Em outra ocasião, discutimos a origem dos diferentes tipos de pseudogenes (ver "Pseudogenes - Uma Introdução"). O foco deste post será um exemplo de pseudogene duplicado. Simplificadamente, um pseudogene duplicado se forma quando há duplicação um gene e posterior acúmulo de mutações que tornam uma das cópias (o pseudogene) incapaz de produzir uma proteína (Fig. 1).
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Figura 1. Formação de um pseudogene duplicado. Imagem do livro Relics of Eden. |
Nosso genoma tem um gene abreviadamente chamado de GBA, que codifica um enzima (GCase) responsável pela hidrólise de um determinado substrato (os detalhes não são importantes para os nossos propósitos). A deficiência da enzima GCase está associada à doença de Gaucher. Nas proximidades do gene GBA, há uma pseudogene GBA (GBAP). E porquê consideramos que ele é um pseudogene duplicado?
Bem, a sequência desse pseudogene é bastante similar ao GBA. A diferença é que o GBAP apresenta uma deleção de um trecho de 55 pares de bases, impedindo que o pseudogene GBA produza uma GCase funcional.
Precisamos invocar um milagre para explicar a origem do GBAP? Não. Definitivamente, não. Há fatos bem conhecidos que explicam a origem do GBAP.
- Sabemos que genes eventualmente são duplicados;
- Sabemos que outras mutações ocorrem (deleções, inserções, etc.).
Então, uma explicação muito plausível é que o GBAP se originou quando houve a duplicação do GBA e posterior deleção dos 55 pares de base. Sem necessidade de milagres. E devido ao processo de formação (duplicação + deleção) podemos classificar o GBAP como um pseudogene duplicado.
O GBAP é interessante, também, por outra razão. Em 2005, pesquisadores descobriram que chimpanzés e gorilas também possuem GBAPs, inclusive na mesma posição e contando com uma deleção de 55 pares de bases. No mesmo estudo, os pesquisadores reportaram que os orangotangos possuem duas cópias do gene GBA e nenhum GBAP. Além disso, outro primata analisado, o macaco-esquilo, possui apenas uma cópia do GBA e nenhum GBAP (mostrando que não é impossível viver com uma cópia apenas do GBA).
Com base nos dados, uma filogenia foi construída, obtendo o seguinte resultado.
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Figura 2. Filogenia construída com base nos GBAs e GBAPs. A letra grega "psi" indica o pseudogene, ou seja, psiGBA = GBAP. Imagem do artigo de Wafaei & Choy (ver referências). |
Podemos olhar, ainda, para a identidade de sequência dos genes, isto é, para a similaridade dos genes em termos de sequência de bases. Isso está resumido na tabela abaixo.
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Tabela 1. Comparação dos GBAs e GBAPs de diferentes primatas. O percentual de similaridade foi calculado com base em um trecho de ~1.1 kb. Também do artigo de Wafaei & Choy. |
Em conjunto, esses dados nos contam uma história consistente. Havíamos falado que o GBAP teve sua origem via duplicação + deleção. Concordante com isso, há primatas com apenas uma cópia do GBA (macaco-esquilo) e outro primata com duas cópias do GBA, ambas capazes de produzir a GCase (orangotango); adicionalmente, os três primatas que possuem um GBA e um GBAP são parentes próximos, conforme mostra a filogenia.
A ancestralidade comum explica esses dados.
- A duplicação do GBA ocorreu depois que a linhagem dos grandes símios (chimpanzés, gorilas, orangotangos e humanos) divergiu da linhagem do macaco-esquilo. Tendo em vista que os orangotangos têm duas cópias do gene GBA e que os demais grandes símios possuem um GBA e um GBAP, então o ancestral comum dos grandes símios possuía duas cópias do GBA.
- A deleção de 55 pares de bases ocorreu depois que a linhagem dos orangotangos se separou da linhagem que inclui chimpanzés, humanos e gorilas. Assim, um GBA e um GBAP estavam presentes no ancestral comum de humanos, chimpanzés e gorilas.
Eu espero que você tenha percebido que, em momento algum, a funcionalidade ou não-funcionalidade do GBAP precisou ser invocada para que um cenário de ancestralidade comum pudesse explicar o padrão observado. A propósito, o GBAP possui uma função. E como irei mostrar em outro post, esse pseudogene funcional depõe a favor da evolução. Criacionistas pirando em 3, 2, 1...
Obrigado por ler! Até a próxima!
Referências
Wafaei, J. R., & Choy, F. Y. M. (2005). Glucocerebrosidase recombinant allele: Molecular evolution of the glucocerebrosidase gene and pseudogene in primates. Blood Cells, Molecules, and Diseases, 35(2), 277–285.doi:10.1016/j.bcmd.2005.07.004
Fairbanks, D. J. (2009). Relics of Eden: the powerful evidence of evolution in human DNA. Prometheus Books.
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