quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Darwin, a evolução e os pombos

Com apenas 22 anos, Charles Robert Darwin embarcou no H. M. S Beagle para um viagem ao redor do mundo, que no fim das contas durou cerca de 5 anos (1831-836). Quando ainda viajando com o Beagle, Charles Darwin não era um evolucionista, embora não fosse um literalista bíblico como o capitão do navio, Robert FitzRoy. Isto, como sabemos, iria mudar. E mudou logo, já que em 1837 Darwin começou a escrever seus primeiros cadernos a respeito da “transmutação das espécies”. Neste ano, ele escreveu [1]:

“Em julho iniciei o primeiro Caderno de notas sobre ‘transmutação das Espécies’ – Extremamente impressionado, desde cerca do mês de março anterior – com o caráter dos fósseis sul-americanos – e espécies do Arquipélago das Galápagos. – Esses fatos [são a] origem (especialmente o último) de todas as minhas ideias.”

Os registros de Darwin nos permitem saber que por volta de 1838 ele já tinha vislumbrado o princípio da Seleção Natural. Darwin, então, munido de um mecanismo capaz de explicar a origem de novas espécies, pôs-se a trabalhar neste mistério dos mistérios. Como bem sabemos, em 1844 ele redigiu um esboço de suas conclusões e separou também uma quantia de dinheiro para que sua esposa pudesse publicar seu esboço caso ele morresse. Sua grande obra, On The Origin of Species, só viria a ser publicada em 1859, devido a pressões de seus amigos e, como todos sabem, às descobertas de Alfred Russel Wallace.
Recordemos: Darwin volta da viagem abordo do Beagle em 1836; inicia seus cadernos sobre evolução em 1837; descobre a seleção natural em 1838; redige um manuscrito em 1844; e finalmente publica On The Origin em 1859.

Como bem colocado por Sean B. Carroll, “os que leem A Origem das Espécies pela primeira vez podem esperar ser saudados com um desfile deslumbrante da diversidade da vida ou uma narrativa crepitante da origem dos humanos. Nem um, nem outro. No capítulo I do livro mais importante em toda a biologia, temos …. pombos” [2]. Isso mesmo, pombos. Mas não se desaponte. O mesmo Sean Carroll nos assegura (e com razão): esse foi o primeiro de muitos golpes de mestre. Por que?

O porquê de Darwin escolher abrir seu “longo argumento” com pombos é fácil de compreender. Mais especificamente, Darwin falava dos pombos domésticos. Estas aves, como sabemos, são o produto da seleção de traços por criadores de pombos ao longo das gerações, tentando fixar uma característica (escolhida pelo seletor) e, assim, criar uma nova variedade. Esta é a famosa Seleção Artificial. E o caso dos pombos domésticos é um ótimo exemplo do poder cumulativo da seleção de pequenos variações que ocasionalmente surgem e podem ser transmitidos às gerações seguintes.
 
Variedades de Pombos, os frutos da Seleção Artificial. Fonte da imagem: clique aqui.

A Seleção Artificial, portanto, é uma ótima analogia para a Seleção Natural. Note a importância das palavras “cumulativo”, “seleção”, “variações”, “ocasionalmente” e “gerações”. Sendo assim, a Seleção Artificial é uma boa analogia para a Seleção Natural porque envolve os elementos: acaso, variação, seleção e tempo (gerações são necessárias para acumular os traços selecionados). Percebe a sacada de mestre que tínhamos falado? Estes elementos aparecem na definição de Seleção Natural dada por Darwin [3]:

“Podemos considerar improvável, uma vez que já ocorreram variações úteis ao homem, que outras variações de alguma forma úteis a cada ser na grande e complexa luta pela vida venham a ocorrer no curso de várias gerações sucessivas? Se isso acontecer, podemos duvidar (lembrando que nasce um número maior de indivíduos do que aqueles que sobrevivem) que os indivíduos com alguma vantagem sobre os outros, mesmo que pequena, teriam a melhor chance de sobreviver e de procriar? Por outro lado, podemos estar certos de que qualquer variação, por menos prejudicial que seja, seria destruída por completo. A essa preservação das diferenças individuais e variações favoráveis e à destruição daquelas que são prejudiciais dei o nome de Seleção Natural ou Sobrevivência dos Mais Aptos”.
Ch. IV, On The Origins of Species.

Agora que já deve ter ficado bem claro o porquê dos pombos e que já estamos finalizando nossa discussão, só mais uma palavrinha sobre pombos e a Seleção Artificial. Outra razão para Darwin ter usado pombos domésticos é que as raças de pombos, todas elas formadas por Seleção Artificial, são bem distintas uma das outras. Deixar claro que tais raças vieram a existir pelo acúmulo de variações favoráveis (ao gosto do seletor) era muito importante, já que na época em que Darwin publicou seu livro ele contava com pouquíssimo apoio empírico da Seleção Natural em operação.

Os pombos proveram uma demonstração clara do poder cumulativo da Seleção e também da Descendência com Modificação, o que hoje conhecemos por Ancestralidade Comum. A Seleção de diferentes traços em diferentes populações de uma mesma espécie ancestral (a pomba-das-rochas) deu origem a uma divergência de caracteres, que tornou-se mais e mais acentuada ao longo tempo e, conforme outros traços foram sendo selecionados, um padrão de árvore emerge. O resultado final são espécies diferentes descendentes de uma espécie-mãe, todas relacionadas de modo genealógico. Era isso que a teoria de Darwin exigia. E se ele não conseguisse dar nem um exemplo analógico sequer, como poderia convencer seus leitores da plausibilidade da Evolução por Seleção Natural?

Por fim, eu gostaria de lembrar uma coisa. Os criacionistas sempre criticam o uso da Seleção Artificial como evidência da Seleção Natural, ou então a desmerecem dizendo que é só um análogo útil para a “microevolução”. Isso é muito curioso. Se não existisse evidência microevolutiva certamente eles criticariam isso. Mas como existe, eles tentam desmerecer. Eles deviam compreender que a Seleção Artificial e a Microevolução, juntas, são o que Richard Dawkins chamaria de “sedução para apresentar a macroevolução” [4].

Esse texto foi originalmente publicado aqui.

REFERÊNCIAS

1 – BUCKHARDT, F. (ed.). As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859. São Paulo: Unesp; Cambridge University Press, 2000.

2 – CARROLL, Sean B.; SEAN CARROLL. The making of the fittest: DNA and the ultimate. New York, USA: W. W. Norton & Company, c2006. 301 p.

3 – DARWIN, Charles. A origem das espécies. Tradução, Carlos Duarte e Anna Duarte. São Paulo: Martin Claret, 2014.

4 – DAWKINS, C. Richard. O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução. Tradução, Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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