segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Criacionistas destruíram a importância do experimento de Lenski





(Essa post é o roteiro desse vídeo lá no Canal Coelho Pré-Cambriano)

No dia 4 de Fevereiro de 2014 aconteceu um debate no Creation Museum, Kentucky, entre Bill Nye (um engenheiro mecânico e divulgador cientifico, conhecido como Bill Nye The Science Guy) e Ken Ham, fundador da Answer in Genesis e bacharel em ciências aplicadas com ênfase em biologia ambiental. O tema do debate era o seguinte: A Criação é um modelo viável para as origens? O debate pode ser resumido como sendo o confronto entre um evolucionista e um criacionista da Terra Jovem.

O Debate foi rolando e num certo momento Ken Ham entrou no assunto do experimento de evolução em longo prazo com a bactéria E. coli, conduzido desde 1988 num laboratório da universidade de Michigan liderado por Richard Lenski.

Em resumo, lá em 1988, Richard Lenski pegou uma colônia de E. coli e usou ela como ancestral  de 12 linhagens quase idênticas, que crescem em um meio contendo glicose e citrato, mas que, num ambiente aeróbio, só usam glicose como fonte de alimento, não sendo capaz de usar citrato nesse meio. Desde então, estas 12 linhagens têm evoluído em laboratório separadamente. Isso bem resumido. Não quero entrar em detalhes aqui, pra não prolongar demais o post. Vou deixar link na descrição de um trecho do livro O Maior Espetáculo da Terra, onde Richard Dawkins explica o experimento detalhadamente, comentando inclusive os resultados disponíveis naquela época.

Acontece que, em uma dessas 12 linhagens, evoluiu a capacidade de crescer e triunfar utilizando citrato em condições aeróbias, algo que a cepa ancestral não era capaz de realizar. Descobriu-se que a evolução dessa capacidade se deu em três etapas: primeiro, ocorreram mutações que não tinham efeito nenhum sobre a capacidade de crescer utilizando  citrato, mas permitiram que, quanto outras mutações específicas ocorressem, o uso de citrato fosse minimamente eficiente. Então, essas primeiras mutações são como potencializadoras de mutações que vieram a ocorrer posteriormente.

A mutação que permitiu o uso de citrato envolveu a duplicação de um segmento de DNA contendo um gene que codifica uma proteína transportadora de citrato para dentro da célula. Em condições aeróbicas, normalmente um "interruptor genético" garante que esse gene fique desligado. Mas, devido ao modo como ocorreu a duplicação, outro "interruptor" fez com que esse gene fosse ligado, a proteína transportadora passou a ser produzida e a exercer sua função, que é a de importar citrato do meio externo para o interior da célula.

O terceiro passo foi o refinamento do uso de citrato. Mutações adicionais, essencialmente mais duplicações daquele segmento de DNA, aumentaram os níveis da proteína transportadora de citrato, resultando numa vantagem para as bactérias que possuíam essas mutações, pois mais citrato poderia ser incorporado e usado como fonte de energia.

Esse é um exemplo fantástico de evolução envolvendo várias mutações consecutivas, nem todas elas tendo um efeito adaptativo direto. Esse experimento, que segue sendo performado, mesmo depois de 30 anos, tem desdobramentos sobre a evolução da vida aqui na terra e no universo, mas isso é assunto para outro post. Vamos voltar ao debate. O que os criacionistas tem a dizer sobre o experimento de Lenski?

No debate, Ken Ham mostrou um vídeo de um microbiologista criacionista comentando o experimento de Lenski. Veja o que ele diz aqui.

A crítica dos criacionistas se resume, então, a dizer que “não houve evolução de informação genética nova”. Eu não vou nem entrar na questão do que seria exatamente informação genética. Mas vamos nos perguntar: essa crítica é válida?

Respondendo a esse tipo de crítica, Zachary Blount e Richard Lenski disseram o seguinte:

A alegação de que "nenhuma nova informação genética evoluiu" é baseada no fato de que as bactérias adquiriram essa nova habilidade reorganizando os elementos genéticos estruturais e regulatórios existentes. Mas é como dizer que um novo livro - digamos, A Origem das Espécies de Darwin, quando apareceu pela primeira vez em 1859 - não contém novas informações, porque o texto tem as mesmas letras e palavras antigas encontradas em outros livros.

Em um contexto evolutivo, um genoma codifica não apenas proteínas e padrões de expressão, mas informações sobre os ambientes em que os ancestrais de um organismo viveram e como sobreviver e se reproduzir nesses ambientes, tendo proteínas úteis, expressando-as em condições apropriadas (mas não em outras), e assim por diante. Portanto, quando a seleção natural - isto é, sobrevivência e reprodução diferenciais - favorece bactérias cujos genomas têm mutações que lhes permitem crescer com citrato, essas mutações certamente fornecem informações novas e úteis para as bactérias.

É assim que a evolução funciona - não é como se novos genes e funções aparecessem do nada. Como escreveu o geneticista bacteriano e laureado com o Nobel, François Jacob (Science, 1977): “A seleção natural não funciona como um engenheiro. Funciona como um latoeiro - um latoeiro que não sabe exatamente o que ele vai produzir, mas usa o que encontra ao seu redor, sejam pedaços de barbante, fragmentos de madeira ou papelão velho; em resumo, funciona como um latoeiro que usa tudo à sua disposição para produzir algum tipo de objeto viável”.

Dizer que não há novas informações genéticas quando uma nova função evolui (ou mesmo quando uma função existente melhora) é um red herring que é promulgado pelos oponentes da ciência evolutiva.

"Red herring" significa algo que induz a erro ou distrai o foco de uma questão relevante.

A evolução não tem que necessariamente que criar genes do nada para resolver toda e qualquer situação. Frequentemente, a evolução trabalha por meio da bricolagem, modificando o que já tem, ou tentando novas combinações, novos circuitos genéticos. Os criacionistas precisam entender isso. Muitos entendem, só não querem aceitar.

Para saber mais:

Descrição do experimento de Lenski:

DAWKINS, Richard. O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução. Companhia das Letras, 2009. Descrição e alguns resultados do experimento: https://drive.google.com/open?id=161oGKphcR3lT01nERFhKiV4pc6bLsZQ2

Sobre os resultados do experimento:

Blount, Z.D., Borland, C.Z. and Lenski, R.E. (2008) Historical contingency and the evolution of a key innovation in an experimental population of Escherichia coli. Proceedings of the National Academy of Sciences 105:7899-7906.

Blount, Z.D., Barrick, J.E., Davidson, C.J. and Lenski, R.E. (2012) Genomic analysis of a key innovation in an experimental Escherichia coli population. Nature 489:513-518.

QUANDT, Erik M. et al. Fine-tuning citrate synthase flux potentiates and refines metabolic innovation in the Lenski evolution experiment. Elife, v. 4, p. e09696, 2015.

Página oficial do experimento:

Resposta de Blount e Lenski a críticas feitas por alguns autores:

Larry Moran discute um pouco a crítica e a resposta aqui:



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