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ATENÇÃO: texto postado no dia 08 de abril de 2020.
Dadas as atuais circunstâncias, o brasileiro foi obrigado a aprender algumas palavras e termos estranhos que a comunidade científica usa: coronavírus, SARS, SARS-CoV-2, azitromicina, e principalmente cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina.
ATENÇÃO: texto postado no dia 08 de abril de 2020.
Dadas as atuais circunstâncias, o brasileiro foi obrigado a aprender algumas palavras e termos estranhos que a comunidade científica usa: coronavírus, SARS, SARS-CoV-2, azitromicina, e principalmente cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina.
Mas o que são essas
tais de cloroquina e hidroxicloroquina?
A cloroquina é uma
droga conhecida já há bastante tempo por ser usada no tratamento contra malária
e amebíase. Já a hidroxicloroquina, é um derivado da cloroquina que foi sintetizado
pela primeira vez em 1946. A hidroxicloroquina é 40% menos tóxica para os
animais do que a cloroquina, e além de seu uso na malária, é muito utilizada no
tratamento de doenças autoimunes, que são aquelas em que o sistema imunológico
se volta contra o próprio organismo.
(Daí a importância de
não sair comprando hidroxicloroquina de maneira descontrolada. Vai faltar para
as pessoas que realmente precisam. Não faça isso.)
Tá, mas como esses dois
nomes vieram fazer parte do vocabulário popular?
Evidentemente que foi
por causa da Pandemia de COVID-19 que estamos vivendo em 2020. Acontece que uma prática
bastante comum é testar drogas já conhecidas e avaliar se elas são
eficientes no tratamento de novas doenças. Dada a urgência de identificar
agentes antivirais efetivos na tratamento da COVID-19, até agora não
disponíveis, pesquisadores de todo o mundo começaram a testar drogas novas e
antigas.
Em um estudo publicado
na Cell Research, da Nature, no dia 04 de fevereiro de 2020, Wang et al. avaliaram os efeitos in vitro de 7 medicamentos sobre o novo coronavírus. A conclusão a que chegaram foi a
seguinte:
“Nossas descobertas
revelam que o remdesivir e a cloroquina são altamente efetivas, in vitro, no
contrale de infecção pelo 2019-nCoV [o antigo nome do SARS-CoV-2]”.
E os autores sugeriram que os
efeitos da cloroquina e do remdesivir deveriam ser “avaliados em pacientes humanos
sofrendo da doença do novo coronavírus”.
No dia 18 do mês seguinte, Liu et al., essencialmente o mesmo grupo de pesquisadores do estudo anterior, tiveram novo estudo publicado na Cell Discovery, também da Nature, intitulado
“Hidroxicloroquina, um derivado menos tóxico da cloroquina, é efetivo na
inibição de infecção por SARS-CoV-2 in vitro”.
E a decisão dos
pesquisadores em avaliar a hidroxicloroquina foi bastante inteligente. Embora a
cloroquina tivesse se mostrado efetiva no estudo anterior, essa droga pode ser
bastante tóxica para nós, seres humanos. Além disso, pelo menos na China, e é
plausível que para boa parte do mundo também, a produção e estoque de
cloroquina foi bastante reduzida, já que seu uso é infrequente. E é aí que
entra a hidroxicloroquina. Como ela é bem menos tóxica e está mais disponível,
uma vez que ela é utilizada amplamente no tratamento de outras doenças (como as
já mencionadas doenças autoimunes), ela seria um bom candidato a medicamento
caso demonstrasse capacidade de inibição do novo coronavírus.
A conclusão de Liu et al. foi a seguinte:
“Em conclusão, nossos
resultados mostram que a HCQ [hidroxicloroquina] pode inibir eficientemente a
infecção por SARS-CoV-2 in vitro. Em combinação com sua função
anti-inflamatória, prevemos que o medicamento tenha um bom potencial para combater
a doença. Esta possibilidade aguarda confirmação por ensaios clínicos. Precisamos
ressaltar que, embora a HCQ seja menos tóxica que a CQ [cloroquina], o uso
prolongado e overdose ainda podem causar intoxicação. E o SI [índice de seletividade]
relativamente baixo da HCQ requer um projeto e condução cuidadosos de ensaios
clínicos para obter um controle eficiente e seguro da infecção por SARS-CoV-2”.
Ok. Até aqui, o que
temos? Dois estudos mostrando que cloroquina e hidroxicloroquina tem efeitos de
inibição do novo coronavirus in vitro. O “in vitro” é muito importante. Quer
dizer que o estudo foi conduzido em laboratório e fora do contexto da
complexidade dos sistemas vivos. Além disso, ficou muito claro como é preciso
ter cuidado com esses medicamentos, dada a sua toxicidade.
Esses e outros estudos
levaram ao "hype" da (hidroxi)cloroquina, mas um olhar mais cético e menos
emocional, talvez, já poderia ter baixado a bola um pouco. Um breve revisão por
Franck Touret e Xavier De Lamballerie publicada na Antiviral Research (Touret & De Lamballerie, 2020) sumarizou muito bem alguns pontos
importantes no que diz respeito a cloroquina:
- Dados in vitro
sugerem que a cloroquina inibe a replicação do SARS Cov-2.
- Em pesquisas
anteriores, a cloroquina demonstrou atividade in vitro contra muitos vírus
diferentes, mas nenhum benefício em modelos animais.
- A cloroquina foi
proposta várias vezes para o tratamento de doenças virais agudas em humanos sem
sucesso.
- Os resultados de
alguns ensaios clínicos atuais de cloroquina na China foram anunciados, sem
acesso aos dados.
- A revisão por pares
dos resultados e uma avaliação independente do benefício potencial para os
pacientes são essenciais.
O “boom” mesmo da
cloroquina ocorreu com a publicação, em 20 de março, de um ensaio clínico não-randomizado (já amplamente distribuído nas redes sociais dias antes) que contou com o envolvimento do pesquisador francês Didier Raoult. Nesse estudo, publicado no International Journal of Antimicrobial Agents, Gautret et al. utilizaram a hidroxicloroquina e o
antibiótico azitromicina no tratamento da COVID-19. A
conclusão do estudo foi encorajadora:
“Apesar de seu pequeno
tamanho amostral, nossa pesquisa mostra que o tratamento com hidroxicloroquina
está significativamente associado à redução / desaparecimento da carga viral em
pacientes com COVID-19 e seu efeito é reforçado pela azitromicina”.
Entretanto, não durou
para que os problemas com o estudo aparecessem. O primeiro problema está
explícito no próprio título. Trata-se de um Ensaio Clínico Não-Randomizado (ECNR). E o
que é isso? Segundo Nedel & Silveira (2016):
“Neste tipo de estudo
há um grupo intervenção e um grupo controle, mas a designação dos participantes
para cada grupo não se dá de forma aleatória, como no ECR, mas conveniência do
pesquisador”.
O padrão de excelência seria
um Ensaio Clínico Randomizado, o que segundo Nedel & Silveira (2016) é um:
“Estudo
intervencionista e prospectivo. Os participantes devem ter a mesma oportunidade
de receber, ou não, a intervenção proposta e esses grupos devem ser os mais
parecidos possíveis, de forma que a única diferença entre eles seja a
intervenção em si, podendo-se, assim, avaliar o impacto na ocorrência do
desfecho em um grupo sobre o outro. É o padrão de excelência em estudos que
pretendem avaliar o efeito de uma intervenção no curso de uma situação clínica”.
Um ECNR “não consegue
controlar outros fatores que podem ter ocorrido concomitantes à intervenção
implantada, e que podem ter contribuído para a mudança no desfecho” (Nedel
& Silveira, 2016).
E os problemas não
param por aí. Muitos pesquisadores se voltaram para o estudo e encontraram
diversos problemas, tornando difícil listar todos aqui. Confira as referências
para maiores detalhes. Por exemplo, quando questionados sobre certos aspectos
do estudo, os autores se negaram, ao menos inicialmente, a fornecer alguns
dados, o que é bastante estranho. Adicionalmente, parece ter havido análise
diferencial entre pacientes, o que não é adequado.
Elisabeth Bik, uma microbiologista, foi
bastante crítica ao estudo e levantou diversos pontos importantes, como a
seguir:
"Embora o estudo tenha
começado com 26 pacientes no grupo HQ ou HQ + AZ, são fornecidos dados de
apenas 20 pacientes tratados, porque nem todos os pacientes concluíram o estudo
de 6 dias. Os dados para esses 20 pacientes parecem incrivelmente agradáveis;
especialmente os pacientes que receberam os dois medicamentos se recuperaram
muito rapidamente.
"O que aconteceu com os
outros seis pacientes tratados? Por que eles abandonaram o estudo? Três deles
foram transferidos para a unidade de terapia intensiva (presumivelmente porque
ficaram doentes) e 1 morreu. Os outros dois pacientes estavam com muita náusea
e pararam a medicação ou deixaram o hospital [...] Então, 4 dos 26 pacientes
tratados não estavam se recuperando.”
Enfim, a enxurrada de
críticas foi bem grande e no dia 3 de abril a International Society of
Antimicrobial Chemotherapy (ISAC) emitiu
uma nota, na qual afirma “o artigo não atende ao padrão esperado da Sociedade,
principalmente relacionado à falta de melhores explicações sobre os critérios
de inclusão e a triagem de pacientes”. A ISAC ainda ressaltou que embora “reconheça
que é importante ajudar a comunidade científica publicando novos dados
rapidamente, isso não pode custar a redução do escrutínio científico e das
melhores práticas”.
Um estudo conduzido por Jun Chen et al. e publicado ainda em março no Journal of Zhejiang University (Medical Science) chegou a uma conclusão não muito animadora sobre a
hidroxicloroquina (sozinha, sem ter sido associada com o uso de azitromicina). O estudo
avaliou 30 pacientes. 15 deles receberam hidroxicloroquina. Destes, 13 testaram
negativos para o novo coronavirus após uma semana. Os outros 15 pacientes não
receberam o medicamento e 14 deles testaram negativo, mostrando que não houve
diferença na recuperação daqueles que tomaram hidroxicloroquina e os que não
tomaram. Os autores do estudo, entretanto, ressaltaram que “estudos com maior
amostragem são necessários para investigar os efeitos da HCQ no tratamento da
COVID-19”.
No dia 31 de março foi depositado no medRxiv, um repositório de artigos que aguardam revisão e publicação
na área da medicina, um artigo assinado por Zhaowei Chen et al. e que traz resultados de um ensaio clínico randomizado
que avaliou a eficácia da hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19. Os
resultados são bastante interessantes:
“Em comparação com o
grupo controle, o tempo de restabelecimento da temperatura corporal foi
reduzido significativamente no grupo tratado com HCQ... O tempo de remissão da
tosse reduziu significativamente no grupo tratado com HCQ. Notavelmente, um
total de 4 dos 62 pacientes evoluíram para doença grave, todos pertencentes ao
grupo controle, que não recebeu tratamento com HCQ. Quanto aos efeitos
adversos, deve ser ressaltado que houve dois pacientes com leves reações
adversas no grupo de tratamento com HCQ, um paciente desenvolveu erupções cutâneas,
e um paciente experienciou uma dor de cabeça, nenhum efeito colateral severo apareceu
entre eles.
“Para explorar ainda
mais o efeito da HCQ na pneumonia, comparamos e analisamos a TC do tórax dos
pacientes no dia 0 e no dia 6. Em nosso estudo, a pneumonia foi melhorada em
67,7% (42/62) dos pacientes, com 29,0% moderadamente absorvidos e 38,7%
melhoraram significativamente. Surpreendentemente, uma proporção maior de
pacientes com pneumonia melhorada no grupo de tratamento com HCQ (80,6%, 25 de
31) em comparação com o grupo controle (54,8%, 17 de 31). Além disso, 61,3% dos
pacientes no grupo de tratamento com HCQ tiveram uma absorção significativa da
pneumonia.”
Algo que Zhaowei Chen et al. fazem questão de ressaltar é algo que já mencionamos aqui: os efeitos
colaterais precisam ser levados a sério. Eles apontam que o tratamento com HCQ
deve sem individualmente, levando em consideração as condições de saúde de cada
paciente.
Finalmente, o estudo se
encerra com a seguinte conclusão:
“Apesar do nosso
pequeno número de casos, o potencial da HCQ no tratamento da COVID-19 foi
parcialmente confirmado. Considerando que atualmente não há opção melhor, é uma
prática promissora aplicar HCQ a COVID-19 sob gerenciamento razoável. No
entanto, ainda são necessárias pesquisas clínicas e básicas em larga escala
para esclarecer seu mecanismo específico e otimizar continuamente o plano de
tratamento.”
É preciso ressaltar algumas
coisas a respeito desse artigo. Embora muito animador, em se tratando de
artigos disponibilizados no medRxiv, uma coisa deve ficar bem clara, e na
própria página do medRxiv isso é reforçado: são artigos que ainda não foram
revisados, que relatam pesquisas médicas que ainda precisam ser escrutinadas,
avaliadas rigorosamente e, assim, não devemos basear a prática clínica em tais
artigos.
Esse é meu breve apanhado de informações sobre a hidroxicloroquina até o presente momento (08/04/2020). Espero que tenha lhe sido de alguma serventia. Um forte abraço virtual.
Referências:
WANG, Manli et al.
Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel
coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell research, v. 30, n. 3, p.
269-271, 2020.
LIU, Jia et al.
Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in
inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell discovery, v. 6, n. 1, p.
1-4, 2020.
TOURET, Franck; DE
LAMBALLERIE, Xavier. Of chloroquine and COVID-19. Antiviral research, p. 104762, 2020.
NEDEL, Wagner Luis; SILVEIRA, Fernando da. Os diferentes
delineamentos de pesquisa e suas particularidades na terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia
Intensiva, v. 28, n. 3, p.
256-260, 2016.
GAUTRET, Philippe et
al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of
an open-label non-randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents, p. 105949, 2020.
CHEN, Zhaowei et al.
Efficacy of hydroxychloroquine in patients with COVID-19: results of a
randomized clinical trial. medRxiv, 2020.
Sobre o estudo controverso:
Nota da ISAC:
Estudo chinês com
hidroxicloroquina e resultado indiferente:
CHEN, Jun et al. A
pilot study of hydroxychloroquine in treatment of patients with common
coronavirus disease-19 (COVID-19). Journal of Zhejiang University (Medical Science), v. 49, n. 1, p. 0-0, 2020.
Sobre o estudo chinês com
hidroxicloroquina e resultado indiferente
https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-03-25/hydroxychloroquine-no-better-than-regular-covid-19-care-in-study
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