terça-feira, 28 de julho de 2020

A Origem da Vida: Hipótese autotrófica (Parte 4)




Autor: Gabriel Bueno

O texto 3 da nossa série, que pode ser lido AQUI, terminou de certa forma com um balde de água fria. A hipótese heterotrófica está em sérios apuros, sofrendo com as altas exigências energéticas do universo das moléculas. Hoje, tentaremos desatar esse nó energético para podermos seguir adiante e chegar finalmente ao mundo vivo (ou algo que se pareça com ele).


UMA ORIGEM AUTOTRÓFICA?

Pode parecer difícil para o leitor acreditar que a primeira forma de energia biológica do planeta seja autotrófica. Quando ouvimos esse termo, somos diretamente levados a pensar em fotossíntese, que é um processo complexo (um dos mais complexos da biologia) que utiliza enzimas, organelas celulares, membranas, pigmentos e tudo com o que não podemos contar na origem da vida.

Mas é importante lembrar que há maneiras bastante simples de metabolismo autotrófico, que podem ser tão antigos quanto a própria vida. Diversas linhagens de bactérias e arqueas fazem quimiossíntese, processo em que se utiliza compostos inorgânicos do ambiente para gerar energia. Esse é o caso de bactérias que oxidam sulfeto (H2S) para gerar energia e para formar moléculas orgânicas a partir de carbono inorgânico (CO2).

A SOLUÇÃO PERFEITA

No ultimo texto mostramos que o principal ponto problemático da hipótese heterotrófica é a energia. Tanto para disponibilizar carbono para a sopa primordial, quanto para fazer as primeiras reações acontecerem, as fontes de energia naquele contexto eram altamente escassas. Além disso, a exigência energética cresce exponencialmente conforme a bioquímica passa a ficar mais complexa, pois os replicadores precisam de cada vez mais carbono e energia para se replicar.

A hipótese autotrófica reduz a dependência de fontes externas instáveis de energia (como os relâmpagos na sopa primordial) e passa grande parte da responsabilidade de geração de energia para o próprio sistema "protovivo". O papel do ambiente não é mais o de fornecer a energia para a origem do carbono orgânico e reações, ao invés disso ele pode fornecer condições físico-químicas favoráveis para que o próprio sistema "se vire".

Em resumo, com a hipótese autotrófica poderemos deixar de lado a fúria das fontes de energia agressivas (como radiação UV) e inconstantes (como as descargas elétricas) e nos apoiar em um fornecimento de compostos úteis, simples e abundantes na terra primitiva.

CONSEGUINDO OS INGREDIENTES

No texto passado enumeramos 5 ingredientes pra origem da vida: fluxo de carbono reativo, energia livre, catalizadores, uma maneira de compartimentalizar o sistema e uma forma de organizar a informação. Vamos ver de maneira simplificada como o sistema autotrófico lida com cada um desses fatores em comparação com a hipótese heterotrófica concorrente.

FLUXO DE CARBONO

Como vimos no texto passado, a hipótese heterotrófica tem sérias dificuldades em fornecer energia suficiente pra sustentar esse fluxo - e essa exigências cresce exponencialmente conforme a bioquímica avança em complexidade. No fim das contas ela acaba apelando pra soluções desesperadas e ineficazes.

Enquanto isso, no contexto autotrófico, dadas certas condições que discutiremos em um texto futuro, o próprio sistema pode utilizar diretamente o carbono inorgânico, abundante no ambiente, para gerar carbono orgânico.

ENERGIA LIVRE

Esse é um outro ponto crítico para a hipótese heterotrófica, pois o gasto energético para que replicadores se multipliquem de forma indiscriminada é brutal,como discorremos no texto passado.

Já para um sistema autotrófico, a energia para reações químicas vem da oxidação de compostos do meio, de modo que não é necessário a assimilação de outros sistemas ao redor ou um input energético externo. O que simplifica muito o problema.

CATALIZADORES

Essa é uma das exigências na qual a hipótese heterotrófica certamente está mais confortável. As ribozimas (moléculas de RNA com poder de catálise) fazem o papel de catalizador para as reações químicas. Ou seja, o próprio sistema possui poder de catálise resultando em um modelo simples e eficiente. Bom, na verdade também há um problema nesse raciocínio.

Certamente nenhum pesquisador do tema de origem da vida negaria a importância das ribozimas na evolução molecular. Elas certamente cumpriram esse papel central em algum momento entre as primeiras moléculas orgânicas e a vida de fato. Porém, temos que levar em consideração que as ribozimas já são moléculas bastante complexas de modo que depender apenas delas como catalizadoras gera um problema: o que catalizava reações antes delas? Quem catalizou as reações que levaram a formação das primeiras ribozimas?

Nesse ponto, só há uma resposta possível: catalizadores inorgânicos.

Já é um fato conhecido que diversos íons são essenciais para reações químicas inorgânicas e orgânicas. Na bioquímica moderna, muitas vezes eles se associam a enzimas, otimizando o poder de catálise destas. Na origem da vida, as reações poderiam ser catalizadas inicialmente por íons e, posteriormente, por uma associação entre pequenos peptídeos (que se formam por autocatálise) e esses metais. 

É claro que essa solução também pode ser uma saída para a hipótese heterotrófica, porém é importante ressaltar que as concentrações de metais na superfície dos mares é bastante baixa devido à sua densidade. Isso força uma uma restrição na gama de ambientes nos quais a origem da vida poderia ocorrer, caso ela tenha tido que utilizar esse tipo de catalizador.

COMPARTIMENTALIZAÇÃO

Dentre os nossos ingredientes, esse  certamente é o ingrediente mais simples. A compartimentalização emerge sem muitos desafios, desde que haja fluxo de carbono e energia. Os fosfolipídeos - moléculas que formam membranas celulares - têm um comportamento químico muito peculiar, que auxilia na formação de vesículas. Assim que se encontram em concentração viável, elas tendem espontaneamente a se agregar e formar pequenas "vesículas", como mostra a figura abaixo:

Esquema de formação espontâneo de micelas
Esquema de formação de micelas. Imagem disponível aqui.


Uma vez formadas, essas estruturas podem servir como mecanismo eficiente para isolar as moléculas orgânicas do meio externo, compartimentalizando a vida.

INFORMAÇÃO

A informação é o grande trunfo da hipótese heterotrófica. A molécula de RNA, componente central da teoria, terai essencialmente a função de armazenar informação (assim como ainda o faz, nas células modernas). Mas, assim como no caso das ribozimas, esse tipo de organização depende de um grau avançado de complexidade bioquímica e deve ter sido um passo intermediário na origem da vida e não seu cenário inicial.

Antes do advento do replicador primordial, a organização dos sistemas "protovivos" não emanava das modernas instruções advindas de biomoléculas como o RNA. Ela deveria ter vindo única e exclusivamente de propriedades físico-químicas da natureza, na forma de sistemas que o físico belga Ilya Prigogine batizou de "estruturas dissipativas".


AS ESTRUTURAS DISSIPATIVAS

Em todos os cantos do universo nos deparamos com estruturas com um grau de organização bastante complexo mas que não são organizadas por informações codificadas, mas sim fruto do comportamento da natureza. Pense em uma chaleira no fogo: enquanto a água é aquecida, há um movimento contínuo ocorrendo chamado "corrente de convecção". Esse movimento é causado apenas pelo comportamento físico da água e a diferença de temperatura nos diferentes pontos da chaleira. Uma vez cortado o suprimento de energia, a corrente para e o sistema volta ao equilíbrio.

O exemplo da chaleira pode parecer simples demais, mas o mesmo princípio que rege essa organização forma também estruturas mais complexas como os furacões, tornados, correntes marítimas e células de circulação do ar atmosférico (as famosas células de Hadley).

À esquerda, imagem do furacão Lane, vista da ISS. À direita, esquema mostrando as células de Hadley.
Ambas são estruturas dissipativas complexas. Imagens aqui e aqui,

Para termos uma estrutura dissipativa é necessário apenas um fluxo contínuo de matéria e energia que mantenha o sistema longe do equilíbrio. Sei que o papo pode ter ficado um pouco confuso nessa seção, mas a mensagem que preciso que você, leitor(a), entenda, é que um contexto que ofereça um fluxo contínuo de matéria e energia pode gerar uma organização estável - que se mantenha por tempo suficiente - gerando um ambiente favorável para que ocorra a evolução molecular e o início da vida.

OBS: Para aqueles que queiram saber mais sobre sistemas dissipativos e seus exemplos dentro da biologia, vou deixar nas referências um link para uma publicação da Philosophical Transactions of the Royal Society A .

CONCLUSÃO

Chegamos ao fim do texto de hoje com um cenário teórico bem delineado para a origem da vida. Em resumo:

1- A vida deve ter iniciado como um sistema longe do equilíbrio, onde um fluxo de matéria e energia contínuo o manteve estável a ponto de favorecer a formação das primeiras moléculas orgânicas.

2- Esse sistema era autotrófico e utilizava compostos inorgânicos do ambiente para extrair energia para reações e para suprir sua demanda por carbono reativo.

3- Íons presentes no ambiente foram utilizados como primeiros catalizadores de reações químicas e depois se associaram a pequenos peptídeos, aumentando seu poder de catálise.

4- Depois de algum tempo teremos a possibilidade de formação de vesículas polipeptídicas e, posteriormente, um aumento da complexidade molecular.

Todo esse passo a passo foi apresentado até o momento como um modelo teórico. Mas será que existe algum ambiente que cumpra as exigências desse modelo? Onde está o berço da vida na Terra? No próximo texto pretendo responder essas perguntas, mostrando como esse modelo é viável não apenas na teoria, mas também na prática.

Espero que tenham gostado do texto de hoje e espero vocês no próximo. Até lá!

REFERÊNCIAS

1- Nick Lane - The vital question. Capítulo 3.

2- Sobre estruturas dissipativas na biologia: 
https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rsta.2017.0376#d3e248


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