A ideia de evolução, ou seja, que as espécies não são criações fixas
e imutáveis, mas que evoluem (leia-se mudam) ao longo do tempo
geológico, não é de forma alguma uma invenção de Darwin. Buffon,
Lamarck, Saint-Hilaire e o próprio avô de Darwin, o poeta e médico
Erasmus Darwin, são apenas uns poucos nomes que defendiam a evolução
antes de Darwin. Só no prefácio de A Origem das Espécies, o autor
identifica mais de 30 nomes que o precederam na defesa de uma visão
evolucionista. O status de grande pensador que Darwin conseguiu se deve
não à evolução em si, mas a um dos mecanismo que impele a mudança evolutiva, a
saber, a seleção natural. A descoberta deste mecanismo simples, embora
poderosíssimo, é geralmente atribuída a Charles Darwin e Alfred Russel
Wallace. Mas terá alguém chegado ao mesmo princípio antes deles?
Podemos fazer a seguinte pergunta: Quando Darwin chegou pela primeira
fez à suas ideias sobre a evolução por seleção natural? O próprio nos
responde, logo na introdução de sua grande obra:
[...] Quando do
meu retorno à minha terra natal, em 1837, ocorreu-me que talvez pudesse
fazer algo sobre esse assunto [a origem das espécies] se fosse, com
paciência, acumulando e refletindo sobre toda sorte de fatos que
pudessem ter alguma influência sobre a questão. Depois de um trabalho de
cinco anos permiti-me teorizar sobre o assunto e escrever algumas
pequenas notas; em 1844 elas foram adicionadas, em forma de ensaio, às
conclusões que então me pareciam prováveis: desde aquela data até o
presente momento [1859] tenho perseguido o mesmo objetivo com
tenacidade. [...]
(Darwin, p. 31)
Além disso, segundo seus cadernos de anotações, Darwin descobriu o princípio da seleção natural no outono de 1838.
E quanto a Wallace?
Sobre as
ideias de Wallace, o mesmo Darwin nos conta que “em 1858, ele [Wallace]
enviou-me um ensaio sobre esse assunto” (Darwin, p. 31).
Depois da
publicação de A Origem das Espécies, em 1859, o naturalista e
fruticultor escocês, Patrick Matthew, escreveu à Gardener’s Chronicle
reivindicando a prioridade sobre a seleção natural. Em 21 de abril de
1860, Darwin respondeu à Matthew:
Fiquei muito interessado no comunicado do Sr. Patrick Matthew...
Reconheço francamente que o Sr. Matthew antecipou em vários anos a
explicação que ofereci da origem das espécies sob o nome de seleção
natural. Acho que não será motivo de surpresa para ninguém que nem eu,
nem, aparentemente, qualquer outro naturalista, tenha ouvido falar dos
pareceres do Sr. Matthew, considerando-se a brevidade com que são
expostos e o fato de terem surgido no apêndice de uma obra sobre madeira
para construção naval e arboricultura. Nada mais posso fazer, além de
oferecer minhas desculpas ao Sr. Matthew pela minha completa ignorância a
respeito da sua publicação. Se for pedida outra edição da minha obra,
publicarei uma nota com tal propósito. ( Darwin, 1860 apud Gould, p. 312)
De fato, na terceira edição da obra de Darwin, ele cumpre sua promessa.
A obra obscura de P. Matthew à qual Darwin se refere foi publicada em
1831 sob o título Naval Timber and Arboriculture [ Madeira Naval e
Arboricultura]. Por tratar de um assunto diferente e ter sida enunciada
de forma lacônica no apêndice de uma obra, as conclusões de Matthew a
respeito da seleção natural, como evidenciado no trecho supracitado,
permaneceram esquecidas. As informações não são muitas sobre as ideias
de Matthew, mas segundo Darwin “ ele parece crer que o mundo foi quase
despovoado durante períodos sucessivos e, então, repovoado em seguida;
e, como alternativa, admite a geração de novas formas ‘sem auxílio de
qualquer molde ou germe de agregados anteriores’” (Darwin, p.21). Essa
declaração não utiliza a seleção natural e, pelo que foi pesquisado,
Matthew não soube o que fazer com o princípio que descobrira.
Todavia, existiu um predecessor tanto de Darwin quanto de Matthew. Conforme lemos ainda no prefácio de A Origem:
Em 1813, O Dr. W. C. Wells leu perante a Royal Society um ensaio “sobre
uma mulher branca cuja pele, em determinados pontos, se assemelha à de
uma negra”; ensaio esse que só foi publicado depois do surgimento, em
1818, de seu famoso Dois ensaios sobre o orvalho e visão única, e no
qual reconhece com clareza o princípio da seleção natural, e este é o
primeiro reconhecimento indicado; mas ele se refere apenas às raças
humanas e a certas características em particular.
(Darwin, p.19)
S. J. Gould escreve, em O Sorriso do Flamingo, que “apesar da qualidade o do renome dessas obras, Wells publicou pouca coisa mais. Sua autobiografia nem menciona o ensaio de 1813 sobre a cor da pele humana”, e conclui, logo em seguida que “não possuímos nenhuma indicação de que ele lhe conferisse qualquer importância em sua mente ou de que reconhecia quaisquer implicações adicionais para suas ideias” (Gould, p.312).
Fica evidente, portanto, que Wells foi o primeiro
naturalista dos tempos modernos (pelo menos até onde sabemos) a postular
a seleção natural desde o desabrochar da ciência moderna. Enfatiza-se
“tempos modernos” porque mesmo Darwin reconheceu que Aristóteles pode
ter delineado o princípio da seleção natural. No entanto, Darwin
assegura “o quão pouco Aristóteles o compreendeu pelas observações por
ele feitas” (Darwin, p.17).
Matthew e Wells tinham ouro nas mãos. O que fizeram com ele?
O infortúnio de Matthew foi que ele fizera apenas uma
declaração. “As ideias são baratas; a simples declaração conta pouco ou
nada” (Gould, p. 319). Wells, no entanto, foi mais longe que Matthew,
fazendo a aplicação da seleção natural a um caso particular.
Depois de notar que os negros e mulatos gozam de imunidades a certas
doenças tropicais [acreditava-se nisso à época], ele observa em primeiro
lugar que todos os animas tendem a sofrer variações num certo grau, e,
em segundo lugar, que os pecuaristas melhoram a raça de seus animais
domésticos por meio de seleção; e, então acrescenta o que o que é feito
neste último caso “pela arte parece ser feito com a mesma eficácia,
embora de forma mais lenta, pela natureza, na produção de variedades
humanas. Das variedades humanas acidentais que poderiam ter surgido
entre o pequeno número dos primeiros habitantes espalhados pelas regiões
centrais da África, algumas delas se teriam tornado mais aptas do que
as outras para suportar as doenças da região. Como consequência, tal
raça deveria ter-se multiplicado, ao passo que outras teriam perecido,
não apenas pela incapacidade de resistir ao ataque de doenças, mas pela
incapacidade de lutar contra seus vizinhos...” (Darwin, p 19-20)
O
quê, então, faltou às ideias de Wells? Eis a resposta: generalização.
As ideias de Wells não foram ampliadas e aplicadas a casos gerais, como,
por exemplo, para fornecer uma argumentação em defesa da mudança das
espécies. Darwin, ao contrário, fez exatamente isso. Ele reconheceu o
poder da seleção natural como explicação para cada adaptação encontrada
nos seres vivos, fazendo, desta forma, emergir um quadro plausível de
mudança evolutiva gradual. A fama intelectual atribuída à Darwin é
legítima, uma vez que ela “é dada às pessoas que possuem a visão para
fazem com que uma ideia boa funcione de duas maneiras: usando-a para
fazer novas descobertas e reconhecendo suas implicações como um
instrumento de longo alcance para transformar atitudes gerais” (Gould,
p. 319). Darwin utilizou a teoria da evolução por seleção natural para
unir diversos campos tais como a geologia, a biogeografia, e a
embriologia. E mais, essa junção interdisciplinar é uma teoria coerente e
explicativa dos fatos observados na Natureza. Aí está a genialidade de
Darwin. O gênio de Darwin foi capaz de usar uma ideia simples para
transformar o mundo, ao expor diante do de todos o porquê de vivermos em
um mundo de transformação.
Descobridores da Seleção Natural. Da esquerda para a direita: Matthew, Darwin e Wallace. Não encontrei uma imagem de Wells. |
Referências
GOULD, S. J. 2004. O Sorriso do Flamingo.2ª edição. São Paulo: Martins Fontes.
DARWIN, C. R. A Origem das Espécies. 6ª edição. São Paulo: Martin Claret.
BUCKHARDT, F. (ed.). As cartas de Charles Darwin. Uma seleta, 1825-1859. São Paulo: Unesp; Cambridge University Press, 2000.
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