segunda-feira, 29 de junho de 2020

A Origem da Vida: Sopa primordial e o mundo de RNA (Parte 2)



Capa. Imagem composta a partir das originais aqui e aqui.

Autor: Gabriel Bueno

No primeiro texto dessa série falamos um pouco sobre a definição de vida que adotaremos aqui. Um texto de certa forma bastante filosófico, que eu recomendo bastante que vocês leiam. Pra isso é só clicar AQUI, que você será redirecionado pra lá.

No texto de hoje pretendo apresentar a mais clássica das hipóteses que surgiram desde o início do século passado para a origem da vida: a hipótese heterotrófica. Essa não vai ser a visão que adotaremos nesta série, mas é importante citá-la, já que é uma possibilidade, embora tenha seus problemas e lacunas.


VAI UMA SOPA AÍ?

Desde que a geração espontânea morreu, em meados do século XIX, a discussão sobre a origem dos primeiros seres vivos permaneceu de certa forma em repouso, até que na década de 1920 o bioquímico Alexander Oparin (em 1924) e o geneticista J.B.S. Haldane (em 1929) propuseram independentemente o que ficaria conhecida como "hipótese da sopa primordial (1)(2).

Basicamente essa hipótese parte das seguintes premissas:

1- A atmosfera primitiva da terra era redutora com uma composição majoritariamente de metano, vapor de água e amônia (segundo Oparin). Haldane também acrescenta CO2 nesta lista.

2- Haviam fontes de energia abundantes, como temperaturas mais elevadas (de fontes variadas) e descargas elétricas.

Com isso, a hipótese conclui que dado esse contexto, seria quimicamente possível que a  formação de monômeros importantes pra vida, como aminoácidos e nucleotídeos, acontecesse na Terra primitiva. Com o tempo, esses compostos se acumulariam em uma sopa quente de monômeros que reagiriam entre si formando proteínas, DNA, carboidratos mais complexos e, por fim, vida! Esses seres vivos primordiais foram batizados por Oparin de "Coacervados", células bastante primitivas a partir das quais a vida evoluiu e aumentou de complexidade.

Observação histórica interessante: ainda que não tenha se debruçado extensamente sobre o tema, Charles Darwin sugeriu, em carta a Joseph Hooker, algo semelhante à ideia da sopa primordial ("poderíamos conceber em um pequeno lago quente com todo tipo de amônia e sais fosfóricos - luz, calor, eletricidade presente"). (3)


O EXPERIMENTO DE MILLER E UREY

Para a hipótese de Oparin e Haldane sobravam aspectos teóricos, mas faltava uma base experimental que demonstrasse que a transição de mundo estritamente químico para um mundo bioquímico era possível. Foi só em 1952 que Stanley Miller e Harold Urey desenharam um experimento que colocaria em prática as condições teorizadas por Oparin e Haldane (4).

A ideia era simples: emular a dinâmica da Terra primitiva, com seus componentes químicos e uma fonte de energia viável (descargas elétricas, neste caso) e observar quais reações químicas seriam possíveis e quais os produtos dessas reações.

FIGURA 1. Experimento de Urey-Miller. Disponível aqui.


Após o experimento, foram observados alguns compostos bioquímicos extremamente relevantes, dentre eles 5 aminoácidos, dos quais 3 são proteinogênicos (participam da formação de proteínas). Essa foi uma descoberta bastante promissora na época, embora ainda faltassem uma série de compostos bioquímicos à serem sintetizados experimentalmente.

Infelizmente o experimento de Miller já não pode ser considerado uma boa evidência para suportar a teoria heterotrófica. Descobertas recentes sobre a atmosfera terrestre, baseadas em cristais de zircão e rochas primitivas, apontam que ela não era redutora (e sim relativamente neutra) e nem possuía os compostos que supunha a hipótese de Oparin e Haldane - sendo formada majoritariamente de gás nitrogenio (N2), vapor de água e gás carbônico - o que inviabiliza a utilização desse experimento como evidência (5).


MUNDO DE RNA E O REPLICADOR PRIMORDIAL

Com exceção dos retrovírus (como o HIV), todos os organismos vivos hoje armazenam sua informação genética na molécula de DNA. Além dela existe ainda uma molécula mais simples, chamada de RNA. De modo grosseiro e simplificado, podemos dizer que o RNA é uma molécula acessória que leva as mensagens codificadas no DNA para a formação de proteínas, que vão ser as moléculas efetoras no metabolismo celular.

Por uma questão de simplicidade, teóricos da origem da vida acreditam que o RNA teria se formado primeiro, enquanto o DNA seria um advento mais recente da evolução química. Além da simplicidade, a molécula de RNA é bastante versátil podendo desempenhar, além da função de armazenamento, função de catalisador de reações (as chamadas ribozimas) e a capacidade de autorreplicação. Uma molécula "faz-tudo" como essa seria certamente é um bom palpite para dar o pontapé na origem da bioquímica complexa.

A ideia de que os primeiros replicadores fossem moléculas de RNA deu origem ao que chamamos de hipótese do "mundo de RNA", termo cunhado em 1986 pelo físico e bioquímico Walter Gilbert (6). O mundo de RNA seria um passo intermediário entre a sopa primordial e a vida propriamente dita.

Segundo esta hipótese, na sopa primordial poderiam se formar espontaneamente bases nitrogenadas (você sabe: Adenina, Citosina, Timina, Guanina e Uracila); além de açúcares (como a ribose) que, juntamente com fosfato, poderiam se reunir em nucleotídeos. Por fim, os nucleotídeos (A, C, G e U, no caso) poderiam se agregar formando moléculas de RNA. Em um mundo de RNAs, há uma competição intensa entre os replicadores, fazendo com que haja uma seleção no nível bioquímico daqueles mais eficientes, levando a um aumento da complexidade das moléculas e de sua aptidão.



PROBLEMAS DO MUNDO DE RNA

Logo que a ideia de um mundo de RNA surgiu, alguns problemas vieram a tona. Vale aqui citar três questões principais.

1- Não se conheciam rotas de formação de bases nitrogenadas de forma espontânea.

Essa questão já está relativamente bem encaminhada. Um trabalho de 2019 conseguiu criar bases nitrogenadas a partir de precursores inorgânicos em laboratório (7).


2- O RNA é uma molécula bastante instável. Diferente do DNA, a molécula de RNA se degrada relativamente rápido tanto dentro de células quanto no ambiente.

Para essa questão há algumas propostas de solução. Foi teorizado que a formação de um polímero mais estável, chamado PNA, serviria de alternativa anterior ao mundo dos replicadores atuais que conhecemos (8). Alguns autores também propuseram soluções como a capacidade de metilação dos RNAs, o que poderia aumentar sua estabilidade (9).


3- A meia-vida das bases nitrogenadas é bastante curta. Isso significa que a velocidade de degradação da molécula é elevada, o que dificultaria o acúmulo de bases na sopa primordial para que as moléculas de RNA se formassem.

Essa questão ainda permanece um problema, e acreditem, não é um problema qualquer. Essa dificuldade expõe parte do que, na minha visão, é a maior fraqueza da hipótese heterotrófica de origem da vida. Mas por hora, não entrarei nos detalhes desse problema, pra não alongar demais esse texto.


***

Só posso pedir que aguardem o nosso próximo episódio, onde vamos nos debruçar sobre essa questão com mais detalhe e apresentarei a vocês a hipótese autotrófica, que é a visão sobre a qual essa série estará apoiada.  Espero que tenham gostado e até o próximo texto, pessoal!


REFERÊNCIAS

1- Oparin, A. I. (1924). Proischogdenie zhizni. Moscovsky Robotchii, Moscow.

2- Haldane, J. B. (1929). Rationalist Annual. The origin of Life, 148.

3- Peretó, J., Bada, J. L., & Lazcano, A. (2009). Charles Darwin and the origin of life. Origins of life and evolution of biospheres39(5), 395-406.

4- Miller, S. L. (1953). A production of amino acids under possible primitive earth conditions. Science, 117(3046), 528-529.

5- Lane, N. (2015). The vital question: energy, evolution, and the origins of complex life. WW Norton & Company. Capítulos 2 e 3.

6- Cech, T. R. (2012). The RNA worlds in context. Cold Spring Harbor perspectives in biology, 4(7), a006742.

7- Becker, S., Feldmann, J., Wiedemann, S., Okamura, H., Schneider, C., Iwan, K., ... & Carell, T. (2019). Unified prebiotically plausible synthesis of pyrimidine and purine RNA ribonucleotides. Science, 366(6461), 76-82.

8- Nelson, K. E., Levy, M., & Miller, S. L. (2000). Peptide nucleic acids rather than RNA may have been the first genetic molecule. Proceedings of the National Academy of Sciences, 97(8), 3868-3871.

9- Rana, A. K., & Ankri, S. (2016). Reviving the RNA world: an insight into the appearance of RNA methyltransferases. Frontiers in genetics, 7, 99.

domingo, 21 de junho de 2020

A Origem da Vida: Afinal, o que é vida? (Parte 1)



Capa. Nick Lane em apresentação na Royal Institution. 

Autor: Gabriel Bueno

Antes de começar a ler esse texto, vai aqui um aviso: escrevi uma breve introdução, explicando minha escolha de fonte para essa nova série, que será um pouco diferente das demais que escrevi aqui no blog. Vou deixar o link para esse pequeno comentário AQUI, caso você queira dar uma olhada. Mas isso não é, de forma alguma, um requisito para entender o texto de hoje. Dito isso, vamos ao que interessa.


O PROBLEMA DO CONCEITO DE VIDA

Antes de começar o texto quero deixar claro que eu definitivamente não pretendo entrar a fundo nas discussões sobre as várias propostas que visam definir o que é vida. Mesmo que isso possa parecer incoerente e até mesmo irônico - uma vez que é exatamente sobre isso que se trata essa série - esse será um atalho que, acreditem, é melhor tomarmos. A discussão sobre o que seria "vida" é extremamente extensa, tortuosa, ultra-filosófica e, para abordá-la, gastaríamos um post ou mais.

Além disso, ainda correríamos o risco de não chegar a uma conclusão palpável, uma vez que essa discussão está longe de ser fechada. Mas, para os curiosos de plantão, é claro que deixarei algumas referências sobre essa discussão, para aqueles quem quiserem se aprofundar um pouco(1)(2).

Ao invés de me extender em discussões intermináveis sobre o que é vida, no texto de hoje eu pretendo me voltar para uma definição específica que, apesar de não ser muito ortodoxa, trará ao leitor uma nova perspectiva sobre esse tema. Escolhi essa definição por alguns motivos:


1- É a minha visão particular sobre o conceito, a definição que eu acredito ser a mais elegante e coerente.

2- É a visão da qual o Nick Lane também compactua (3) e, obviamente, é bom estar afinado com o seu autor-base na hora de desenvolver os textos.

3 - É uma visão mais holística e integrativa da vida, pois se volta mais para a dinâmica da vida que para características do objetos vivos em si.

4- É uma visão muito menos rígida que as tradicionais, superando assim o fato de que linhas divisórias na natureza são um mero capricho dos seres humanos.


A VIDA COMO UMA DINÂMICA

As definições clássicas de vida podem ser vistas basicamente como um "checklist" de pré-requisitos que, caso determinada entidade siga a risca, ela será considerada viva. Frequentemente essas listas enumeram fatores como capacidade de auto-regulação, auto-replicação e diversos outros "autos". Há um problema inerente a essas definições baseadas em capacidades intrínsecas dos organismos: elas são, em ultima instância, ilusórias e dependem de uma escala arbitrária de independência dos seres.

Peguemos por exemplo um polvo. Nenhuma definição de vida que eu conheça excluiria um polvo de sua exclusiva lista. Porém, se analisarmos com detalhe, um polvo só é independente até a página 2. Se restringirmos o ambiente desse organismo, privando-o de alimento ou oxigênio, essa vida rapidamente irá definhar e passar a ser algo não vivo (o polvo morre, é claro). Definições focadas exclusivamente nas capacidades do organismo cria a necessidade de ignorarmos completamente que, para se sustentar, ela irá, por vezes, consumir de forma voraz outros organismos presentes no ambiente à sua volta, sem os quais eles acabarão por integrar o reino dos mortos.

Mesmo se partirmos para os vegetais, que não consomem outros organismos, ainda teremos uma absurda dependência do ambiente para manter seu status de "vivo". Retire o oxigênio, a luz e outros elementos cruciais do entorno e uma samambaia se reduz à matéria orgânica morta.

Observações como essa me levam à seguinte reflexão: mais relevante do que analisar o que está vivo, é olhar para o potencial de viver. Viver não se resume a possuir capacidade intrínseca de replicação ou a possibilidade de metabolizar substancias do ambiente, viver depende de como se interage, explora e convive com o ambiente a sua volta, independente de qual seja esse ambiente.

Um tardígrado que entra em criptobiose, se isolando completamente de seu ambiente, pode manter seu potencial de viver por meses a fio em condições extremas. Ninguém seria louco de negar que o tardígrado está vivo naquele momento de reclusão porque, caso as condições melhorem, ele retornará a sua fofinha forma ativa.

Se excluirmos a arbitrária escala estabelecida, veremos que os vírus podem muito bem ser comparados a tardígrados, dadas as devidas proporções. Os vírus permanecem inativos, assim como tardígrados em criptobiose, até que entrem em uma célula e lá dentro comecem a viver. Em um contexto intracelular, vírus são amplamente ativos, se replicando (e muito bem diga-se de passagem) nesse período em que exploram o rico ambiente celular em que estão inseridos.

Não há distinção energética óbvia entre consumir outros organismos (como o polvo faz), utilizar a radiação solar para produzir compostos orgânicos (como as plantas) e explorar o ambiente e a maquinaria celular para se reproduzir (como um vírus qualquer). Olhando por esse lado, não haveria motivo plausível o suficiente para excluir os vírus do clã dos vivos.

Colocando como vivos todas aquelas entidades que possam em algum momento (assim que seu ambiente seja favorável) viver, se replicando e explorando a energia disponível no seu entorno vemos que a natureza está muito além de um checklist arbitrário estabelecido por macacos pelados.

O limite entre vivo e não vivo não deve se basear em uma lista de pré-requisitos, esse limite é mais uma das zonas cinzas complexas da biologia. A transição entre os mundo vivo e o não vivo se apresenta em um delicado continuum que vai de príons, passando por vírus, bactérias, até as formas de vida mais "independentes", como plantas e animais. Assim como outras definições tão debatidas na biologia (e.g., o que é uma espécie?), a vida se dá em mais de 50 tons.

CONCLUSÃO

Goste o leitor ou não "en este blog vírus são considerados seres vivos", e a definição de vida explorada acima será a que levaremos adiante nesta série que começa hoje. Muito mais importante que cumprir requisitos para ser "vivo" é possuir a capacidade de viver, mesmo que em um contexto específico e temporalmente limitado.

Espero que tenham gostado do texto de hoje e que continuem acompanhando a nossa série daqui em diante. Até a próxima!

REFERÊNCIAS

1- Luisi, Pier Luigi. "About various definitions of life." Origins of Life and Evolution of the Biosphere 28.4-6 (1998): 613-622.

2- Ruiz-Mirazo, K., Peretó, J., & Moreno, A. (2004). A universal definition of life: autonomy and open-ended evolution. Origins of Life and Evolution of the Biosphere, 34(3), 323-346.

3- Lane, N. (2015). The vital question: energy, evolution, and the origins of complex life. WW Norton & Company. Capítulos 2 e 3.

A Origem da Vida: um parêntese (Parte 0)

Autor: Gabriel Bueno

Sim! Vamos finalmente falar sobre a origem da vida no nosso planeta. Mas antes de começar a nossa nova série eu preciso fazer algumas considerações, explicando como ela será e porque ela será diferente das outras.

Diferente das séries "Como Organizamos os Seres Vivos?" e "A Evolução dos Bichos", onde eu uso diferentes fontes pra construir os textos, nesta série eu utilizarei um livro como fonte principal, ainda que eu complemente com outras leituras em momentos oportunos. Minha base pra essa série será o livro The Vital Question (Questão Vital) escrito pelo professor e pesquisador do London College, Nick Lane.

Sim, eu sei que essa abordagem não é a ideal para a divulgação científica. Mas vou colocar aqui alguns dos motivos que me levaram a fazer essa escolha.

DOMÍNIO DO ASSUNTO

A origem da vida é um assunto que, apesar de residir no coração da biologia, têm seus alicerces fundamentados majoritariamente na bioquímica. É impossível falar sobre origem sem entrar em alguns detalhes do universo das moléculas que precederam o mundo vivo. Infelizmente, eu estou muito longe de ser alguém que está inserido nesse mundo.

Eu trabalho com evolução, zoologia (entomologia, mais precisamente) e sistemática filogenética. Apesar de ser curioso sobre quase tudo que envolve biologia, não me sentiria confortável em construir, sozinho, uma base teórica pra escrever sobre biologia molecular. Portanto, para tentar garantir a precisão do que eu escrevo para vocês, tomei a liberdade de limitar a literatura desta série ao livro do brilhante divulgador que é Nick Lane (e algumas poucas leituras extras).

TEMPO DE ESCRITA

Apesar de gostar muito de divulgação, eu tenho demorado bastante tempo para escrever. Por exemplo, o texto sobre a explosão do Cambriano demorou um ano para sair do papel. Isso porque até agora eu só escrevi sobre assuntos que estão próximos da minha área de preferência.
Imagine se fosse passar pelo mesmo processo padrão, trocando animais por moléculas? O texto só sairia em 2023 (e olhe lá).

UMA VISÃO LIMITADA?

Eu sei que uma série de um livro só pode passar a impressão de ser tendenciosa, isso pode até ser uma infeliz verdade, mas felizmente há um comentário de salvação à ser feito.

Qualquer escrita científica, mesmo que no meio acadêmico mais rigoroso (o que um blog definitivamente não é) haverá certo viés e predisposições mascaradas em algum nível. Nesse ponto, eu diria que o livro de Lane é muito mais honesto que a média. Em diversos momentos ele deixa explícitas quais passagens especulativas e, muitas vezes,  expõe outras visões que não à sua própria (alternativas que eu pretendo explorar, ao menos superficialmente).

CONCLUSÃO

Depois desse pequeno parêntese, peço que preparem-se pra uma longa viagem. Que irá aos confins mais distantes do espaço e do tempo no nosso planeta em busca de possíveis respostas para a grande pergunta: afinal, de onde veio a vida?

Para seguir a leitura é só clicar aqui e você será levado ao primeiro texto da série.

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...