dúvidas e propostas alternativas”.
Osborn sabia que o material que tinha em mãos era muito fragmentário e que,
portanto, havia mais, muito mais a ser estudado e discutido. Em momento algum
Osborn afirmou que se tratava de um ancestral humano direto. Sobre o dente, ele
disse em um dos seus artigos:
Não se pode dizer que o molar do Hesperopithecus
se assemelhe muito a qualquer tipo conhecido de molar humano. Certamente não
está intimamente relacionado ao Pithecanthropus erectus na estrutura da
coroa molar…. É, portanto, um tipo novo e independente de primata, e devemos
buscar mais material antes de podermos determinar suas relações.
Encorajar
novos estudos, aliás, caracteriza do terceiro episódio. Osborn contatou
colegas ao redor do mundo, fez réplicas do dente e enviou para pelo menos 26
instituições na Europa e na América do Norte. Não é como se Oborn estivesse
como medo de ser refutado ou achasse que sua interpretação fosse
definitivamente correta. Como resultado, chegaram a Osborn diversas propostas
de interpretação da identidade do dente.
Quando
algo é problemático, buscar mais dados relevantes geralmente ajuda um pouco. E
isso caracteriza o quarto episódio. Osborn, como já mencionado,
organizou expedições em 1925 e 1926 para coletar mais material onde o dente
problemático foi encontrado.
Por
fim, o quinto e último episódio é caracterização pelo reconhecimento do
erro, que veio oficialmente sob a forma do já mencionado artigo de Gregory
publicado na Science em 1927.
Quando
observamos o Homem de Nebraska sob esta perspectiva, só nos resta indagar
porque diabos os criacionistas amam um acontecimento que só demonstra a ciência
funcionando muito bem. Eles usam o Homem de Nebraska como um dispositivo
retórico, para tentar passar a ideia de que a ciência convencional é uma
tolice, repleta de erros grosseiros. Mas o fato é que deveriam aprender como
funciona a ciência. Se pudessem perceber as sutilezas e reconhecer o verdadeiro
valor dessa história, jamais teríamos de ouvir ou ler centenas de barbaridades
criacionistas. Fariam um imenso favor a nós e a si mesmos.
Já que a Bíblia lhes é muito importante, eu sugiro aos criacionistas Provérbios, 25:14, onde se pode ler que,
Como nuvens e ventos que não trazem chuva, assim é o
homem que se gaba falsamente de dádivas.
Provérbios 25:14
Para saber mais:
O
ensaio que serviu como base para esse roteiro:
GOULD,
Stephen Jay. An essay on a pig roast. Natural History, v. 98, n. 1, p.
14-&, 1989.
Artigos
citados:
Osborn, Henry Fairfield (May 1922). "Hesperopithecus,
the first anthropoid primate found in North America". Science. 55 (1427):
463–65. doi:10.1126/science.55.1427.463
Gregory, W.K. (1927). "Hesperopithecus apparently
not an ape nor a man". Science. 66(1720):
579–81. doi:10.1126/science.66.1720.579
Evolucionismo e Criacionismo, nenhum deles é ciência. São estruturas conceituais nas quais praticantes da ciência (vista como método para se chegar ao conhecimento) procuram encaixar seus achados.
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