terça-feira, 12 de março de 2019

A Evolução dos Bichos: O que NÃO foi o Cambriano (Parte 3)

Reconstrução artística da biota do Ediacarano.
Imagem disponível aqui.


INTRODUÇÃO

O texto 2 da nossa série trouxe algumas boas hipóteses de como os primeiros animais poderiam ter surgido. Se você não leu esse texto, clique aqui e você será redirecionado pra lá.

No fim do texto passado eu disse que a série continuaria a partir da explosão do período Cambriano. Porém, ao começar a escrever este texto, decidi descumprir minha palavra, e hoje falarei sobre o que NÃO foi a Explosão Cambriana. Calma, eu explico.

Devido a complexidade do tema, eu achei melhor dividir a discussão sobre o Cambriano em dois textos: o primeiro será sobre os equívocos relacionados ao período Cambriano e o segundo, esse sim, será sobre o que de fato sabemos sobre ele.

Portanto, hoje tentaremos de desmistificar alguns equívocos, algumas vezes honestos, (cometidos ou por falta de atualização sobre o assunto ou por ignorância), mas que muitas vezes são utilizados com o simples intuito de dissuadir o leitor e apoiar visões criacionistas ou "inteligentistas".

Muitos criacionistas dizem, inclusive, que a evolução, em seus moldes tradicionais, seria completamente incompatível com essa rápida explosão. Mas será isso mesmo? Veremos...


BIG BANG ANIMAL?

Alegação: "Os Animais surgem no Cambriano."

O período Cambriano teve seu início há 542 milhões de anos e como já dito no texto anterior, a idade de Metazoa é bastante anterior a isso; pelo menos 90 milhões de anos separam as primeiras formas de vida animais do início do cambriano (1). Isso mostra que, na verdade, há muita história não contada antes dessa tal explosão repentina.

A FAUNA DE EDIACARA

O período Ediacarano (635–541 milhões de anos), anterior ao Cambriano, já mostra uma quantidade interessante (e bastante enigmática) de formas de vida muito provavelmente animal.

No Ediacarano temos rastros bioquímicos e fósseis de espículas (2) e fósseis de esponjas (3), cnidários (águas vivas e parentes próximos) (4), e alguns grupos animais dos quais ainda pouco sabemos sobre sua classificação e relação evolutiva.(5)(6)

Alguns fósseis Edicaranos: Charnia, Pteridinium, Yorgia, Parvancorina e o mais antigo fóssil de Porifera já descrito.


E O ELO PERDIDO?

Alegação: "Não há conexão entre as biotas Ediacarana e Cambriana".

A própria presença de grupos de metazoários basais no pré-cambriano já é uma evidência que desmontaria esse argumento. É claro que existem certamente fósseis do Ediacarano de classificação incerta, ninguém nega isso. Alguns autores propõe até um novo reino para muitos deles, o chamado Vendozoa ou Vendobionta (6)(7). Mas dizer que não havia nenhum fóssil de grupos ainda viventes hoje, isso é um equívoco.

Além disso, há alguns fósseis mostrando que não só de esponjas e bichos amassados vive o Ediacarano. Há evidencias da presença de possíveis animais bilaterais já neste período.

Bilateria é o grupo dos animais com simetria corporal bilateral. Esse grande grupo compreende todos os vertebrados, os equinodermos, organismos vermiformes das mais variadas linhagens, artrópodes, moluscos e outros grupos menos conhecidos (8).

Dentre as formas possivelmente bilaterais, dois fósseis do Ediacarano se destacam: Kimberella e Cloudinia.

Kimberella é um gênero fóssil do fim do Ediacarano, datando de 558 milhões de anos. Foi identificado inicialmente como uma espécie de  água viva. Hoje alguns trabalhos o sugerem como sendo um molusco, mais precisamente um gastrópode (grupo que inclui caracóis e caramujos), isso com base em evidências indiretas da presença de uma estrutura muito semelhante à rádula, aparelho bucal exclusivo de moluscos. Apesar de haver bastante discussão sobre a classificação do fóssil,  provavelmente ele representa um Bilateria (9).

Fósseis atribuídos ao Gênero Kimberella à esquerda, uma reconstrução paleoartística do animal à direita.
Imagens aqui, aqui e aqui.

Os fósseis atribuídos ao gênero Cloudinia também podem indicar a presença de animais bilaterais pré-cambrianos. Apesar de intensos debates sobre sua classificação, há bons argumentos que o colocam como um grupo de anelídeos próximos ao que tradicionalmente chamamos de "Poliquetas" (10).

Fósseis de cloudinia à direita. Recontrução proposta por Berker-Keber et al. (12).
Imagens aqui e aqui.


O CAMBRIANO E A EVOLUÇÃO, OS DOIS A 80KM POR HORA...

Alegação: "As diversificação do Cambriano aconteceu mais rápido do que a evolução pode explicar"

A noção de que a Explosão Cambriana foi um evento pontual é também falsa. O período estimado de tempo que engloba a explosão é algo entre 20 e 25 milhões de anos (11).

Esse período, apesar de parecer pequeno em escala geológica, sob condições evolutivas favoráveis (as quais discutiremos no próximo texto), poderia ter experienciado tempo suficiente para que ocorresse grande diversificação nas linhagens animais.

CONCLUSÃO

Podemos ver que, conforme o registro fóssil, alegações aqui apresentadas não se sustentam.

A tal explosão do cambriano está longe de ser uma espécie de marco da criação divina dos animais. Naquele ponto eles já habitavam a terra por um bom tempo.

A continuidade entre as formas ediacaranas e cambrianas também é observada, inclusive com boas evidências da presença de linhagens derivadas (Bilateria) aparecendo pelo menos 20 milhões de anos antes da transição Ediacarano-Cambriano.

Se você me perguntar se a explosão se apresenta de fato como um grande carrasco para a teoria evolutiva, posso dizer para você que não. Mas, por ora, devo pedir que aguardem o próximo texto da série. Nele faremos algumas reflexões e apresentarei algumas teorias e explicações factíveis para o padrão de diversificação observado no início do Cambriano.

Até lá sugiro fortemente uma leitura empolgante (mas nem sempre fácil de ser encontrada) do grande paleontólogo Stephen Jay Gould, que é o livro Vida MaravilhosaNele o autor fala sobre a fauna de Burgess Shale, o primeiro sítio paleontológico abundante e muito conservado do período Cambriano.

Um grande abraço e até o próximo texto!



REFERÊNCIAS



1- Ver texto 2 da série, disponível aqui



2- Reitner, Joachim, and Gert Wörheide. "Non-lithistid fossil Demospongiae—origins of their palaeobiodiversity and highlights in history of preservation." Systema Porifera. Springer, Boston, MA, 2002. 52-68.



3- Yin, Zongjun, et al. "Sponge grade body fossil with cellular resolution dating 60 Myr before the Cambrian." Proceedings of the National Academy of Sciences 112.12 (2015): E1453-E1460.



4- Park, Eunji, et al. "Estimation of divergence times in cnidarian evolution based on mitochondrial protein-coding genes and the fossil record." Molecular phylogenetics and evolution 62.1 (2012): 329-345.



5- Ivantsov, A. Yu, Ya E. Malakhovskaya, and E. A. Serezhnikova. "Some problematic fossils from the Vendian of the southeastern White Sea region." PALEONTOLOGICAL JOURNAL C/C OF PALEONTOLOGICHESKII ZHURNAL 38.1 (2004): 1-9.



6- Seilacher, Adolf. "Vendobionta and Psammocorallia: lost constructions of Precambrian evolution." Journal of the Geological Society 149.4 (1992): 607-613. 



7- Seilacher, Adolf. "Vendozoa: organismic construction in the Proterozoic biosphere." Lethaia 22.3 (1989): 229-239.



8- CRUSTACEA, SUBPHYLUM. "Introduction to the Bilateria and the Phylum Xenacoelomorpha." (2016).



9- Erwin, Douglas H., and Eric H. Davidson. "The last common bilaterian ancestor." Development 129.13 (2002): 3021-3032.



10- Miller, Andrew J. "A Revised Morphology of Cloudina with Ecological and Phylogenetic Implications."



11- Erwin, Douglas H., et al. "The Cambrian conundrum: early divergence and later ecological success in the early history of animals." science 334.6059 (2011): 1091-1097.



12 -  Becker-Kerber, Bruno, et al. "Ecological interactions in Cloudina from the Ediacaran of Brazil: implications for the rise of animal biomineralization." Scientific reports 7.1 (2017): 5482.

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