domingo, 3 de maio de 2020

Arcossauromorfos – Mortos, mas não esquecidos – Capítulo I


Capítulo I – Introdução

Olá, seja bem-vindo ao canal blog/canal Coelho Pré-Cambriano! Hoje estamos iniciando uma nova minissérie: Arcossauromorfos  – Mortos, mas não esquecidos. 

Antes de começar, eu gostaria de comunicar que eu criei uma conta no PicPay e, se você quiser, pode me dar alguma ajuda financeira pra incentivar o meu trabalho de divulgação científica aqui no canal. É só procurar @coelhopreoficial no app do PicPay e fazer a sua doação, se assim desejar. Desde já, agradeço muitíssimo!   

Os repteis viventes pertencem a um grande clado, chamado Diapsida, que pode ser dividido basicamente em três linhagens. Uma delas é chamada de Lepidosauria e inclui o tuatuara e os lagartos (serpentes são lagartos, por sinal). Dizemos, portanto, que um lagarto é um lepidossauro. Outra linhagem é chamada de Testudines/Testudinata/Chelonia e inclui tartarugas, cágados e jabutis. Dizemos que estes animais são testudines ou quelônios.


Figura 1. Filogenia simplificada das linhagens de répteis viventes. Adaptado de Crawford et al., 2014.

Por fim, temos Archosauria, que inclui aves e crocodilianos. Aves e crocodilianos são répteis arcossauros. Sim, aves são répteis – tem vídeo no canal explicando isso.  Arcossauros extintos muito famosos são os dinossauros não-avianos e os majestosos pterossauros. Considerando apenas as linhagens viventes, os dados moleculares, genéticos, indicam que os testudines são parentes mais próximos dos arcossauros do que dos lepidossauros. O grupo formado por Testudines + Archosauria é conhecido como Archelosauria.

Essas são as grandes linhagens de répteis viventes. Agora vamos voltar nossa atenção para Archosauria.

Archosauria é um grupo dentro de outro grupo mais inclusivo chamado Archosauriformes. O grupo ainda mais amplo que inclui os arcossauriformes e todos os répteis que são mais aparentados a eles do que aos lepidossauros é chamado de Archosauromorpha. Os membros viventes dessa linhagem são os arcossauros. Nessa série a gente não vai tratar dos arcossauros, mas apenas dos arcossauromorfos extintos.


Figura 2. Filogenia simplifica dos arcossauriformes. Adaptado de Nesbitt, 2011.






Figura 3. Filogenia simplificada dos arcossauromorfos. Adaptado de Ezcurra, 2016.

Os fósseis mais antigos de arcossauromorfos são poucos e conhecidos de estratos do Permiano Médio, como é o caso de um espécime muito fragmentário encontrado no Brasil, e do Permiano Superior da Europa e da África: Protorosaurus speneri (Alemanha [possibilidade de Permiano Médio] e Inglaterra), Archosaurus rossicus e Eorasaurus olsoni (Rússia), e Aenigmastropheus parringtoni (Tanzânia). Após a grande extinção Permo-Triássica, que marca o fim da Era Paleozoica, os arcossauromorfos tornaram-se abundantes e muito diversos, tanto em número de espécies quanto em termos eco(morfo)lógicos. 

Por volta do Triássico Médio haviam emergido arcossauromorfos herbívoros bem especializados, predadores pequenos similares a lagartos, grandes predadores de topo terrestres, bem como bizarros predadores marinhos de pescoço alongado.

Os “primeiros” arcossauromorfos e os primeiros arcossauriformes foram importantes jogadores, digamos assim, na trama ecológica antes da grande irradiação dos arcossauros no Triássico Superior. Nenhuma das mais antigas linhagens de arcossauromorfos e arcossauriformes (com duas possíveis exceções) sobreviveu até o Jurássico, infelizmente. As exceções seriam os Testudines e os Choristodera, mas não há consenso sobre se são ou não arcossauromorfos.

Ok, aqui cabe um explicação sobre os testudines. No começo eu afirmei que "o grupo formado por Testudines + Archosauria é conhecido como Archelosauria". Depois eu disse que "o grupo ainda mais amplo que inclui os arcossauriformes e todos os répteis que são mais aparentados a eles do que aos lepidossauros é chamado de Archosauromorpha". Acontece que se os testudines são parentes mais próximos dos arcossauros do que dos lepidossauros, então eles também deveriam ser chamados de arcossauromorfos. 

Pois bem. 

Testudines é o grupo que inclui tartarugas, cágados e jabutis. É, na verdade, um sub-grupo de Testudinata, um clado mais inclusivo, que abrange todas as formas que possuem um casco com carapaça (dorsal) e plastrão (ventral). Testudinata, por sua vez, faz parte de um grupo ainda mais inclusivo chamado Pantestudines, que pode ser definido como o grupo que inclui os testudines e todos os répteis mais próximos a eles do que a outros répteis. Há muita discussão, inclusive, sobre o seu conteúdo e exatamente onde Pantestudines se encaixa na filogenia dos répteis. 

Uns argumentam que Pantestudines inclui uma série de répteis marinhos e está mais relacionado com os arcossauriformes do que com os lepidossauros. Se esse for o caso, então Archosauromorpha e Archelosauria são sinônimos (Fig. 4).  Por outro lado, outros argumentam que Pantestudines inclui uma série de répteis marinhos e está mais relacionado aos lepidossauros do que aos arcossauriformes e, assim, Archelosauria se torna sinônimo de Sauria (Fig. 5), o nome que geralmente é dado ao grupão que inclui Archosauromorpha e Lepidosauromorpha. 




Figura 4. Arcosauromorpha = Archelosauria. Adaptado de Lee, 2013. 


Deixo como nota aqui que Sauria não é sinônimo de Diapsida. Na verdade Diapsida é um clado muito grande, mas que teve muitos de seus membros eliminados pela extinção. Só sobreviveram os saurios.  



Figura 5. Archelosauria = Sauria. Adaptado de Schoch & Sues, 2015.  


Mas não para por aí. Existe outra possibilidade. Outros  sugerem que, na verdade, arcossauromorfos e lepidossauromorfos formam um clado, que por sua vez está relacionado a um grande clado que incluiria ictiossauros, plesiossauros e mais uma gama de outros répteis marinhos. E Testudinata, onde se encaixaria? Bem, seria uma linhagem separadas dessas mencionadas (Fig. 6).



Figura 6. Hipótese alternativa. Adaptado de Neenan et al., 2013.  

                
Ótimo, vamos ao parágrafo final. 

Nessa minissérie nós vislumbraremos, ainda que superficialmente, a diversidade, distribuição, filogenia, ecologia e macroevolução dessas antigas linhagens de arcossauromorfos e arcossauriformes. Mas antes disso aprenderemos como reconhecer fósseis de arcossauromorfos e arcossauriformes. Já no próximo capítulo. Até lá!

Saiba mais:

Essa minissérie é baseada majoritariamente em “Early Archosauromorphs: The Crocodile and Dinosaur Precursors”, por Ezcurra et al., 2020.

Outra referência que irei usar é “Sobreviventes: diversificação de Archosauromorpha após a Extinção Permo-Triássica”, por De-Oliveira et al. 2020.

Referências

Revisões sobre os arcossauromorfos:

Ezcurra, Martin & Jones, Andrew & Gentil, Adriel & Butler, Richard. (2020). Early Archosauromorphs: The Crocodile and Dinosaur Precursors. 10.1016/B978-0-12-409548-9.12439-X.

DE-OLIVEIRA, Tiane Macedo; PINHEIRO, Felipe; KERBER, Leonardo. Sobreviventes: diversificação de Archosauromorpha após a Extinção Permo-Triássica. Terrae Didatica, v. 16, p. e020009-e020009, 2020.

Sobre as relações filogenéticas dos testudines:

JOYCE, Walter G.; PARHAM, James F.; GAUTHIER, Jacques Armand. Developing a protocol for the conversion of rank-based taxon names to phylogenetically defined clade names, as exemplified by turtles. Journal of Paleontology, v. 78, n. 5, p. 989-1013, 2004.

FIELD, Daniel J. et al. Toward consilience in reptile phylogeny: miRNAs support an archosaur, not lepidosaur, affinity for turtles. Evolution & development, v. 16, n. 4, p. 189-196, 2014.

CRAWFORD, Nicholas G. et al. A phylogenomic analysis of turtles. Molecular phylogenetics and evolution, v. 83, p. 250-257, 2015.

LEE, M. S. Y. Turtle origins: insights from phylogenetic retrofitting and molecular scaffolds. Journal of Evolutionary Biology, v. 26, n. 12, p. 2729-2738, 2013.

SCHOCH, Rainer R.; SUES, Hans-Dieter. A Middle Triassic stem-turtle and the evolution of the turtle body plan. Nature, v. 523, n. 7562, p. 584-587, 2015. 

NEENAN, James M.; KLEIN, Nicole; SCHEYER, Torsten M. European origin of placodont marine reptiles and the evolution of crushing dentition in Placodontia. Nature Communications, v. 4, n. 1, p. 1-8, 2013.

Sobre a evolução do grupo Lepidosauromorpha + Archosauromorpha:

EZCURRA, Martin D.; SCHEYER, Torsten M.; BUTLER, Richard J. The origin and early evolution of Sauria: reassessing the Permian saurian fossil record and the timing of the crocodile-lizard divergence. PLoS One, v. 9, n. 2, 2014.

Sobre o mais antigo arcossauromorfo da América do Sul:

MARTINELLI, Agustín G. et al. The oldest archosauromorph from South America: postcranial remains from the Guadalupian (mid-Permian) Rio do Rasto Formation (Paraná basin), southern Brazil. Historical Biology, v. 29, n. 1, p. 76-84, 2017.


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