sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Pseudogene Funcional - Evidência da Evolução (Parte I)


Em outra ocasião, discutimos a origem dos diferentes tipos de pseudogenes (ver "Pseudogenes - Uma Introdução"). O foco deste post será um exemplo de pseudogene duplicado. Simplificadamente, um pseudogene duplicado se forma  quando há duplicação um gene e posterior acúmulo de mutações que tornam uma das cópias (o pseudogene) incapaz de produzir uma proteína (Fig. 1). 

Figura 1. Formação de um pseudogene duplicado. Imagem do livro Relics of Eden.


Nosso genoma tem um gene abreviadamente chamado de GBA, que codifica um enzima (GCase) responsável pela hidrólise de um determinado substrato (os detalhes não são importantes para os nossos propósitos). A deficiência da enzima GCase está associada à doença de Gaucher. Nas proximidades do gene GBA, há uma pseudogene GBA (GBAP). E porquê consideramos que ele é um pseudogene duplicado?

Bem, a sequência desse pseudogene é bastante similar ao GBA. A diferença é que o  GBAP apresenta uma deleção de um trecho de 55 pares de bases, impedindo que o pseudogene GBA produza uma GCase funcional. 

Precisamos invocar um milagre para explicar a origem do  GBAP? Não. Definitivamente, não. Há fatos bem conhecidos que explicam a origem do GBAP. 

- Sabemos que genes eventualmente são duplicados;

- Sabemos que outras mutações ocorrem (deleções, inserções, etc.).

Então, uma explicação muito plausível é que o GBAP se originou quando houve a duplicação do GBA e posterior deleção dos 55 pares de base. Sem necessidade de milagres. E devido ao processo de formação (duplicação + deleção) podemos classificar o GBAP como um pseudogene duplicado. 

O GBAP é interessante, também, por outra razão. Em 2005, pesquisadores descobriram que chimpanzés e gorilas também possuem GBAPs, inclusive na mesma posição e contando com uma deleção de 55 pares de bases. No mesmo estudo, os pesquisadores reportaram que os orangotangos possuem duas cópias do gene GBA e nenhum GBAP. Além disso, outro primata analisado, o macaco-esquilo, possui apenas uma cópia do GBA e nenhum GBAP (mostrando que não é impossível viver com uma cópia apenas do GBA). 

Com base nos dados, uma filogenia foi construída, obtendo o seguinte resultado. 

Figura 2. Filogenia construída com base nos GBAs e GBAPs. A letra grega "psi" indica o pseudogene, ou seja, psiGBA = GBAP. Imagem do artigo de Wafaei & Choy (ver referências).  


Podemos olhar, ainda, para a identidade de sequência dos genes, isto é, para a similaridade dos genes em termos de sequência de bases. Isso está resumido na tabela abaixo. 


Tabela 1. Comparação dos GBAs e GBAPs de diferentes primatas. O percentual de similaridade foi calculado com base em um trecho de ~1.1 kb. Também do artigo de Wafaei & Choy. 


Em conjunto, esses dados nos contam uma história consistente. Havíamos falado que o GBAP teve sua origem via duplicação + deleção. Concordante com isso, há primatas com apenas uma cópia do GBA (macaco-esquilo) e outro primata com duas cópias do GBA, ambas capazes de produzir a GCase (orangotango); adicionalmente, os três primatas que possuem um GBA e um GBAP são parentes próximos, conforme mostra a filogenia.

A ancestralidade comum explica esses dados. 

- A duplicação do GBA ocorreu depois que a linhagem dos grandes símios (chimpanzés, gorilas, orangotangos e humanos) divergiu da linhagem do macaco-esquilo. Tendo em vista que os orangotangos têm duas cópias do gene GBA e que os demais grandes símios possuem um GBA e um GBAP, então o ancestral comum dos grandes símios possuía duas cópias do GBA. 

- A deleção de 55 pares de bases ocorreu depois que a linhagem dos orangotangos se separou da linhagem que inclui chimpanzés, humanos e gorilas. Assim, um GBA e um GBAP estavam presentes no ancestral comum de humanos, chimpanzés e gorilas. 

Eu espero que você tenha percebido que, em momento algum, a funcionalidade ou não-funcionalidade do GBAP precisou ser invocada para que um cenário de ancestralidade comum pudesse explicar o padrão observado. A propósito, o GBAP possui uma função. E como irei mostrar em outro post, esse pseudogene funcional depõe a favor da evolução. Criacionistas pirando em 3, 2, 1... 

Obrigado por ler! Até a próxima!

Referências

Wafaei, J. R., & Choy, F. Y. M. (2005). Glucocerebrosidase recombinant allele: Molecular evolution of the glucocerebrosidase gene and pseudogene in primates. Blood Cells, Molecules, and Diseases, 35(2), 277–285.doi:10.1016/j.bcmd.2005.07.004 

Fairbanks, D. J. (2009). Relics of Eden: the powerful evidence of evolution in human DNA. Prometheus Books.


quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O seu cromossomo 2 é uma evidência da evolução



Figura 1. Na imagem: um espécime de uma das mais perigosas espécies do reino animal ao lado de um chimpanzé. Imagem disponível aqui


Cromossomos.

Certamente essa não é uma palavra nova para você, que está num blog como esse, lendo sobre o que está lendo. Mas, primeiro, vamos à definição de "cromossomo". 


"Cada cromossomo em uma célula eucariótica consiste em uma única e enorme molécula de DNA linear juntamente com proteínas que enovelam e empacotam a fina fita de DNA em uma estrutura mais compacta". 

Bruce Alberts et al., 2017. 


Os cromossomos (Fig 2.) tornam-se facilmente visíveis (com a ajuda de um microscópio, claro) quando a célula está em processo de divisão, pois os cromossomos estão altamente compactados. Eles têm regiões específicas, que você provavelmente conhece. Em cada extremidade do cromossomo, temos um telômero, que consiste majoritariamente de sequências de DNA bem específicas. Entre os telômeros, em alguma região do cromossomo, situa-se o centrômero, que também tem suas próprias sequências específicas.  



Figura 2. Esquema geral de um cromossomo. Imagem disponível aqui


As células humanas diploides contam com 46 cromossomos, sendo 22 pares de cromossomos autossomos e 1 par de cromossomos sexuais. Nossas células germinativas, por serem haploides, possuem apenas 23 cromossomos - 22 autossomos e um cromossomo sexual (X ou Y). 

Se investigarmos as células germinativas dos outros grandes símios, isto é, chimpanzés, gorilas e orangotangos, veremos que estas possuem 24 cromossomos - 23 autossomos e um cromossomo sexual. Essa é um diferença interessante, com implicações evolutivas imediatas. Se humanos, chimpanzés, gorilas e orangotangos compartilham um ancestral comum, como explicar o cromossomo ausente nos humanos?

Em 1982, foi publicado na Science um estudo que concluiu o seguinte: 

"Uma análise comparativa de alta resolução dos cromossomos  do orangotango, gorila, chimpanzé e do homem sugere que 18 ou 23 pares de cromossomos do homem moderno são virtualmente idênticos aos do nosso "ancestral hominoide comum", com os pares restantes ligeiramente diferentes."


Com os estudos posteriores dos genomas dos humanos e chimpanzés, essas conclusões se mantiveram, com a adição de mais similaridade ainda: os cromossomos de humanos e chimpanzés são notavelmente similares, em termos de sequência e organização. O consenso entre os estudos é tal que cada cromossomo humano, com exceção de um, tem sua contraparte no chimpanzé. A única exceção é o cromossomo humano de número 2. Esse cromossomo não é similar a somente um único cromossomo chimpanzé, mas a DOIS cromossomos (Fig. 3).


Figura 3. Os cromossomos 2A e 2B se alinham ao cromossomo 2 humano. Imagem do livro Relics of Eden.

O cromossomo 2 humano se alinha a dois cromossomos do chimpanzé, batizados de 2A e 2B. Como explicar isso? 

Como propõe Daniel Fairbanks no capítulo 1 de seu livro Relics of Eden, três hipóteses mutuamente exclusivas poderiam explicar esse alinhamento. 

1. Se humanos e chimpanzés possuem mesmo um ancestral em comum recente, o cromossomo 2 deve ter se formado através da fusão dos cromossomos 2A e 2B na linhagem que deu origem aos seres humanos (Fig. 4a).

Figura 4a. Hipótese 1: fusão. Imagem do livro Relics of Eden.  

2. Os cromossomos 2A e 2B dos chimpanzés se originou da divisão ou fissão de um cromossomo ancestral (Fig. 4b). 


Figura 4b. Hipótese 2: fissão. Imagem do livro Relics of Eden. 


3. Os cromossomos dos humanos e chimpanzés se originaram independentemente, sem haver nenhuma relação de ancestralidade comum, e portanto parentesco, entre essas espécies.



Para resolver essa questão, voltemos aos telômeros. 

Os telômeros dos humanos e grandes símios têm uma coisa em comum: um sequência de seis pares de bases repetida várias e várias vezes (Fig. 5). 
Figura 5. Sequência repetitiva encontrada nos telômeros. Imagem do livro Relics of Eden. 

Em 1991, cientistas da universidade de Yale descobriram que no meio do cromossomo 2 humano existem sequências que "dão match" com as sequências repetitivas encontradas nos telômeros dos cromossomos 2A e 2B dos chimpanzés (Fig. 6). 

Figura 6. O retângulo indica a região do cromossomo 2 humano que se alinha com sequências encontradas nos telômeros dos cromossomos 2A e 2B. Imagem do livro Relics of Eden. 

Isso indica fortemente que houve a fusão de dois cromossomos para formar o cromossomo 2 humano. Em algum momento do passado, os cromossomos 2A e 2B se fusionaram via telômero-telômero na linhagem que daria origem a nós. 

Ah, é bom não esquecermos dos centrômeros. Eles também entraram em jogo. 

Podemos nos perguntar se no cromossomo 2 humano há regiões equivalentes os centrômeros dos cromossomos 2A e 2B. E a resposta é........ Sim!!! O centrômero do cromossomo 2A se alinha com o centrômero do cromossomo 2 humano. E o centrômero do cromossomo 2B se alinha com uma região onde não existe centrômero algum (Fig. 7). O alinhamento, por si só, já mostra que no cromossomo 2 humano há regiões equivalentes aos centrômeros 2A e 2B. Mas talvez você tenha se perguntado "bom, mas quem garante que essa sequência que se alinha com o centrômero 2B é mesmo derivada de um centrômero, se hoje ela não atua como centrômero?". Justo, e há uma resposta. 


Figura 7. Os retângulos indicam as regiões de alinhamento de sequência. Imagem do livro Relics of Eden. 

O centrômeros dos humanos e outros grandes símios contêm uma sequência de 171 pares de bases muito característica, repetida várias e vária vezes, conhecida como sequência alfoide (alphoid sequence). Procurando na região onde ficaria o segundo centrômero, cientistas encontraram as sequências alfoide, indicando que aquela região é mesmo derivada de um centrômero (Fig. 8). 

Figura 8. Sequências alfoide destacadas em preto. O retângulo preto representa as sequências alfoides encontradas no sítio do cromossomo 2 humano que não funciona como um centrômero. Imagem do livro Relics of Eden.  


Esse post vai chegando ao fim e eu devo fazer algumas considerações. Eu decidi omitir aqui detalhes sobre como deve ter ocorrido a fusão dos cromossomos. No livro Relics of Eden você vai encontrar esses detalhes. Além disso, não consideramos aqui os problemas que um rearranjo cromossômico desse tipo poderia ter causado, como infertilidade. Nem tampouco falamos como essa característica poderia ser fixada. Com exceção do detalhes sobre a fusão cromossômica, vou abordar essas questões em outro post. Contudo, caso alguém deseje se adiantar... links aqui, aqui e aqui, nessa ordem. 


Isso é tudo, por enquanto. Obrigado por ler. Até mais!


Fontes:

Alberts, B., Johnson, A., Lewis, J., Morgan, D., Raff, M., Roberts, K., ... & Hunt, T. (2017). Biologia molecular da célula. Artmed Editora. 

J. J. Yunis and O. Prakash, “The Origin of Man: A Chromosomal Pictorial Legacy,” Science 215 (1982): 1525-30.  

Fairbanks, D. J. (2009). Relics of Eden: the powerful evidence of evolution in human DNA. Prometheus Books.



segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

A Evolução dos Bichos - Quem são nossos irmãos? (Parte 1)


Imagens disponíveis em 1,2,3,4,5,6


Se eu te mostrasse a imagem acima, e perguntasse:

- Você reconhece os bichos presentes nela?


Com quase toda certeza, você diria que sim e, provavelmente, saberia seus nomes também. Agora se eu te perguntasse o que faz desses seres vivos "animais", você teria alguma dificuldade em responder...

Fato é que, apesar da grande familiaridade com esse grupo (afinal, nossa própria espécie pertence a ele), pouco conhecimento é difundido sobre ele como um todo, apesar de hoje já sabermos bastante sobre nossa humilde origem e evolução.

Afinal, quem são nossos parentes não-animais mais próximos? De onde viemos? Como, a partir de um único ancestral, tantas formas diferentes vieram a existir? Essas são perguntas intrigantes e que eu pretendo tentar lançar um pouco de luz para nossos leitores, em mais uma série de textos aqui do blog.

AVISO IMPORTANTE

Antes de começarmos a serie, é praticamente obrigatória a leitura de alguns textos aqui do blog, em especial os da série "Como Organizamos os Seres Vivos?" (a menos que você já domine conceitos de sistemática filogenética, é claro). Essa série dará uma base necessária para entendermos um básico de cladística, e assim, compreender por completo os textos dessa série que está começando.

Eu sei, eu sei... "mas são muitos textos" ; "são grandes, você fala muito"; "quando sai o filme?".
Sabendo que nem todos têm tempo pra ler toda a série eu vou dar uma colher de chá e indicar 2 deles, que acredito que sejam os mais relevantes. Os textos mais importantes, na minha visão, são os de número 2 e 3, por hora. Vocês podem ler eles clicando sobre os números.
Agora que já foram avisados e já leram os textos (ao menos eu espero que sim), vamos ao reino animal!
A GRANDE ÁRVORE DA VIDA

Está completamente fora do escopo dessa série falar sobre origem da vida, porém é necessário ao menos um contexto filogenético global para compreendermos nossa posição no meio de tantos galhos distintos do mundo vivo. Para isso, teremos que ir ao limite da árvore da vida, até os grupos taxonômicos mais abrangentes e inclusivos: os domínios.

De forma tradicional, temos 3 domínios válidos: Bacteria, Archaea e Eukarya, onde Archaea é grupo-irmão dos Eukarya. E claro, todas as 3 linhagens compartilhando um ancestral comum, que chamamos de LUCA (o ultimo ancestral comum universal).(1)


Adaptado de Woese et al (1). Disponível aqui.

Porém, alguns trabalhos mais recentes têm mostrado que, na verdade, só haveriam dois domínios: Bacteria e Archaea, sendo Eukarya uma linhagem dentro de Archaea. Desta forma "Archaea" tradicional passa a ser parafilético, excluindo um grupo de descendentes (que seria a linhagem eucariota). Porém, ainda há trabalhos recentes que reconstroem a hipótese de Woese. Essa é uma discussão complexa, recente e ainda não há um consenso na academia sobre o tópico.(2)(3)


EUKARYA
Apesar de saber que o grande grupo dos eucariotos, linhagem de seres que possuem diversas organelas diferenciadas e um envoltório nuclear que porta o seu material genético, é possivelmente um ramo dentro das Archaea, ainda há muitas lacunas sobre sua origem e evolução (muito mais do que sobre os animais). Apesar disso, bons avanços têm sido feitos em termos de organização interna do grupo.
A organização dos eucariotos mudou muito desde as primeiras classificações, que consideravam 4 reinos: Reino Fungi (o grupo dos fungos), Reino Plantae (o grupo das plantas), Reino Protista (algas e protozoários) e o Reino Animalia. As relações entre esses grupos permaneceu por muito tempo incerta.
Com as filogenias moleculares, esse panorama foi completamente revirado e hoje temos 5 grandes grupos dentro de Eukarya: os Excavata, o super grupo SAR (juntando os grupos Alveolata, Rhizaria e Stramenopiles), Archaeplastida (inclui plantas terrestres, algas verdes e vermelhas), Amebozoa e Opisthokonta (grupo que inclui os animais).(4)

Observe abaixo a nova estrutura dos ramos de Eukarya.


Disponível no artigo de Adl e colaboradores (4).



Muitos dos grupos antes considerados naturais, foram descobertos como sendo parafiléticos ou polifiléticos. Hoje sabemos por exemplo a denominação "protozoário" é completamente artificial, sendo um grande compilado de praticamente tudo o que é unicelular e não fotossintetizante em Eukarya.
Da mesma forma, a nomenclatura popular "algas", que costuma ser usada para se referir aos organismos eucariotos fotossintetizantes, uni ou pluricelulares, excluindo apenas as plantas terrestres, hoje também é considerada polifilética. Alguns grupos tradicionais permanecem como naturais:
- Plantae: hoje é chamado de Embryophyta, e a denominação "planta", antes usada estritamente para a linhagem de plantas terrestres, hoje está ligada a um grupo mais abrangente chamado Viridiplantae, que inclui "algas verdes" e as plantas terrestres.

- Fungi: o grupo sofreu poucas alterações em termos de nomenclatura, também permaneceu monofilético e hoje se sabe estar mais relacionado aos animais que à outros grupos tradicionais.

- Animalia: apesar do nome ter caído em desuso na nomenclatura cientifica, o grupo permanece monofilético e é chamado de Metazoa.

Retornando à arvore dos Eukarya, vamos dar um zoom em um grupo particular, o dos Opisthokonta (em Vermelho). Esse grupo se caracteriza pela presença de células uniflageladas, sendo o flagelo localizado na porção posterior da célula. Além disso, o grupo é amplamente suportado por análises moleculares e inúmeros caracteres bioquímicos. A idade do grupo foi estimada no trabalho de Tedersoo et al. publicado no ano passado, como sendo entre 1.2 e 1.3 bilhões de anos. (5)(6)
Filogenia adaptada de Torruella et al. (7)


Nessa filogenia podemos ver com mais detalhes os clados próximos a Metazoa, sendo que seu grupo-irmão é o pequeno (e pouco conhecido pelo público leigo) grupo dos coanoflagelados.

NOSSOS IRMÃOS UNICELULARES
Os Choanoflagellata são um grupo de seres vivos aquáticos, com representantes marinhos e de água doce. Há cerca de 600 espécies descritas, número muito baixo, se comparado aos mais de 1 milhão de animais.
Sei que pode parecer estranho pensar que dentre tantas linhagens multicelulares (vários grupos de algas, plantas, fungos) um singelo grupo de seres unicelulares, alguns até vivendo em pequenas colônias, seria irmão dos animais. Mas é isso o que todas as evidencias têm nos mostrado. (7)(8)

PS: Neste texto não entraremos de fato no tópico de origem da multicelularidade em Metazoa, pois o próximo texto da serie será dedicado quase que exclusivamente à isso, afinal essa é uma das principais sinapomorfias do nosso grupo e foi com certeza crucial para a evolução dos animais.
Por hora, trarei algumas evidencias que mostram que nós animais e os coanoflagelados somos de fato muito próximos.


AS CÉLULAS DE COLARINHO
Além das evidências moleculares, como o trabalho já apresentado anteriormente, há uma destacada evidência morfológica que nos aproxima desses pequenos seres vivos.
Um coanoflagelado possui uma estrutura celular muito bem definida; basicamente, é uma célula com dois polos distintos. Em um deles há um flagelo único, que é usado para atrair nutrientes para o corpo celular, e no outro uma porção arredondada, circundada por um colarinho com microvilosidades, uma região especializada em fagocitar as partículas de nutrientes.(8)
Observe na imagem abaixo como ele se parece:
À esquerda, detalhe de um coanoflagelado em microscopia eletrônica de varreduras, imagem aqui.
À direita uma pequena colônia de coanoflgelados da espécie Codosiga botrytis, imagem aqui.

O que é bastante curioso, é que essas células são muito parecidas em sua organização com um tipo de célula presente em Poríferos, chamada coanócito. Observe uma comparação entre um coanoflagelado e essa célula de uma esponja do mar:
Imagens aqui e aqui.


Uma organização muito parecida com essa também foi encontrada em células da larva de um animal vermiforme do clado Nemertea (que é relativamente bem derivado em Metazoa) o que pode indicar um caso de reversão à esse plano celular ancestral.(9)
Essa organização peculiar, já sabemos hoje, ser única entre os seres vivos e muitas pesquisas apontam para uma homologia entre diversas estruturas dessas células.(8)(9)(10)
Vale lembrar também que os Poríferos são, desde as primeiras filogenias feitas para os Metazoários, considerados o primeiro (ou um dos primeiros) grupos a se diversificar. Indicando que o mais provável é que essa linhagem tenha retido essa estrutura celular que estava presente no ancestral comum entre Metazoários e coanoflagelados. Isso reforça a ideia de parentesco, nos fornecendo uma base filogenética para sustentar os Choanoflagellata como grupo-irmão dos animais.

Por hoje é só pessoal. No próximo texto dessa série falaremos um pouco sobre as características gerais dos Metazoa e um pouco sobre sua origem e evolução.

Agora o Coelho pré-Cambriano também tem um canal  no youtube! O João tem feito um trabalho demais por lá e se você gosta dos nossos textos, com certeza vai gostar também dos vídeos. Para acessar o canal só clicar aqui. Abraço e até a próxima!

PS: A segunda parte do texto saiu, basta clicar aqui e continuar sua leitura!

REFERÊNCIAS
1 - Woese, Carl R.; Kandler, O; Wheelis, M (1990). "Towards a natural system of organisms: proposal for the domains Archaea, Bacteria, and Eucarya" (PDF). Proc Natl Acad Sci USA. 87 (12): 4576–9.


2 - Hug LA, Baker BJ, Anantharaman K, Brown CT, Probst AJ, Castelle CJ, Butterfield CN, Hernsdorf AW, Amano Y, Ise K, Suzuki Y, Dudek N, Relman DA, Finstad KM, Amundson R, Thomas BC, Banfield JF (April 2016). "A new view of the tree of life". Nature Microbiology. 1(5): 16048. 


3 - Da Cunha V, Gaia M, Gadelle D, Nasir A, Forterre P (June 2017). "Lokiarchaea are close relatives of Euryarchaeota, not bridging the gap between prokaryotes and eukaryotes". PLoS Genetics. 13 (6)


4 - Adl SM, Simpson AG, Lane CE, Lukeš J, Bass D, Bowser SS, et al. (September 2012). "The revised classification of eukaryotes" (PDF). The Journal of Eukaryotic Microbiology. 59 (5): 429–93. doi:10.1111/j.1550-7408.2012.00644.x


5-  Adl, Sina M.; Bass, David; Lane, Christopher E.; Lukeš, Julius; Schoch, Conrad L.; Smirnov, Alexey; Agatha, Sabine; Berney, Cedric; Brown, Matthew W. (2018-09-26). "Revisions to the Classification, Nomenclature, and Diversity of Eukaryotes". Journal of Eukaryotic Microbiology. doi:10.1111/jeu.12691. ISSN 1066-5234.


6 -  Tedersoo, Leho; Sánchez-Ramírez, Santiago; Kõljalg, Urmas; Bahram, Mohammad; Döring, Markus; Schigel, Dmitry; May, Tom; Ryberg, Martin; Abarenkov, Kessy (2018). "High-level classification of the Fungi and a tool for evolutionary ecological analyses"Fungal Diversity90 (1): 135–159. 

7 - Torruella, Guifré, et al. "Phylogenetic relationships within the Opisthokonta based on phylogenomic analyses of conserved single-copy protein domains." Molecular biology and evolution29.2 (2011): 531-544.

8 - King, N.; Westbrook, M.J.; Young, S.L.; Kuo, A.; Abedin, M.; Chapman, J.; Fairclough, S.; Hellsten, U.; Isogai, Y.; Letunic, I.; et al. (February 14, 2008). "The genome of the choanoflagellate Monosiga brevicollis and the origin of metazoans"Nature451(7180): 783–8. doi:10.1038/nature06617

9 -  Cantell, Carl-Erik; Franzén, Åke; Sensenbaugh, Terry (October 1982). "Ultrastructure of multiciliated collar cells in the pilidium larva of Lineus bilineatus (Nemertini)"Zoomorphology101 (1): 1–15. doi:10.1007/BF00312027.


10 - Jasmine L. Mah, Karen K. Christensen‐Dalsgaard, Sally P. Leys "Choanoflagellate and choanocyte collar‐flagellar systems and the assumption of homology", 2014, https://doi.org/10.1111/ede.12060

DNA Lixo: a volta dos que não foram

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