Com apenas 22 anos, Charles Robert Darwin embarcou no H. M. S Beagle
para um viagem ao redor do mundo, que no fim das contas durou cerca de 5
anos (1831-836). Quando ainda viajando com o Beagle, Charles Darwin não
era um evolucionista, embora não fosse um literalista bíblico como o
capitão do navio, Robert FitzRoy. Isto, como sabemos, iria mudar. E
mudou logo, já que em 1837 Darwin começou a escrever seus primeiros
cadernos a respeito da “transmutação das espécies”. Neste ano, ele
escreveu [1]:
“Em
julho iniciei o primeiro Caderno de notas sobre ‘transmutação das
Espécies’ – Extremamente impressionado, desde cerca do mês de março
anterior – com o caráter dos fósseis sul-americanos – e espécies do
Arquipélago das Galápagos. – Esses fatos [são a] origem (especialmente o
último) de todas as minhas ideias.”
Os registros de Darwin nos permitem saber que por volta de 1838 ele já tinha vislumbrado o princípio da Seleção Natural.
Darwin, então, munido de um mecanismo capaz de explicar a origem de
novas espécies, pôs-se a trabalhar neste mistério dos mistérios. Como
bem sabemos, em 1844 ele redigiu um esboço de suas conclusões e separou
também uma quantia de dinheiro para que sua esposa pudesse publicar seu
esboço caso ele morresse. Sua grande obra, On The Origin of Species,
só viria a ser publicada em 1859, devido a pressões de seus amigos e,
como todos sabem, às descobertas de Alfred Russel Wallace.
Recordemos:
Darwin volta da viagem abordo do Beagle em 1836; inicia seus cadernos
sobre evolução em 1837; descobre a seleção natural em 1838; redige um
manuscrito em 1844; e finalmente publica On The Origin em 1859.
Como bem colocado por Sean B. Carroll, “os que leem A Origem das Espécies
pela primeira vez podem esperar ser saudados com um desfile
deslumbrante da diversidade da vida ou uma narrativa crepitante da
origem dos humanos. Nem um, nem outro. No capítulo I do livro mais
importante em toda a biologia, temos …. pombos” [2]. Isso mesmo, pombos.
Mas não se desaponte. O mesmo Sean Carroll nos assegura (e com razão):
esse foi o primeiro de muitos golpes de mestre. Por que?
O porquê de
Darwin escolher abrir seu “longo argumento” com pombos é fácil de
compreender. Mais especificamente, Darwin falava dos pombos domésticos.
Estas aves, como sabemos, são o produto da seleção de traços por
criadores de pombos ao longo das gerações, tentando fixar uma
característica (escolhida pelo seletor) e, assim, criar uma nova
variedade. Esta é a famosa Seleção Artificial. E o caso
dos pombos domésticos é um ótimo exemplo do poder cumulativo da seleção
de pequenos variações que ocasionalmente surgem e podem ser
transmitidos às gerações seguintes.
Variedades de Pombos, os frutos da Seleção Artificial. Fonte da imagem: clique aqui. |
A Seleção
Artificial, portanto, é uma ótima analogia para a Seleção Natural. Note a
importância das palavras “cumulativo”, “seleção”, “variações”,
“ocasionalmente” e “gerações”. Sendo assim, a Seleção Artificial é uma
boa analogia para a Seleção Natural porque envolve os elementos: acaso,
variação, seleção e tempo (gerações são necessárias para acumular os
traços selecionados). Percebe a sacada de mestre que tínhamos falado?
Estes elementos aparecem na definição de Seleção Natural dada por Darwin
[3]:
“Podemos
considerar improvável, uma vez que já ocorreram variações úteis ao
homem, que outras variações de alguma forma úteis a cada ser na grande e
complexa luta pela vida venham a ocorrer no curso de várias gerações
sucessivas? Se isso acontecer, podemos duvidar (lembrando que nasce um
número maior de indivíduos do que aqueles que sobrevivem) que os
indivíduos com alguma vantagem sobre os outros, mesmo que pequena,
teriam a melhor chance de sobreviver e de procriar? Por outro lado,
podemos estar certos de que qualquer variação, por menos prejudicial que
seja, seria destruída por completo. A essa preservação das diferenças
individuais e variações favoráveis e à destruição daquelas que são
prejudiciais dei o nome de Seleção Natural ou Sobrevivência dos Mais
Aptos”.
Ch. IV, On The Origins of Species.
Agora que já
deve ter ficado bem claro o porquê dos pombos e que já estamos
finalizando nossa discussão, só mais uma palavrinha sobre pombos e a
Seleção Artificial. Outra razão para Darwin ter usado pombos domésticos é
que as raças de pombos, todas elas formadas por Seleção Artificial, são
bem distintas uma das outras. Deixar claro que tais raças vieram a
existir pelo acúmulo de variações favoráveis (ao gosto do seletor) era
muito importante, já que na época em que Darwin publicou seu livro ele
contava com pouquíssimo apoio empírico da Seleção Natural em operação.
Os pombos
proveram uma demonstração clara do poder cumulativo da Seleção e também
da Descendência com Modificação, o que hoje conhecemos por
Ancestralidade Comum. A Seleção de diferentes traços em diferentes
populações de uma mesma espécie ancestral (a pomba-das-rochas) deu
origem a uma divergência de caracteres, que tornou-se mais e mais
acentuada ao longo tempo e, conforme outros traços foram sendo
selecionados, um padrão de árvore emerge. O resultado final são espécies
diferentes descendentes de uma espécie-mãe, todas relacionadas de modo
genealógico. Era isso que a teoria de Darwin exigia. E se ele não
conseguisse dar nem um exemplo analógico sequer, como poderia convencer
seus leitores da plausibilidade da Evolução por Seleção Natural?
Por fim, eu
gostaria de lembrar uma coisa. Os criacionistas sempre criticam o uso da
Seleção Artificial como evidência da Seleção Natural, ou então a
desmerecem dizendo que é só um análogo útil para a “microevolução”. Isso
é muito curioso. Se não existisse evidência microevolutiva certamente
eles criticariam isso. Mas como existe, eles tentam desmerecer. Eles
deviam compreender que a Seleção Artificial e a Microevolução, juntas,
são o que Richard Dawkins chamaria de “sedução para apresentar a
macroevolução” [4].
Esse texto foi originalmente publicado aqui.
REFERÊNCIAS
1 – BUCKHARDT, F. (ed.). As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859. São Paulo: Unesp; Cambridge University Press, 2000.
2 – CARROLL,
Sean B.; SEAN CARROLL. The making of the fittest: DNA and the ultimate.
New York, USA: W. W. Norton & Company, c2006. 301 p.
3 – DARWIN, Charles. A origem das espécies. Tradução, Carlos Duarte e Anna Duarte. São Paulo: Martin Claret, 2014.
4 – DAWKINS,
C. Richard. O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução.
Tradução, Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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