domingo, 15 de dezembro de 2019

Por que estamos sujeitos ao escorbuto?

Causada por uma deficiência crônica de Vitamina C, o escorbuto já preocupou muito mais do que hoje. Na época das grandes navegações, essa doença causou a morte de muitos e muitos marinheiros privados de uma alimentação balanceada. A história do escorbuto e sua relação com as navegações fornece um dos primeiros exemplos de um experimento com grupo controle, realizado por James Lind, que acabou concluindo que o escorbuto podia ser tratado com uma dieta rica em frutas cítricas [1]. 

A Vitamina C, ou ácido L-ascórbico, realiza uma série de funções no organismo [2]:

"[É] um nutriente essencial para humanos e está intimamente relacionada com a manutenção dos tecidos conjuntivos intercelulares, osteoides, dentina e colágeno. A Vitamina C tem importantes papéis como cofator, complemento enzimático, co-substrato, agente redutor e é um antioxidante em várias reações bioquímicas."

Ao contrário de nós, a maioria dos mamíferos consegue sintetizar seu próprio ácido L-ascórbico [3]. Como nós não conseguimos produzir a nossa Vitamina C, temos que ingeri-la sob a forma de alimento, geralmente frutas cítricas e alguns vegetais [2]. Se  não a ingerirmos por um longo tempo, estaremos sujeito ao escorbuto.  

Mas qual a razão de não conseguirmos sintetizar a Vitamina C?

O fato é que não conseguimos produzir a enzima L-Gulonolactona Oxidase, que catalisa uma das reações na via de síntese do ácido L-ascórbico. O gene que codifica esta enzima, presente na maioria dos mamíferos, possui 12 éxons. Nos humanos, o homólogo desse gene é um pseudogene unitário (para saber mais sobre os tipos de pseudogene e suas características, clique aqui), o pseudogene GULO ou pGULO, que apresenta apenas 5 dos 12 éxons totais. Não bastasse isso, o locus no qual se localiza o pGULO sofreu um bombardeio com retrotranspósons (sobre estes, clique aqui), e as partes ainda identificáveis foram carregadas com muitas mutações (inserções, deleções e códons de parada prematuros) [3][4]. É devido a toda essa bagunça que nós não expressamos a enzima GULO e, portanto, não somos capazes de sintetizar Vitamina C [5]. 

Assim como nos humanos, os outros símios possuem um pseudogene GULO. Ao que tudo indica, a mutação mais antiga, e que talvez foi a responsável por desativar o gene, deu origem um códon de parada prematuro compartilhado por todos os símios [6]:


"Inserções e deleções causadoras de frameshifts, mutações nonsense, e deleções genômicas são observadas na sequência GULO humana, indicando que um antigo pseudogene que tem experienciado numerosas mutações secundárias. A análise de mutações compartilhadas mostra que humanos, chimpanzés, macacos rhesus e saguis compartilham uma mutação nonsense [que transformou um códon codificante de um aminoácido em um códon de parada], enquanto o gálago, camundongo e o cão compartilha o códon TGG para triptofano . Portanto, a inativação do GULO ocorreu antes da separação entre macacos do Velho e do Novo Mundo (> 40 milhões de anos atrás)". 

Figura 1. Códon de parada prematuro no pseudogene GULO destacado em cinza. As letras brancas dentro das elipses cinza indicam os aminoácidos codificados. Image disponível em [3]. 


Assim como o pseudogene UOX (discutido aqui), o pseudogene GULO é o legado de um ancestral comum a humanos e outros símios. Darwin [7] certa vez escreveu que "o homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva". No genoma também, Darwin. 

No próximo post sobre essa assunto, trataremos da possível relação entre o surgimento do pseudogene GULO e a posterior fixação do pseudogene UOX. Até lá!


Referências 

1 - Wikipedia contributors. (2019, December 9). Scurvy. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 14:22, December 15, 2019, from https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Scurvy&oldid=929905459

2 - AGARWAL, Anil et al. Scurvy in pediatric age group–a disease often forgotten?. Journal of clinical orthopaedics and trauma, v. 6, n. 2, p. 101-107, 2015. 

3 - FINLAY, Graeme. Human Evolution: Genes, Genealogies and Phylogenies. Cambridge University Press, 2013.

4 - INAI, Yoko; OHTA, Yuriko; NISHIKIMI, Morimitsu. The Whole Structure of the Human Nonfunctional L-Gulono-γ-Lactone Oxidase Gene-the Gene Responsible for Scurvy-and the Evolution of Repetitive Sequences Thereon. Journal of nutritional science and vitaminology, v. 49, n. 5, p. 315-319, 2003.

5 - NISHIKIMI, Morimitsu; YAGI, Kunio. Molecular basis for the deficiency in humans of gulonolactone oxidase, a key enzyme for ascorbic acid biosynthesis. The American journal of clinical nutrition, v. 54, n. 6, p. 1203S-1208S, 1991.

6 - ZHU, Jingchun et al. Comparative genomics search for losses of long-established genes on the human lineage. PLoS computational biology, v. 3, n. 12, p. e247, 2007.

7 - Darwin, C. R. 1871. The descent of man, and selection in relation to sex. London: John Murray. Volume 2. 1st edition.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...