quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Os fósseis dizem sim: a descoberta de formas transicionais tem preenchido algumas das mais faladas lacunas do registro fóssil


Tem sido afirmado repetidas vezes, por escritores que acreditam na imutabilidade das espécies, que a geologia não apresenta formas de conexão. Essa afirmação... é certamente errônea... O que a pesquisa geológica não revelou foi a existência anterior de um número infinito de graduações... que estão conectadas a quase todas as espécies existentes e extintas.
- Charles Darwin, A Origem das espécies.



Quando pela primeira vez Darwin propôs a ideia da evolução por seleção natural em 1859, o registro fóssil deu pouco suporte à suas ideias. Darwin até mesmo devotou dois capítulos inteiros de A Origem das Espécies à imperfeição do registro geológico, pois ele estava consciente que este era um de seus argumentos mais fracos. Então, apenas dois anos depois que seu livro foi publicado, o primeiro espécime de Archeopteryx foi descoberto, aclamado por muitos como “o elo perdido” entre aves e répteis. No final do século XIX, fósseis ajudaram a demonstrar como o cavalo moderno evoluiu de uma criatura do tamanho de um cachorro, com três dedos e com os dentes inferiores coroados. (A interpretação desses fósseis tem desde então sido muito refinada)

A evidência fóssil dando suporte à evolução continuou a se acumular, particularmente nas últimas décadas. Análises de DNA, de mais a mais, ajudaram a melhorar o entendimento de como a evidência se encaixa na árvore genealógica da vida na Terra. Infelizmente, muitas pessoas ainda pensam, bastante equivocadas, que o registro fóssil não mostra nenhuma “forma de conexão”. Em maior parte, esta ideia equivocada é o produto da campanha de má informação – ou desinformação – espalhada pelo movimento criacionista.
 
O registro fóssil está longe de ser perfeito, é claro. Na maioria das estimativas, menos de um por cento de todas as espécies que já viveram estão preservadas como fósseis. A razão para esta escassez é simplesmente o fato de que as condições físicas necessárias para tornar um organismo morto em um fóssil durável por milhões de anos são inusitadas. 

Todavia, existem numerosos e excelentes espécimes que refletem estágios transicionais entre os principais grupos. Muito mais fósseis exibem como as “infinitamente numerosas gradações” conectam as espécies. A única ressalva é que quando uma sequência de fósseis parece uma linha direta de descendência, as chances são ligeiras de que eles na verdade conduzam a inter-relações precisas. Paleontólogos reconhecem que quando um fóssil parece ser o ancestral de outro, o primeiro fóssil é mais seguramente descrito como sendo intimamente relacionado ao verdadeiro ancestral.

A clássica história da evolução do cavalo é um bom exemplo. Os vários fósseis conhecidos foram uma vez arranjados – de modo simplista, como se revelou – numa única linhagem partindo do “Eohippus” ao Equus. Quando mais fósseis tornaram-se avaliáveis, paleontólogos revisaram essa linhagem simples. Os fósseis agora fornecem uma ramificada e frondosa ilustração da evolução equina, com numerosas linhagens, agora extintas, vivendo lado a lado. Uma pedreira em Nebraska rendeu uma dúzia de espécies fósseis de cavalo, em rochas datadas de cerca de 12 milhões de anos. Os primeiros cavalos, como o Protorohippus (do começo da época Eocena, cerca de 53 milhões de anos atrás), são virtualmente indistinguíveis do Homogalax, o primeiro membro da linhagem, da qual também surgiram as antas e os rinocerontes. Muito cedo em minha carreira, quando estava assumindo uma turma de graduação em paleontologia, eu descobri como é duro separar aqueles dois gêneros antigos. 

Talvez as mais notáveis descobertas recentes sejam os numerosos fósseis que conectam baleias aos seus ancestrais terrestres de quatro patas. Se você observar os golfinhos, orcas e baleias azuis, animais completamente aquáticos, passaria um bom tempo imaginando-os caminhar sobre a terra. Ainda hoje, as baleias retêm vestígios de seus quadril e fêmur, profundamente enterrados nos músculos ao longo de suas espinhas. Paleontólogos sabiam há muito tempo, baseados nas detalhadas características do crânio e dentes, que as baleias estão intimamente relacionadas com mamíferos de casco. Mas os criacionistas continuavam a elogiar a ausência de fósseis transicionais para baleias como evidência contra a evolução.

O equilíbrio agora mudou. Em 1983, espécimes de Pakicetus foram descobertas no Paquistão, nos primitivos estratos do Eoceno, com cerca de 52 milhões de anos de idade. Embora o corpo do Pakicetus fosse primariamente terrestre, ele tem o crânio e os dentes de antigos arqueocetos, a mais primitiva família de baleias – que nadou nos oceanos no Eoceno médio há 50 milhões de anos atrás.

Então, em 1984, Ambulocetus natans (literalmente a “baleia-ambulante que nada”) foi descoberto, também no Paquistão. O animal era do tamanho de um grande leão marinho, com largos pés palmados [pés de pato, como se costuma dizer]– e membros posteriores, assim podendo caminhar e nadar. Ainda, tinha diminutos cascos sobre seus dedos, e os primitivos dentes e crânio dos arqueocetos. O Ambulocetus aparentemente nadava de forma similar a uma lontra, com um movimento vertical da coluna, o precursor para o movimento [agora característico] da cauda das baleias. Em 1995, uma terceira criatura transicional foi descoberta, Dalanistes, com pernas mais curtas que as do Ambulocetus, pés de pato [pés palmados], crânio maior e mais semelhante ao de uma baleia.

Hoje, mais de uma dúzia de baleias fósseis transicionais foram desenterradas – uma série excelente para animais raramente fossilizados. O DNA das espécies vivas sugere que baleias são descendentes de ungulados [animais de casco] conhecido como artiodáctilos e, em particular, estão mais proximamente relacionadas aos hipopótamos. Esta hipótese foi dramaticamente confirmada pela descoberta em 2001 do osso em formato de polia dupla, o qual é característico de artiodáctilos, em dois tipos de baleias primitivas.

As baleias não são os únicos mamíferos aquáticos com ancestrais terrestres. Os sirênios modernos (manatis e dugongos) são herbívoros aquáticos grandes e dóceis que têm membros dianteiros e nenhum membro anterior. Em 2001, Daryl Domning, um paleontologista de mamíferos marinhos da Universidade de Howard em Washington, D.C., descreveu um esqueleto notavelmente completo do Pezosiren portelli, dos depósitos jamaicanos com cerca de 50 milhões de anos de idade. Tal animal tinha o crânio e os dentes típicos de um sirênio, até mesmo as espessas costelas sirênias feitas de ossos densos, as quais serviam como lastro. Tinha quatro pernas também, todas com pés, nenhuma barbatana. Vigorosos fósseis transicionais também ligam focas e leões marinhos a ancestrais similares ao urso. 

A origem dos mamíferos é bem documentada. Os mamíferos e seus extintos parentes pertencem a um grupo maior conhecido como Sinapsídeos. Os primeiros membros do grupo foram certa vez conhecidos como “répteis semelhantes à mamíferos” embora não fossem répteis verdadeiros, mas tivessem tão logo evoluído para se tornar um ramo separado de animais. Entre eles estava o Dimetrodon, o maior predador da Terra há 280 milhões de anos atrás. (Suas costas em forma de vela são familiares dos kits de brinquedos de dinossauros das crianças, muito embora ele não tenha sido um dinossauro verdadeiro). Embora uma forma primitiva, Dimetrodon tinha dentes caninos grandes, pungentes e algo do crânio especializado dos mamíferos.

Pelos 80 milhões de anos seguintes, os Sinapsídeos evoluíram em vários predadores em forma de lobo ou urso, assim como em uma matriz de herbívoros peculiares que lembravam porcos. Ao longo do caminho, eles adquiriram progressivamente mais caracteres mamíferos: músculos mandibulares adicionais que possibilitam movimentos complexos de mastigação; um palato secundário cobrindo o velho palato reptiliano e a região nasal, o que os possibilitou comer e respirar ao mesmo tempo; molares multicúspides para mastigar ao invés de simplesmente engolir sua comida; cérebros ampliados; postura relativamente vertical (ao invés de esparramada/estendida); e um diafragma muscular na caixa torácica para uma respiração eficiente. Há até mesmo sinais de que eles tinham pelos, uma característica quintessencialmente mamífera. A história dos Sinapsídeos culmina no aparecimento dos primeiros mamíferos verdadeiros – criaturas do tamanho de musaranhos – nos estratos fósseis de cerca de 200 milhões de anos, na China, África do Sul e no Texas.

Dentre as mais notáveis transformações que ocorreram assim que os mamíferos emergiram, estão aquelas observadas nas mandíbulas inferiores fósseis. Nos répteis e Sinapsídeos primitivos, as mandíbulas inferiores direita e esquerda são constituída de certo número de ossos, um dos quais é o osso dentário. Com a evolução dos Sinapsídeos, o osso dentário cresceu progressivamente até assumir o papel de articular a mandíbula ao crânio. Outros ossos mandibulares reptilianos reduziram-se até desaparecerem, enquanto outros dois se desviaram para o meio da orelha. Eles se tornaram a bigorna e o martelo, pequenos ossos que transmitem o som do tímpano para o osso do estribo e, por fim, para o interior da orelha. O desvio de função irá parecer bizarro até que você se atente de que em répteis, as vibrações sonoras na mandíbula inferior viajam através dos ossos do crânio até o interior do ouvido, e então, junto com as vibrações que viajam a partir do tímpano, aquelas vibrações são importantes fontes de sensações.

Excelentes “elos perdidos” agora existem para outros principais grupos também. Muitos fósseis mostram a transformação de dinossauros em aves. O Archeopteryx, por exemplo, descoberto na Europa nos estratos jurássicos tardios e com cerca de 150 milhões de anos, tinha dentes. Fósseis ligeiramente mais jovens, do Cretáceo inferior chinês, cerca de 140 milhões de anos atrás, tinham mais caracteres de aves. Sinornis, por exemplo, tinha asas que poderiam ser dobradas sobre seu corpo, pés de preensão com dedos oponíveis, e cóccix fundido em um único elemento. Confuciusornis exibe o primeiro bico sem dentes. Rochas do Cretáceo inferior na Espanha, com cerca de 130 milhões de anos de idade, renderam o Iberomesornis, que quilhas [um osso característico das aves] largas nas quais poderosos músculos para o vôo estavam ancorados. Ainda, a criatura tinha uma longa e primitiva coluna de um dinossauro. 

Algumas aves fósseis agora estão unidas na teia das antigas formas vivas por numerosos e recém descobertos fósseis de dinossauros não-voadores e de caráter não-aviário, intimamente relacionados ao Velociraptor do famoso Jurassic Park. Estes fósseis, como o Microraptor e o Caudipteryx, tinham penas bem desenvolvidas, sugerindo que as mesmas outrora serviam para outra função, como o isolamento térmico, muito antes de se tornarem úteis para o voo.

Outra transição que agora é bem documentada é a conquista da terra pelos anfíbios. Por décadas o único bom fóssil intermediário entre peixes e anfíbios foi o Ichthyostega, do Devoniano tardio (360 milhões de anos atrás) da Groelândia e Spitzbergen. Embora o Ichthyostega lembrasse muitos anfíbios por ter pernas bem desenvolvidas, uma cintura escapular [escápula], e quadris unidos à coluna, ainda possuía fendas branquiais como nos peixes, um sistema sensório em sua face para detectar correntes embaixo d’água, e uma cauda longa similar à barbatana caudal dos peixes.

Descobertas recentes, como o Acanthostega, encontradas nos mesmos estratos, mostram que o quadro é muito mais complicado e interessante. O Acanthostega tinha ossos dos ouvidos que ainda estavam adaptados para audição subaquática, uma cauda maior que a do Ichthyostega, e guelras mais desenvolvidas, indicando que era mais primitivo e aquático que o Ichthyostega. O Acanthostega também possuía oito dedos em suas quatro patas – ao invés de cinco, que se tornaram o padrão nas mais primitivas criaturas quadrúpedes. Aparentemente, seus membros foram primeiramente adaptados para nadar e caminhar no fundo dos lagos, ao invés de serem usados para se arrastar em terra. Ao contrário da crença popular de que as quatro pernas evoluíram porque permitiam aos animais engatinharem na terra (para escapar de pequenos lagos que secavam, perseguir novas fontes de alimento e assim por diante), agora parece que os membros evoluíram para caminhar debaixo d’água (como a maioria das salamandras ainda hoje). Eles se tornaram secundariamente úteis em terra, pois eles já estavam no lugar certo.

E que tal as formas transicionais que conduzem à nossa espécie favorita, o Homo sapiens? Há não muito tempo, o registro fóssil da família humana era severamente limitado, e prontamente lançado em controvérsia por um único e fraudulento “fóssil”, o trote de 1912 conhecido como o homem de Piltdown. Mas nas três décadas passadas novos achados irromperam. No Chade, fósseis do Sahelanthropus foram descobertos nos estrados datados entre 6 e 7 milhões de anos de idade. Na Etiópia, o novo gênero Ardipithecus e duas outras espécies de Australopithecus (A. anamensis e A. bahrelghazali) foram desenterrados nos estrados entre 2 e 5 milhões de anos. Várias espécies de nosso próprio gênero, Homo, com pelo menos 2 milhões de anos, tem sido agora identificadas. 

Em resumo, o registro fóssil humano se tornou bastante denso e completo, e achados recentes levaram a várias surpresas. Por exemplo, contrariando a expectativa de antigos antropólogos, os fósseis mostraram que o bipedalismo surgiu antes da ampliação cerebral, a qual foi bastante tardia na evolução humana. 

A origem dos vertebrados de maneira geral é apresentada como uma lacuna frustrante no registro fóssil. Os biólogos poderiam examinar os diversos animais vivos (como anfioxos e ascídias) que representam estados de transição de invertebrados para os primeiros peixes sem mandíbula. Até recentemente, contudo, poucos bons fósseis foram identificados em estratos mais velhos quê 480 milhões de anos, próximo do período Ordoviciano. Além do mais, eles eram apenas escamas e placas dispersas e cheias de espinhas.

No entanto, recentes descobertas na China, advindas do Cambriano médio, entre 510 e 500 milhões de anos atrás, incluem não só os mais antigos parentes dos anfioxos, mas também alguns espécimes de corpo mole que parecem ser os mais antigos vertebrados. Assim, animais com coluna vertebral podem ser rastreados por todo o caminho de volta ao Cambriano, quando os modernos ramos de animais se originaram. 

Se aproximando do sesquicentenário de A Origem das Espécies, a evidência fóssil agora disponível poderia deixar Darwin orgulhoso, ao invés de apologético. Os biólogos evolutivos podem olhar adiante, para muitas outras descobertas. Algumas virão como surpresas, como os hominídeos bípedes de cérebro pequeno. Algumas irão forçar os paleontólogos a revisar suas ideias a respeito dos eventos evolucionários. Mas o registro fóssil não é mais um estorvo como nos dias de Darwin.

Donald R. Prothero

Este post é uma tradução. O original, publicado na Natural History em dezembro de 2005, pode ser lido aqui.  

Donald Ross Prothero é um paleontólogo, geólogo e autor americano. É especialista em paleontologia de mamíferos. Ele é o autor ou editor de mais de 30 livros e mais de 250 artigos científicos. Dele, recomendo ler Evolution: What the Fossils Say and Why It Matters. Infelizmente, só está disponível em inglês.

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