domingo, 21 de junho de 2020

A Origem da Vida: Afinal, o que é vida? (Parte 1)



Capa. Nick Lane em apresentação na Royal Institution. 

Autor: Gabriel Bueno

Antes de começar a ler esse texto, vai aqui um aviso: escrevi uma breve introdução, explicando minha escolha de fonte para essa nova série, que será um pouco diferente das demais que escrevi aqui no blog. Vou deixar o link para esse pequeno comentário AQUI, caso você queira dar uma olhada. Mas isso não é, de forma alguma, um requisito para entender o texto de hoje. Dito isso, vamos ao que interessa.


O PROBLEMA DO CONCEITO DE VIDA

Antes de começar o texto quero deixar claro que eu definitivamente não pretendo entrar a fundo nas discussões sobre as várias propostas que visam definir o que é vida. Mesmo que isso possa parecer incoerente e até mesmo irônico - uma vez que é exatamente sobre isso que se trata essa série - esse será um atalho que, acreditem, é melhor tomarmos. A discussão sobre o que seria "vida" é extremamente extensa, tortuosa, ultra-filosófica e, para abordá-la, gastaríamos um post ou mais.

Além disso, ainda correríamos o risco de não chegar a uma conclusão palpável, uma vez que essa discussão está longe de ser fechada. Mas, para os curiosos de plantão, é claro que deixarei algumas referências sobre essa discussão, para aqueles quem quiserem se aprofundar um pouco(1)(2).

Ao invés de me extender em discussões intermináveis sobre o que é vida, no texto de hoje eu pretendo me voltar para uma definição específica que, apesar de não ser muito ortodoxa, trará ao leitor uma nova perspectiva sobre esse tema. Escolhi essa definição por alguns motivos:


1- É a minha visão particular sobre o conceito, a definição que eu acredito ser a mais elegante e coerente.

2- É a visão da qual o Nick Lane também compactua (3) e, obviamente, é bom estar afinado com o seu autor-base na hora de desenvolver os textos.

3 - É uma visão mais holística e integrativa da vida, pois se volta mais para a dinâmica da vida que para características do objetos vivos em si.

4- É uma visão muito menos rígida que as tradicionais, superando assim o fato de que linhas divisórias na natureza são um mero capricho dos seres humanos.


A VIDA COMO UMA DINÂMICA

As definições clássicas de vida podem ser vistas basicamente como um "checklist" de pré-requisitos que, caso determinada entidade siga a risca, ela será considerada viva. Frequentemente essas listas enumeram fatores como capacidade de auto-regulação, auto-replicação e diversos outros "autos". Há um problema inerente a essas definições baseadas em capacidades intrínsecas dos organismos: elas são, em ultima instância, ilusórias e dependem de uma escala arbitrária de independência dos seres.

Peguemos por exemplo um polvo. Nenhuma definição de vida que eu conheça excluiria um polvo de sua exclusiva lista. Porém, se analisarmos com detalhe, um polvo só é independente até a página 2. Se restringirmos o ambiente desse organismo, privando-o de alimento ou oxigênio, essa vida rapidamente irá definhar e passar a ser algo não vivo (o polvo morre, é claro). Definições focadas exclusivamente nas capacidades do organismo cria a necessidade de ignorarmos completamente que, para se sustentar, ela irá, por vezes, consumir de forma voraz outros organismos presentes no ambiente à sua volta, sem os quais eles acabarão por integrar o reino dos mortos.

Mesmo se partirmos para os vegetais, que não consomem outros organismos, ainda teremos uma absurda dependência do ambiente para manter seu status de "vivo". Retire o oxigênio, a luz e outros elementos cruciais do entorno e uma samambaia se reduz à matéria orgânica morta.

Observações como essa me levam à seguinte reflexão: mais relevante do que analisar o que está vivo, é olhar para o potencial de viver. Viver não se resume a possuir capacidade intrínseca de replicação ou a possibilidade de metabolizar substancias do ambiente, viver depende de como se interage, explora e convive com o ambiente a sua volta, independente de qual seja esse ambiente.

Um tardígrado que entra em criptobiose, se isolando completamente de seu ambiente, pode manter seu potencial de viver por meses a fio em condições extremas. Ninguém seria louco de negar que o tardígrado está vivo naquele momento de reclusão porque, caso as condições melhorem, ele retornará a sua fofinha forma ativa.

Se excluirmos a arbitrária escala estabelecida, veremos que os vírus podem muito bem ser comparados a tardígrados, dadas as devidas proporções. Os vírus permanecem inativos, assim como tardígrados em criptobiose, até que entrem em uma célula e lá dentro comecem a viver. Em um contexto intracelular, vírus são amplamente ativos, se replicando (e muito bem diga-se de passagem) nesse período em que exploram o rico ambiente celular em que estão inseridos.

Não há distinção energética óbvia entre consumir outros organismos (como o polvo faz), utilizar a radiação solar para produzir compostos orgânicos (como as plantas) e explorar o ambiente e a maquinaria celular para se reproduzir (como um vírus qualquer). Olhando por esse lado, não haveria motivo plausível o suficiente para excluir os vírus do clã dos vivos.

Colocando como vivos todas aquelas entidades que possam em algum momento (assim que seu ambiente seja favorável) viver, se replicando e explorando a energia disponível no seu entorno vemos que a natureza está muito além de um checklist arbitrário estabelecido por macacos pelados.

O limite entre vivo e não vivo não deve se basear em uma lista de pré-requisitos, esse limite é mais uma das zonas cinzas complexas da biologia. A transição entre os mundo vivo e o não vivo se apresenta em um delicado continuum que vai de príons, passando por vírus, bactérias, até as formas de vida mais "independentes", como plantas e animais. Assim como outras definições tão debatidas na biologia (e.g., o que é uma espécie?), a vida se dá em mais de 50 tons.

CONCLUSÃO

Goste o leitor ou não "en este blog vírus são considerados seres vivos", e a definição de vida explorada acima será a que levaremos adiante nesta série que começa hoje. Muito mais importante que cumprir requisitos para ser "vivo" é possuir a capacidade de viver, mesmo que em um contexto específico e temporalmente limitado.

Espero que tenham gostado do texto de hoje e que continuem acompanhando a nossa série daqui em diante. Até a próxima!

REFERÊNCIAS

1- Luisi, Pier Luigi. "About various definitions of life." Origins of Life and Evolution of the Biosphere 28.4-6 (1998): 613-622.

2- Ruiz-Mirazo, K., Peretó, J., & Moreno, A. (2004). A universal definition of life: autonomy and open-ended evolution. Origins of Life and Evolution of the Biosphere, 34(3), 323-346.

3- Lane, N. (2015). The vital question: energy, evolution, and the origins of complex life. WW Norton & Company. Capítulos 2 e 3.

4 comentários:

  1. Gabriel, que belo texto! Nunca tinha pensado no conceito de vida, ou melhor, de viver, desta maneira. Muito interessante, muito intrigante! Obrigada!!

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    1. Fico muito feliz que você tenha gostado! Muito obrigado pelo feedback, me inspira a continuar publicando por aqui!

      Espero que você continue acompanhando a série 😁

      OBS: suas aulas são inspiradoras!

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  2. Respostas
    1. Que bom que gostou! Espero que continue acompanhando nossa série 😉

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