quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Entenda a Teoria do Equilíbrio Pontuado




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Em 1972 Niles Eldredge e Stephen J. Gould [1] propuseram, baseando-se no modelo de especiação peripátrica proposto por Mayr [2][3] e no registro fóssil, que as taxas de mudança evolutiva se concentram (são mais elevadas) em pequenos períodos de tempo, e estão geralmente associadas a eventos de especiação.

Em resumo, normalmente as espécies sofrem poucas mudanças, isto é, vivem um longo período de estase. Esse é o equilíbrio. A maior parte da mudança evolutiva se concentra em intervalos de tempo relativamente curtos e está atrelada a eventos de especiação. Essa é a pontuação. Daí a escolha por “Equilíbrio Pontuado” (EP).  

O EP surgiu da necessidade de explicar a eventual ausência de formas transicionais entre espécies. Veja bem, entre espécies, não estamos falando aqui sobre categorias taxonômicas mais elevadas, ao contrário do que os criacionistas alegam (mais sobre isso abaixo). Segundo Eldredge e Gould, essa ausência não se deve simplesmente a uma imperfeição do registro fóssil.

Na verdade, eles argumentam, a ausência é real. E ela se deve ao fato de que o intervalo de tempo no qual se desenrola a maior parte da mudança evolutiva é muito curto e, além disso, frequentemente envolve pequenas subpopulações. Ou seja, além do curto intervalo de tempo, o número populacional de indivíduos é baixo, tudo isso contribuindo para explicar a ausência das formas transicionais.

Um exemplo hipotético pode ajudar a entender melhor [4].

Imagine uma população de moluscos vivendo em um determinado ambiente, relativamente estável (Fig. 1). Eles vivem suas vidas, morrendo e deixando fósseis ao longo do tempo, mudando muito pouco, quase nada. Ou seja, estão em estase.


Figura 1. Estase. 


Agora, imagine que ocorre uma queda no nível do mar, e uma pequena população desses moluscos se vê isolada em um lago (Fig. 2).


Figura 2. Isolamento.


Nesse novo ambiente, pode atuar uma forte pressão seletiva, induzindo mudança evolutiva em taxas maiores, ou seja, mais mudança por intervalo de tempo nessa população isolada. Além disso, como a população é pequena, a Deriva Genética é poderosa, e implica em mudança evolutiva não-adaptativa em maiores taxas também (Fig. 3). Enquanto isso, a grande população que permaneceu em seu ambiente, segue mais ou menos em estase. Ou seja, temos duas linhagens divergindo. Essa população isolada pode mudar tanto ao ponto de adquirir o status de nova espécie.


Figura 3. Rápida evolução na população isolada. Estase na grande população ancestral. 



Devido ao isolamento, o pequeno número populacional e as taxas mais altas de mudança evolutiva, as formas transicionais não são preservadas (Fig. 4).


Figura 4. Ausência de preservação das formas transicionais. 


Imagine que o nível do mar volta a subir e a população antes isolada consegue atingir uma ampla distribuição, sendo, inclusive, reintroduzida na localidade de onde havia se separado (Fig. 5).


Figura 5. Reintrodução.


A nova espécie se expande, tanto espacialmente quanto em número populacional. Isso implica em taxas cada vez mais lentas, atingindo novamente a estase. Pode até acontecer de a nova espécie conseguir suplantar a espécie ancestral, dirigindo esta à extinção (Fig. 6).


Figura 6. População ancestral extinta por competição. 



Devido à ampla distribuição e grandes números populacionais, essa nova espécie, que agora se encontra em estase, pode deixar numerosos fósseis (Fig. 7).


Figura 7. Estase, mais uma vez.


Esse tipo de processo vai deixar uma assinatura bastante clara no registro fóssil (Fig. 8). Nos estratos mais antigos serão encontradas as formas ancestrais, sem muita mudança ao longo tempo. Então, quase que abruptamente, veremos a nova espécie aparecer no registro fóssil, sem que, no entanto, antes dela víssemos no registro fóssil uma forma de transição.


Figura 8. O padrão deixado no registro fóssil. Estase, rápida mudança com ausência de formas de transição no registro fóssil, e o retorno a estase. 


Esse padrão foi construído devido ao equilíbrio duradouro quebrado por eventuais pontuações. Essa é a Teoria do Equilíbrio Pontuado em sua essência.  

Finalizo esse post com esclarecimentos sobre o que o EP não é:

- O EP não é oposto ao gradualismo quando se entende que gradualismo tem a ver com a mudança na composição genéticas das populações de uma geração para a outra. O EP só é contra o gradualismo se por gradualismo entendermos que a mudança evolutiva é constante, lenta e uniforme. Para mais detalhes, consulte [5] e [6].  

- O EP também não implica que toda a mudança evolutiva deixa um padrão no registro fóssil consistente com o que essa teoria propõe. Em outras palavras, no registro fóssil vemos casos de EP e casos em que o EP não é verificado.

- O EP não é um mecanismo. É uma teoria que explica padrões.

- O EP não representa uma negação ou afastamento dos mecanismos tipicamente Darwinianos. Gould e Eldredge ([7], p. 139) garantem:

“[O EP] não representa afastamento algum dos mecanismos Darwinianos”

- O EP é uma teoria sobre descontinuidade somente entre espécies, não sobre táxons mais elevados, como gêneros, famílias, etc. Gould e Eldredge ([7], p. 145) atestam:

“O EP é um modelo para tempos descontínuos de mudança em apenas um nível biológico: o processo de especiação e o desenvolvimento das espécies no tempo geológico”

- S. J. Gould [8] deixou muito claro que o EP não nega a existência de formas transicionais, como muitas vezes alegam os criacionistas. Nas palavras dele:

“Desde que nós propusemos o equilíbrio pontuado para explicar tendências, é de causar fúria ser citado de novo e de novo por criacionistas – se é por design ou estupidez, eu não sei – como admitindo que não existe formas transicionais no registro fóssil. As formas Transicionais estão geralmente ausentes ao nível de espécie, mas elas são abundantes entre grupos maiores.”


Referências

1 - GOULD, Niles Eldredge-Stephen Jay; ELDREDGE, Niles. Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism. Essential readings in evolutionary biology, p. 82-115, 1972.

2 - MAYR, Ernst et al. Animal species and evolution. Animal species and evolution., 1963.

3 - MAYR, E. (1971) Populations, species and evolution. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts.

4 - BERKLEY UNIVERSITY. Understanding Evolution: More On Punctuated Equilibrium. <https://evolution.berkeley.edu/evolibrary/article/side_0_0/punctuated_01>

5 - THEOBALD, D. Common misconceptions concerning the hypothesis of Punctuated Equilibrium. 2010. < https://theobald.brandeis.edu/pe.html>


6 - DAWKINS, Richard. O relojoeiro cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

7 - GOULD, Stephen Jay; ELDREDGE, Niles. Punctuated equilibria: the tempo and mode of evolution reconsidered. Paleobiology, v. 3, n. 2, p. 115-151, 1977.

8 - GOULD, S. J. Evolution as Fact and Theory “, in Hen’s Teeth and Horse’s Toes: Further Reflections in Natural History. 1983.


segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Dinossauros não-avianos no Paleoceno?

By Mark Garlick

Como é de comum conhecimento, os dinossauros não-avianos foram todos extintos há cerca de 66 milhões, marcando o fim da Era Mesozóica (Alvarez et al. 1980; Schulte et al. 2010; Renne et al. 2013). Mas será que foram todos mesmo? Será possível que uma ou poucas linhagens de dinossauros não-avianos tenham visto a luz do Paleogeno? 

Há quem acredite que sim. Alguns pesquisadores alegaram ter descobertos fósseis de dinossauros que sobreviveram ao fim do Cretáceo. Sloan et al. (1986) reportaram fósseis de dinossauros da formação Hell Creek  acima da borda muito característica que define o limite Cretáceo-Paleogeno ou K-Pg* (ver Schulte et al. 2010). Em artigo publicado na Science, eles disseram: 

Nossas coleções recentes (Tabela 1) sugerem que a extinção final local ocorreu cerca de 40.000 anos após o impacto do asteróide postulado com base em um canal de arenito com topo 1,3 m acima do carvão Z mais baixo, o limite local do Cretáceo / Terciário (K / T) . Este canal contém dentes não trabalhados de mamíferos Mantuanos**, sete espécies de dinossauros e pólen do Paleoceno.

*K-Pg é a versão atualizada de K/T. 
** Mantuano é uma terminologia proposta (mas aparentemente não aceita, até onde pude checar) de uma idade na escala de tempo usada para caracterizar faunas de mamíferos terrestres da América do Norte, conhecida como NALMA. Em termos de escala geológica geral, o Mantuano é uma parte do Daniano, a primeira idade da época Paleocena do período Paleógeno. 

Em 2001, Fassett et al. apresentaram suposta evidência para a presença de dinossauros não-avianos do paleoceno, encontrados em depósitos da Formação Ojo Alamo (Bacia de San Juan, New Mexico, EUA). Para ser mais preciso, os pesquisadores argumentaram que um fêmur de hadrossauro encontrado acima de estratos contendo pólen característico do paleogeno só pode ter vivido após a extinção dos demais dinossauros não-avianos (Fig. 1). Em suas palavras:


Após a escavação do fêmur de hadrossauro do sítio San Juan River, uma camada xisto carbonáceo foi descoberta cerca de 160 m a oeste da localidade do osso do dinossauro e 3 m estratigraficamente abaixo do nível a partir do qual o osso foi escavado. Amostras deste leito de carvão foram coletados e analisados ​​para obter seu conteúdo de pólen e esporos e se descobriu que contém um conjunto diversificada, incluindo Momipites tenuipolis, indicando uma idade do paleoceno para essas rochas.

Figura 1. Coluna estratigráfica composta da parte inferior dos arenitos de Ojo Alamo, San Juan River. Créditos: Fassett et al. 2001. 


Fassett, Heaman & Simonetti (2011) alegaram ter datado diretamente dois ossos de dinossauros, um encontrado abaixo do limite K-Pg, e o outro acima. Os resultados, segundo os autores, foram os seguintes: 

Fósseis de vertebrados são importantes para a datação relativa de rochas terrestres há décadas, mas a datação direta desses fósseis até agora não teve êxito. Neste estudo, empregamos recentes avanços nas técnicas de datação de ablação a laser U-Pb  in situ   para datar diretamente dois fósseis de dinossauros da Bacia de San Juan, no noroeste do Novo México e no sudoeste do Colorado, Estados Unidos. Um osso de dinossauro cretáceo coletado logo abaixo da interface Cretáceo-Paleogeno produziu uma data U-Pb de 73,6 ± 0,9 Ma, em excelente concordância com uma data 40Ar / 39Ar previamente determinada de 73,04 ± 0,25 Ma para um leito de cinzas próximo a este local. A segunda amostra de osso de dinossauro dos estratos do Paleoceno logo acima da interface Cretáceo-Paleogeno produziu uma data Paleoceno U-Pb de 64,8 ± 0,9 Ma, consistente com dados biocronológicos palinológicos, paleomagnéticos e mamíferos fósseis. Essa primeira datação direta bem-sucedida de osso fóssil de vertebrado fornece uma nova metodologia com o potencial de obter diretamente datas precisas para qualquer fóssil de vertebrado.

Estes resultados, que implicam a presença de dinossauros no Paleógeno, não são geralmente aceitos. Sullivan (2003), bem como muitos outros pesquisadores, argumentou que os fósseis de dinossauros encontrados em estratos paleogênicos são, na verdade, do Cretáceo, tendo sido transportados para estratos do Paleogeno. 

Quanto ao estudo de Fasset, Heaman & Simonetti (2011), Koenig et al. (2012) questionaram as conclusões. A maioria dos ossos fossilizados sofrem um processo de recristalização, no qual o mineral original é substituído por outro mineral quimicamente similar. E o intervalo de tempo para que ocorra recristalização varia bastante, de centenas a milhões de anos. Koenig et al. argumentam que Fassett et al. não fornecem evidência geoquímica que indique que o processo de recristalização do osso que eles analisaram tenha ocorrido relativamente rápido após a morte do organismo. Além disso, a datação ainda sofre de tratamento estatístico não muito bem aplicado, e parece não ter levado em conta a possibilidade de alteração do material original. Em conjunto, essas objeções lançam grande dúvida sobre a idade obtida.  Koenig et al. concluem:

Dada a importância de determinações precisas e acuradas de idade para atribuir uma idade paleocena aos ossos de dinossauros, defendemos que deveria haver validação mais rigorosa dos métodos de datação e verificação idades de amostras adicionais além daquelas apresentadas por Fassett et al. Essas fraquezas, combinadas com a grande incerteza da duração da recristalização dos ossos em questão e o contraditório posicionamento bioestratigráfico e magnetostratigráfico do limite K / T na Bacia San Juan, fornece dúvidas suficientes para rejeitar os resultados e interpretações de Fassett et al. Concluímos que Fassett et al. falharam em fornecer as evidências extraordinárias necessárias para apoiar a alegação extraordinária de que dinossauros sobreviveram ao evento de impacto K / T e viveram no Paleoceno. 

Fassett et al. (2012) responderam Koenig et al. (2011), devo dizer. Mas não vou tratar aqui da réplica. Sugiro consultar as referências.
Conforme o meu entendimento, não é impossível que algumas poucas linhagens de dinossauros não-avianos tenha sobrevivido e vivido no começo do Paleogeno. Contudo, a evidência atual para a presença desses dinossauros no paleoceno não é tão forte como deveria para sustentar tal alegação (alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias, como diria Carl Sagan). Esperemos desdobramentos futuros.

Essa hipótese dos dinossauros do começo do Paleogeno é conhecida como "Paleocene Dinosaurs" (Dinossauros do Paleoceno). Sinceramente? Eu prefiro "The Paleocene Lost World Hypothesis" (A Hipótese do Mundo Perdido do Paleoceno). Você não?

Referências

ALVAREZ, Luis W. et al. Extraterrestrial cause for the Cretaceous-Tertiary extinction. Science, v. 208, n. 4448, p. 1095-1108, 1980.

SCHULTE, Peter et al. The Chicxulub asteroid impact and mass extinction at the Cretaceous-Paleogene boundary.science, v. 327, n. 5970, p. 1214-1218, 2010.

RENNE, Paul R. et al. Time scales of critical events around the Cretaceous-Paleogene boundary. Science, v. 339, n. 6120, p. 684-687, 2013.

SLOAN, Robert E. et al. Gradual dinosaur extinction and simultaneous ungulate radiation in the Hell Creek Formation.Science, v. 232, n. 4750, p. 629-633, 1986.

FASSETT, J. E. et al. Compelling New Evidence for Paleocene Dinosaurs in the Ojo Alamo Sandstone San Juan Basin, New Mexico and Colorado, USA. In: Catastrophic Events and Mass Extinctions: Impacts and Beyond. 2001.

FASSETT, James E.; HEAMAN, Larry M.; SIMONETTI, Antonio. Direct U-Pb dating of Cretaceous and Paleocene dinosaur bones, San Juan Basin, New Mexico. Geology, v. 39, n. 2, p. 159-162, 2011.

SULLIVAN, Robert M.; LUCAS, S. G.; BRAMAN, D. No Paleocene dinosaurs in the San Juan Basin, New Mexico. In:Geological Society of America Abstracts with Programs. 2003. p. 15.

KOENIG, Alan E. et al. Direct U-Pb dating of Cretaceous and Paleocene dinosaur bones, San Juan Basin, New Mexico: Comment. Geology, v. 40, n. 4, p. e262-e262, 2012.

Fassett, J. E., Heaman, L. M., & Simonetti, A. (2012). Direct U-Pb dating of Cretaceous and Paleocene dinosaur bones, San Juan Basin, New Mexico: REPLY. Geology, 40(4), e263–e264. doi:10.1130/g32758y.1 




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