terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A Evolução dos Bichos - A Grande Explosão Cambriana (Parte 4)






No texto 3 desta série, desmistificamos equívocos sobre o período Cambriano. Lá estão respondidas algumas das principais alegações errôneas sobre este momento da história da vida no planeta. Se você ainda não leu esse texto, é só clicar AQUI.

Se você é novo por aqui, saiba que esse texto faz parte de uma série maior com outros 3 textos anteriores. Sugiro que você os leia para saber mais sobre a evolução dos Animais, o link para o primeiro deles está AQUI. Agora vamos ao texto!

A GRANDE EXPLOSÃO DE COMPLEXIDADE

Certamente o Cambriano é um dos períodos mais complexos de serem estudados à luz da teoria evolutiva. Essa complexidade vem de fatores como a antiguidade do período, as grandes mudanças na biota do planeta e a relativa escassez de fósseis pré-cambrianos. Um outro desafio para a escrita deste texto é a quantidade de informação disponível. O Cambriano é, eu diria, um dos períodos históricos sobre o qual há mais artigos publicados. O recorte que eu achei mais apropriado foi o de artigos publicados nos últimos 15 anos, e grandes revisões sobre o tema (mesmo que anteriores a esse período).






TEMPO: UM ENIGMA PERMANENTE NA PALEONTOLOGIA


Uma questão fundamental para começar a delinear os eventos da explosão é criar uma linha temporal de eventos, procurando delinear especialmente quais linhagens estavam presentes antes e durante o Cambriano. Porém essa é uma questão muito complicada para a biologia evolutiva.

A idade das linhagens foi e continuará sendo um enigma. Saber exatamente quando um grupo surge é um dado completamente inacessível para nós, uma vez que estamos tratando de uma ciência histórica, que tenta desvendar o passado distante, com os poucos pedaços que sobraram dele. Mas há certamente maneiras de estimar essas divergências, usando os fósseis e a biologia molecular.

DATANDO AS DIVERGÊNCIAS EM METAZOA

Eu pretendo, em um futuro breve, fazer um texto mais detalhado sobre a datação dos nós das árvores filogenéticas. Ele entrará na nossa série sobre cladística "Como Organizamos os Seres Vivos" (caso você ainda não a conheça, sugiro fortemente a sua leitura, é só clicar AQUI e começar). Para não me estender demais neste texto peço apenas que absorvam às informações das árvores que mostrarei e aguardem o futuro texto para detalhes sobre metodologias de datação.

Um trabalho recente que estima o tempo de divergência entre as linhagens de Metazoa é o de Erwin e colaboradores (Erwin et al., 2011). Seus resultados estão apresentados na figura abaixo:

Extraído de Erwin et al. 2011


Se observarmos a filogenia datada é possível ver que tanto grupos basais de Metazoa quanto os principais grupos Bilaterais (Spiralia, Ecdysozoa e Deuterostomia), surgem muito antes do início do Cambriano. Apesar da escassez de fósseis antes do fim Ediacarano, temos bons motivos para assumir que esse resultado reflete, de fato, a realidade:

1- A presença de fósseis como a Kimberella e o Cloudina, ambos linhagens derivadas de Metazoa (ver texto passado para mais informações), atestam que ao menos a base das outras linhagens próximas já haviam surgido. Observe na figura abaixo:

Figura elaborada a partir do trabalho de Giribet et al. 2016


2 - Pode-se argumentar também a respeito de um viés de conservação dos fósseis, isto é, viés  tafônomico. Uma vez que muitos desses grupos de bilatérios não evidenciados diretamente são de corpo mole (muitos são vermiformes), há uma dificuldade intrínseca de fossilização. Também temos que levar em consideração que a qualidade de preservação dos sítios Ediacaranos conhecidos é relativamente inferior aos famosos Burgess Shale (no Canadá) e os surpreendentes sítios Chineses de Quinjiang e Chengjiang.

ENTÃO NÃO HÁ NADA DEMAIS NO CAMBRIANO?

É importante colocar aqui que, embora possa existir um viés de fossilização, não é razoável cobrir essa suposta lacuna apenas nos baseando na esperança da descoberta futura de trilobitas ou cordados Ediacaranos. Ainda que seja possível que fósseis como esses apareçam em futuras empreitadas paleontológicas, o que certamente seria um plot twist da evolução dos animais, temos que nos ater às evidências do momento e elas indicam que o período foi sim, em algum sentido, explosivo. Trabalhos como o de Lee e colaboradores (2013) apontam que as taxas de evolução tanto no nível genético quanto no morfológico podem ter sido até 5x mais rápida no início do Cambriano que a média dos outros períodos geológicos.

EXPLOSÃO DE DISPARIDADE

Apesar de atestarmos a presença de linhagens derivadas no pré-Cambriano, é importante fazermos uma diferenciação entre diversidade de linhagens e a disparidade entre elas. Quantidade de linhagens não necessariamente reflete uma grande diversidade morfológica. Como estamos falando sobre os primeiros passos dos grupos de Metazoa a partir de um ancestral comum, é intuitivo imaginar que quanto mais próximas da origem mais parecidos tenderão a ser os organismos das diferentes linhagens.

Então mesmo que muitas das linhagens de Metazoa tenham surgido no durante o Ediacarano, nossas evidências mostram que após durante o Cambriano a diversidade de formas (a disparidade) entre animais de fato explodiu.

Para mais informações sobre a diferenciação de diversidade e disparidade consultar os trabalhos do paleontólogo Stephen J. Gould (Gould, 1991; Gould, 1993)


ESPAÇO: OS GATILHOS DO AMBIENTE PARA A GRANDE DIVERSIFICAÇÃO DOS ANIMAIS

É impossível dissociar a evolução do ambiente onde ela ocorre. Como argumentamos anteriormente, apesar muitas das linhagens de Metazoa atuais serem mais antigas que o Cambriano, o que nossas evidências fósseis mostram é que a grande diversidade de formas "chegou atrasada", só se expressando de forma mais incisiva no Cambriano e de forma bastante rápida para a escala evolutiva. Esse padrão parece atestar que há algo além do tempo que acentuou essa disparidade. Os fatores ambientais, sejam eles da interação dos animais com o ambiente físico ou com outros organismos vivos, forneceram condições para que a disparidade da vida animal florescesse rapidamente.


OS PAPEIS DO OXIGÊNIO

O gás oxigênio é o combustível dos organismos eucariotos. Sem oxigênio, a quantidade de energia que um animal consegue produzir é drasticamente reduzida. Isso faz com que o oxigênio tenha um papel importante nas modificações na biota do planeta. Uma maior quantidade de oxigênio no ambiente, permite a produção de mais energia e, consequentemente, aumento do tamanho dos organismos e ecologias mais complexas. A concentração de oxigênio tanto nos oceanos, quanto na atmosfera, é o mais antigo ponto levantado para explicar a explosão cambriana. Esse ponto continua sendo reforçado por trabalhos recentes (Zhang & Cui 2016, Dong 2019).

Porém, apesar da existência desta correlação, no Cambriano os níveis de oxigênio nem sempre seguiram diretamente o mesmo caminho explosivo de sua fauna. Na verdade o ele parece ter atuado também de outra forma.

Artigos recentes têm apontado para níveis instáveis de oxigênio oceânico (especialmente em médias e grandes profundidades) desde o meio do Ediacarano até o fim do Cambriano. Essas flutuações parecem ter atuado como uma pressão evolutiva bastante intensa sobre os animais que floresciam no período, agindo como um catalizador para inovações evolutivas e fazendo com que as populações fossem pressionadas a desenvolver soluções para ambientes com privação de oxigênio. (Wood et al., 2019; Wei et al., 2018)

ESPÉCIES REATIVAS DE OXIGÊNIO

Um metabolismo rico em oxigênio, como o dos animais, também possui suas consequências indesejáveis. Toda a vez que seu corpo gera energia usando este gás ele gera o que chamamos de espécies reativas de oxigênio (EROs), que são basicamente compostos com oxigênio em sua fórmula que reagem com (quase) tudo que encontram pelo caminho. É provável que, com o aumento do oxigênio disponível, uma grande quantidade de EROs tenha sido formada nos organismos. Esses compostos são bastante conhecidos por aumentarem as taxas de mutação, o que pode ter contribuído para o surgimento de novidades evolutivas, que auxiliaram na diversificação dos animais  (Yang et al., 2018).

Além do papel mutagênico, o estresse oxidativo também pode atuar como um modulador da expressão gênica. Isso significa que o excesso de EROs nos organismos, além do efeito nas taxas de mutação, também atua como regulador da expressão dos genes, o que certamente pode ter contribuído para expandir a diversidade morfológica dos animais durante o Cambriano. Genes como os da família HOX e PAX, muito importantes no desenvolvimento embrionário e fundamentais para moldar a forma dos organismos, já mostraram ter sua expressão fortemente influenciada por esses compostos (Yang et al., 2018).

GEOQUÍMICA DOS OCEANOS

Outra contribuição, dessa vez indireta, dos níveis aumentados de oxigênio nos mares cambrianos foram as mudanças geoquímicas evidenciadas em algumas formações geológicas do período de transição Ediacarano-Cambriano conhecidas como "Yudoma Group".

Um trabalho de 2017 identificou uma mudança de padrão no tipo de rocha encontrada no fim do Ediacarano (em alguns sítios) e na transição para o Cambriano. Esse padrão indica que provavelmente houve um substancial aumento na quantidade de cálcio disponível nos oceanos, causada pela ação do oxigênio. Esse cálcio, agora mais abundante, facilitaria o desenvolvimento de biomineralização (as carapaças e conchas dos animais), o que também está diretamente ligado à facilidade de fossilização dos organismos, diversificação de seu estilo de vida e novidades evolutivas. (Wood et al., 2017)

NEM TUDO É OXIGÊNIO

É fato conhecido que a Terra e seus continentes mudam ao longo do tempo (a existência do super continente Pangea é o exemplo mais famoso disso). O movimento de placas tectônicas afeta forma e posição dos continentes. Além disso, tanto a ação das placas quanto o nível do mar fazem com que a quantidade de terra não alagada (também conhecida como "continentes") mude ao longo do tempo. O trabalho de Maruyama  e colaboradores aponta que, entre o Ediacarano e o início Cambriano, o nosso planeta teve sua maior quantidade de terra exposta na história (Maruyama et al., 2014).

Figura disponível no artigo de Maruyama et al. 2014


Neste momento, você deve estar se perguntando: E daí? O que essa curiosidade da geologia tem a ver com a evolução dos animais? Calma! Já vamos chegar lá. Mas antes disso precisamos falar um pouco sobre fluxo de nutrientes.

Em um ecossistema moderno como a floresta Amazônica, por exemplo, elementos fundamentais para a vida animal como o Potássio, Fósforo, Cálcio e Nitrogênio são assimilados da crosta terrestre pelos vegetais (algumas vezes auxiliadas por bactérias) e se difundem por todos os organismos através da cadeia alimentar. Mas e quando não havia plantas ou sequer vida complexa nos continentes? Como esse fluxo acontecia?

Basicamente, a própria crosta terrestre ficava encarregada de entregar esses elementos aos oceanos através da erosão das rochas do continente por ação de forças como vento e outros agentes naturais. Portanto, a quantidade de terras fora da água era um fator determinante, que limitava a quantidade desses elementos que entraria nos oceanos. Quando observarmos o gráfico acima fica claro que a ação das placas tectônicas e uma grande queda no nível do mar (algo próximo de 600 metros) foram responsáveis por aumentar o volume dos continentes a partir de 750 milhões de anos atrás e, consequentemente, aumentarem muito a quantidade de nutrientes chegando ao mar (Maruyama et al., 2014).

Com esse aumento de nutrientes disponível nos mares, mais um gatilho da vida animal foi disparado, garantindo o fornecimento de elementos fundamentais para a vida e permitindo uma explosão de formas nos oceanos.


ECOLOGIA EM CONSTRUÇÃO

Até o meio do Ediacarano a ecologia e teias alimentares dos ambientes marinhos eram simples. Haviam microalgas e cianobactérias como os principais produtores de energia, protozoários formando a primeira "camada" de consumidores (que comiam algas e outros protozoários) e haviam alguns poucos grupos de metazoários. A essa altura, as esponjas eram um dos mais antigos grupos de animais vivos. Sésseis, elas cobriam o nicho de consumidores secundários filtrando nutrientes livres e seres unicelulares. 

A maior parte da vida animal estava no assoalho dos mares, presas como as esponjas ou se arrastando por aí, como os Dickinsonia e talvez alguns animais bilaterais (provavelmente com  cara de verme). Poucos organismos, provavelmente apenas alguns grupos de águas-vivas, fugiam a esse padrão, apresentando fase de medusa e nadando livre e lentamente na coluna d'água.

Esse ambiente monótono e "plano", com organismos relativamente pequenos, se manteve por algum tempo até que as condições ambientais citadas nas seções anteriores passaram a permitir um aumento do tamanho dos organismos e diversificação no seu estilo de vida. Quando as condições ambientais passaram a ser favoráveis, a complexidade ecológica dos organismos explodiu. 

Sabemos que nichos vagos são um ingrediente essencial para uma rápida diversificação. Basta pegar o exemplo dos mamíferos, que passaram milhões de anos à sombra dos grandes répteis, ocupando posições de coadjuvantes pequenos, noturnos e com cara de ratinho. Quando veio o bólido, colocando fim ao império dos dinos não-avianos e muitos outros grupos, os mamíferos se diversificaram rapidamente em sua forma e nicho ecológico (Grossnickle & Newham, 2016).

A ideia aqui é bem parecida, com a diferença de que o que parece ter limitado a diversificação dos animais não foi um concorrente, mas sim limitações impostas pelo próprio ambiente físico. Uma vez rompidas essas correntes, os animais puderam se diversificar rapidamente. 

O trabalho de Bush e colaboradores (2011) traçou a um panorama da expansão do ecoespaço ocupado pelas faunas Ediacarana (em 3 momentos do período) e das assembleias do Cambriano, mostrando como o número de nichos explodiu rapidamente desde o início do Cambriano. Observe a figura abaixo:

Figura disonível no artigo de Bush et al. 2011

Podemos ver nesta figura que, em cerca de 30 milhões de anos, o número de nichos foi de 9 no fim do Ediacarano, para 29 até o meio do Cambriano. Esse grande aumento do ecoespaço têm como consequência direta um aumento da variedade de forma dos animais, para acomodar todos os novos papéis ambientais que eles passaram a desempenhar. Mas, ao contrário do que possa parecer, a ampliação do nichos não foi apenas mera consequência das permissões do ambiente físico. O aumento da complexidade da ecologia cambriana atuou como potente catalizador para a disparidade dos animais. 

RAINHA VERMELHA EM AÇÃO

Um dos motores mais fantásticos da evolução é a relação ecológica entre os organismos. Quando organismos interagem, seja uma interação benéfica (como plantas e polinizadores) ou maléfica para algum deles (como presa e predador), eles influenciam os caminhos evolutivos uns dos outros. A esse fenômeno de evolução mútua, nós damos o nome de coevolução (Janzen, 1980). dentro dessa gama de interações a relação presa-predador já foi evidenciada como sendo um dos grandes direcionadores da diversidade no planeta (Huntley & Kowalewski, 2007).

Na década de 70 o biólogo Leigh Van Vallen utilizou uma referência ao livro "Alice Através do Espelho" de Lewis Carroll para exemplificar didaticamente como a dinâmica de coevolução leva os organismos a interessantes inovações evolutivas. Em certo momento do livro a Rainha Vermelha diz à Alice: "É preciso correr o máximo possível para permanecer no mesmo lugar". Essa fala deu origem à famosa hipótese da Rainha Vermelha (Van Vallen, 1973).

Para exemplificar o que Van Vallen queria mostrar vamos supor a seguinte situação: um predador adquire qualquer inovação (física ou comportamental) que permita que ele capture presas com mais eficiência. A partir deste momento, passa a existir uma enorme pressão sobre a população das presas e somente aquelas que tiverem inovações igualmente vantajosas para escapar sobreviverão. Isso leva as espécies a uma "corrida armamentista" onde predadores e presas correm muito para permaneceram vivos, ainda que, no fim das contas, não tenham de fato saído do lugar. Continuarão cumprindo os mesmos papéis ecológicos, e a proporção de sucesso na caça e a na fuga de continuará similar ao início. Inovar ou se extinguir.


A predação, ao que tudo indica, foi um dos fatores mais relevantes para impulsionar a biodiversidade no início do Cambriano. Com os modos de vida limitados pelas baixas quantidades de oxigênio até meados do Ediacarano, a predação ativa era praticamente impossível, pois a alta demanda energética desse estilo de vida esbarrava nas limitações ambientais do período (Sperling et al., 2013). Análises da complexidade das teias alimentares do cambriano, suportam amplamente essa visão (Dunne et al., 2008).


Além disso, uma série de inovações morfológicas parecem apontar para uma corrida armamentista: aumento do tamanho corporal dos organismos, inovações nas estruturas bucais, aumento na mobilidade, surgimento de estruturas complexas para percepção ambiental (como olhos) e a mais marcante delas no registro fóssil: a biomineralização (Wang et al., 2018; Patterson et al, 2011; Kouchinsky et al. 2011; Tretsman, 2013).


EXPLOSÃO GENÉTICA?

Há uma grande discussão na literatura sobre a existência de causas genéticas que atuaram diretamente na explosão Cambriana ou se os genes e outros fatores associados apenas teriam ditado os rumos da diversidade animal, dependendo de gatilhos ecológicos ou ambientais prévios. (Erwin, 2015; Tweedt & Erwin, 2015; Holland, 2015; Zhang et al. 2014)

Aqui apresentarei algumas constatações que mostram que grande parte dos principais fatores genéticos centrais, especialmente aqueles que dirigem o desenvolvimento embrionário,  já estavam presente no genoma dos animais, antes da Explosão Cambriana.

DESENVOLVIMENTO EMBRIONÁRIO E A FORMA DOS ORGANISMOS

Já houve um tempo onde o público geral utilizava sem restrição o termo "gene" pra explicar tudo o que se vê no mundo vivo, especialmente na febre do Projeto Genoma Humano no início dos anos 2000. Não era incomum ver matérias utilizando termos como "gene da inteligencia", "gene que cria os membros", "gene do olho". Porém esse é um panorama bastante simplista e, na maioria dos casos, falso.

Hoje já sabemos que o que define a forma dos organismos é, em grande parte, a complexa interação de genes, suas proteínas e fatores auxiliares em grandes redes de regulação*. Os resultados dessas interações irão ditar quando, o quanto e em quais regiões haverá crescimento celular em um embrião, determinando por fim sua forma.  Alguns genes são centrais nessas redes, dentre os mais conhecidos estão os genes das famílias Hox, Parahox e Pax.

*Para mais informações sobre redes de regulação leia a revisão de Davidson & Levin (2005).

Tomando a família Hox como exemplo, podemos tentar avaliar, utilizando a filogenia de Metazoa, quando seus componentes podem ter surgido.Veja abaixo a ocorrência dos genes Hox na filogenia de Metazoa, construída a partir da revisão de Gaunt (2018). Eu também inferi, por otimização dos caracteres, os prováveis genes Hox presentes nos ancestrais comuns dos grupos.



Se analizarmos os genes Hox presentes nos diferentes grupos de animais veremos que é muito provável que, desde a origem de Bilateria (portanto antes da Explosão Cambriana), todos os genes da família Hox já estivessem no genoma dos Animais. Mesmo antes disso, no ancestral comum Cnidaria-Bilateria já deveriam existir alguns destes genes.

Esse padrão de origem antiga de fatores genéticos relevantes é bastante comum na evolução de vários genes homeobox (Holland, 2015). Pax e Parahox apresentam um padrão parecido, exceto pelo fato de que ambos parecem ser ainda mais antigos, surgindo antes da cladogenese Cnidaria-Bilateria. (Miller et al., 2000; Jakob et al. 2003)

O mesmo vale para os micro-RNAs, muito importantes para regular finamente o processo de desenvolvimento do embrião, fatores de transcrição e vias de sinalização comuns, como Notch, Wnt e TGF-B. (Tweedt & Erwin, 2015)

Então não há inovação genética no Cambriano?

É muito provável que tenham surgido, sim, diversas inovações genéticas em linhagens Cambrianas, especialmente aquelas relacionadas à regulação das redes genéticas que facilitaram a diferenciação morfológica extrema vista no período.

Porém as evidências que temos apontam para a seguinte  conclusão: o pacote básico de ferramentas do desenvolvimento já estava, de certa forma, "pré-carregado" no genoma dos Metazoa bem antes da Explosão Cambriana.

Desta forma podemos dizer que a explosão não parece ter sido causada por fatores genéticos e sim guiada por eles. E isso inclui tanto o kit básico ancestral quanto inovações genuinamente Cambrianas que podem ter sido impulsionadas por taxas mais altas de mutação devido ao acumulo de EROs, como já comentamos anteriormente.

AMARRANDO AS PONTAS

Na figura abaixo, sintetizei os principais fatores atuantes na grande diversificação Cambriana para amarrar os pontos abordados ao longo do texto.



CONCLUSÃO

O Cambriano foi um período tão maravilhoso quanto complexo. Apenas a sinergia completa entre Geologia, Química e Biologia, pode nos ajudar a entender como e porque um dos mais diversos grupos do planeta explodiu em diversidade e disparidade, gerando "as mais belas e maravilhosas" formas.  Quando os animais emergiram, tomaram pra si o vasto oceano e mudaram para sempre a história da vida no planeta Terra.


Por hoje é "só", pessoal. Aguardo vocês para a próxima!


REFERÊNCIAS

Bush, A. M., Bambach, R. K., & Erwin, D. H. (2011). Ecospace utilization during the Ediacaran radiation and the Cambrian eco-explosion. In Quantifying the Evolution of Early Life (pp. 111-133). Springer, Dordrecht.

Maruyama, S., et al. "Initiation of leaking Earth: An ultimate trigger of the Cambrian explosion." Gondwana Research 25.3 (2014): 910-944.

Wei, Guang-Yi, et al. "Marine redox fluctuation as a potential trigger for the Cambrian explosion." Geology 46.7 (2018): 587-590.

Wood, Rachel, et al. "Integrated records of environmental change and evolution challenge the Cambrian Explosion." Nature ecology & evolution (2019): 1.

Gould, Stephen Jay. "The disparity of the Burgess Shale arthropod fauna and the limits of cladistic analysis: why we must strive to quantify morphospace." Paleobiology 17.4 (1991): 411-423.

Gould, Stephen Jay. "How to analyze Burgess Shale disparity—a reply to Ridley." Paleobiology 19.4 (1993): 522-523.

Erwin, Douglas H., et al. "The Cambrian conundrum: early divergence and later ecological success in the early history of animals." Science 334.6059 (2011): 1091-1097.

Wood, R. A., et al. "Demise of Ediacaran dolomitic seas marks widespread biomineralization on the Siberian Platform." Geology 45.1 (2017): 27-30.

Giribet, Gonzalo. "New animal phylogeny: future challenges for animal phylogeny in the age of phylogenomics." Organisms Diversity & Evolution 16.2 (2016): 419-426.

Bush, A. M., Bambach, R. K., & Erwin, D. H. (2011). Ecospace utilization during the Ediacaran radiation and the Cambrian eco-explosion. In Quantifying the Evolution of Early Life (pp. 111-133). Springer, Dordrecht.

Grossnickle, D. M., & Newham, E. (2016). Therian mammals experience an ecomorphological radiation during the Late Cretaceous and selective extinction at the K–Pg boundary. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences283(1832), 20160256.

Janzen, D. H. (1980). When is it coevolution?.

Huntley, J. W., & Kowalewski, M. (2007). Strong coupling of predation intensity and diversity in the Phanerozoic fossil record. Proceedings of the National Academy of Sciences104(38), 15006-15010.

Van Valen, L. (1973). A new evolutionary law. Evol Theory1, 1-30.

Lee, M. S., Soubrier, J., & Edgecombe, G. D. (2013). Rates of phenotypic and genomic evolution during the Cambrian explosion. Current Biology23(19), 1889-1895.

Sperling, E. A., Frieder, C. A., Raman, A. V., Girguis, P. R., Levin, L. A., & Knoll, A. H. (2013). Oxygen, ecology, and the Cambrian radiation of animals. Proceedings of the National Academy of Sciences110(33), 13446-13451.

Dunne, J. A., Williams, R. J., Martinez, N. D., Wood, R. A., & Erwin, D. H. (2008). Compilation and network analyses of Cambrian food webs. PLoS biology6(4), e102.

Wang, D., Ling, H. F., Struck, U., Zhu, X. K., Zhu, M., He, T., ... & Shields, G. A. (2018). Coupling of ocean redox and animal evolution during the Ediacaran-Cambrian transition. Nature communications9(1), 2575.

Paterson, J. R., García-Bellido, D. C., Lee, M. S., Brock, G. A., Jago, J. B., & Edgecombe, G. D. (2011). Acute vision in the giant Cambrian predator Anomalocaris and the origin of compound eyes. Nature480(7376), 237.

Trestman, M. (2013). The Cambrian explosion and the origins of embodied cognition. Biological Theory8(1), 80-92.

Holland, P. W. (2015). Did homeobox gene duplications contribute to the Cambrian explosion?. Zoological letters1(1), 1.

Erwin, Douglas H. "Was the Ediacaran–Cambrian radiation a unique evolutionary event?." Paleobiology 41.1 (2015): 1-15.

Tweedt, S. M., & Erwin, D. H. (2015). Origin of metazoan developmental toolkits and their expression in the fossil record. In Evolutionary transitions to multicellular life (pp. 47-77). Springer, Dordrecht.

Zhang, X., Shu, D., Han, J., Zhang, Z., Liu, J., & Fu, D. (2014). Triggers for the Cambrian explosion: hypotheses and problems. Gondwana Research25(3), 896-909.

Davidson, E., & Levin, M. (2005). Gene regulatory networks. Proceedings of the National Academy of Sciences102(14), 4935-4935.

Gaunt, S. J. (2018). Hox cluster genes and collinearities throughout the tree of animal life. Int. J. Dev. Biol.62, 673-683.

Miller, David J., et al. "Pax gene diversity in the basal cnidarian Acropora millepora (Cnidaria, Anthozoa): implications for the evolution of the Pax gene family." Proceedings of the National Academy of Sciences 97.9 (2000): 4475-4480.




quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Animais Fantásticos Que Não Mais Habitam - Gado Triássico!


Introdução

Este é mais um roteiro da série “Animais Fantásticos Que Não Mais Habitam”. Ele vai estar numerado como número 6 (clique aqui para assistir) porque resolvi colocar outros vídeos antigos na playlist dessa série, uma vez que eles são dedicados a tratar de animais (fantásticos) extintos específicos. Vamos nessa!

O animal fantástico

Hoje nós vamos falar de um bicho que viveu no período Triássico. Ele foi descrito em 2017 e é bastante bizarro. Por isso ele está aqui nessa série. Apresento-lhes o gado do Triássico Médio, Shringasaurus indicus!


Figura 1. Shringasaurus indicus. By: Liam Elward (@paleobyliam).


Etimologia (Sengupta et al. 2017)

‘Śṛṅga’ (Shringa), em sânscrito antigo, significa “chifre”; ‘sauros’ (σαῦρος), em grego, significa lagarto; ‘indicus’, latinização de “indiano”, uma vez que os fósseis foram encontrados na Índia. Sendo assim, Shringasaurus indicus significa algo como “lagarto-de-cifres indiano”.


Holótipo (Sengupta et al. 2017)

O holótipo é o ISIR-780, que consiste de ossos da parte de cima do crânio (pré-frontal, frontal, pós-frontal e parietal) com um chifre supraorbitário (acima da órbita).

Materiais referidos (Sengupta et al. 2017)

Parátipos*: ossos cranianos e pós-cranianos pertencentes a pelo menos sete indivíduos de diferentes idades, todos coletados numa área de 5mx5m.

*Parátipo é um espécime que, apesar de não ser o holótipo, é usado na descrição de uma espécie nova.



Figura 2. Holótipo (e), parátipos, reconstrução (a, c) e comparação do crânio. Nas imagens d-f um dos lados foi espelhado digitalmente. Sengupta et al. 2017.



Figura 3. Parátipos e reconstrução. Sengupta et al. 2017.

Localidade-tipo (Sengupta et al. 2017)

Os fósseis foram coletados nas proximidades do vilarejo Tekapar, no distrito Hoshangabad, que fica no Estado de Madhya Pradesh, na Índia.


Figura 4. Localização dos fósseis. Sengupta et al. 2017.


Contexto geológico (Sengupta et al. 2017)

Os estratos geológicos contendo os fósseis situam-se na Formação Denwa, datados do começo do Triássico Médio, correspondendo ao Anisiano (247.2242 milhões de anos). Portanto, são anteriores aos mais antigos dinossauros conhecidos, que são do Carniano (237227 milhões de anos).


Características diagnósticas (Sengupta et al. 2017)

Animal relativamente grande, atingindo 3 ou 4 metros de comprimento. A característica diagnóstica mais conspícua dos Shringasaurus é, adivinhe você, a presença de um par de cifres supraorbitários subcônicos que se projetam anterodorsalmente, algo similar a alguns dinossauros ceratopsídeos.


Figura 5. Reconstrução do crânio do Shringasaurus indicus. By: @MacnVp.


Sistemática
Archosauromorpha Huene, 1946:
Grupo formado pelos répteis da linhagem dos arcossauros – linhagem das aves e linhagem dos crocodilianos – e formas afins.  
Allokotosauria Nesbitt et al., 2015:
Um grupo de estranhos répteis herbívoros do Triássico Médio conhecidos da Ásia, África, América do Norte e Europa.
Azendohsauridae Nesbitt et al., 2015:
Família de allokotossauros que inclui os gêneros  Shringasaurus e Azendohsaurus e possivelmente outros representativos triássicos.


Figura 6. Relações filogenéticas entre arcossauromorfos. Sengupta et al. 2017.


Paleobiologia (Sengupta et al. 2017; Sengupta 2018)

Como eu disse anteriormente, foram encontrados diversos indivíduos dessa espécie, em diferentes estágios do desenvolvimento ontogenético, ou seja, uns mais novos, outros mais velhos. Assim, é possível observar que havia uma tendência conforme o indivíduo envelhecia: os chifres tornavam-se maiores e mais robustos.

Esses chifres robustos, subcônicos, não ramificados, são encontrados em diversos amniotas e servem como sinal de qualidade individual e armas para lutas intraespecíficas, isto é, em combate com indivíduos da mesma espécie, geralmente machos disputando uma fêmea. Então, é possível que a evolução desses chifres, que ocorreu independentemente várias vezes, se tenha se dado por seleção sexual atuando sobre o desempenho dessas armas em combates e dispositivos de sinalização individual.

É possível, portanto, que os Shringasaurus fossem dotados de chifres por essas razões. Aliás, pelo menos (Fig. 1g) um dos espécimes encontrados nessa assembleia de fósseis de Shringasaurus possuía ossos frontais sem chifres, indicando aí um possível dimorfismo sexual. E dimorfismo sexual geralmente é atribuído à seleção sexual. 

Não bastasse a convergência com dinossauros ceratopsídeos, os Shringasaurus também exibem algum grau de convergência com dinossauros sauropodomorfos, como a forma dos dentes marginais, os quais são sugestivos de herbivoria.


Figura 7. Dente de Azendohsaurus. Os dentes dos Shringasaurus são similares. By Martín D. Ezcurra - The phylogenetic relationships of basal archosauromorphs, with an emphasis on the systematics of proterosuchian archosauriforms. (2016) PeerJ 4:e1778 https://peerj.com/articles/1778/, CC BY 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=72302020

Sendo assim, os Shringasaurus devem cumprido o papel ecológico de grandes consumidores primários, papel este que, antes da descoberta dessa espécie, acreditava-se ter sido restrito, no que diz respeito ao paleozoico, começo e meio do Triássico, aos sinapsidos.

Em 2018, Sengupta, um dos pesquisadores que descreveu o Shringasaurus, reportou que um dos espécimes, um adulto, possuiu um par de vértebras cervicais aberrantes, parcialmente fusionadas – uma paleopatologia. Essas vértebras podem ter ficado assim devido a uma má formação, espondiloartropatia (um tipo de artrite) ou como resultado de uma infecção bacteriana ou fúngica no disco intervertebral. Aparentemente essa patologia não afetou muito o animal, uma fez que ele viveu até a idade adulta.

Paleoecologia (Sengupta et al. 2017)

Na formação Denwa já foram encontrados diversos vertebrados. Por exemplo: Ceratodus sp. (peixe-pulmonado), Paracyclotosaurus crookshanki e Cherninia denwai, ambos da linhagem dos anfíbios, além de rincossauros e dicinodontes. 

Encerramento

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Para saber mais

SENGUPTA, Saradee; EZCURRA, Martín D.; BANDYOPADHYAY, Saswati. A new horned and long-necked herbivorous stem-archosaur from the Middle Triassic of India. Scientific reports, v. 7, n. 1, p. 8366, 2017.

NESBITT, Sterling J. et al. Postcranial osteology of Azendohsaurus madagaskarensis (? Middle to Upper Triassic, Isalo Group, Madagascar) and its systematic position among stem archosaur reptiles. Bulletin of the American Museum of Natural History, v. 2015, n. 398, p. 1-126, 2015.

SENGUPTA, Saradee. Fusion of cervical vertebrae from a basal archosauromorph from the Middle Triassic Denwa Formation, Satpura Gondwana Basin, India. International journal of paleopathology, v. 20, p. 80-84, 2018.

Wikipedia contributors. (2020, January 5). Shringasaurus. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 23:32, January 15, 2020, from https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Shringasaurus&oldid=934319375

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