|
Novo estudo lança luz sobre o mistério da origem e evolução dos pterossauros. Reconstrução de um lagerpetídeo, por Rodolfo Nogueira. |
Prefere ver o vídeo? Clique aqui!
Introdução
Até onde se sabe, os pterossauros foram os primeiros
répteis a voar ativamente. Eles surgiram no período Triássico e seus fósseis
mais antigos, também do Triássico, como o Eudimorphodon ranzii (fig. 1),
já têm aquela carona de pterossauro típico, com osso pteróide e o quarto dedo
hipertrofiado, onde se ancora a membrana alar. Assim, existe uma lacuna
morfológica bem gritante entre os primeiros pterossauros preservados no
registro fóssil e os outros répteis.
Muito por causa disso, o posicionamento dos pterossauros
na árvore da vida sempre foi motivo de muita disputa. Ao longo dos anos, foram
sugeridas diversas hipóteses de parentesco entre pterossauros e outros répteis,
mas a hipótese que ganha cada vez mais aceitação é "Hipótese Ornithodira", segundo a qual esses
animais volantes estariam mais intimamente relacionados ao grupo
Dinosauromorpha (fig. 2), que inclui os famosíssimos dinossauros e formas afins. Vale
ressaltar, contudo, que apesar do parentesco próximo, pterossauros não são
dinossauros.
|
Figura 2. Filogenia dos Arcossauros. É comum recuperar Lagerpetidae como sub-grupo de Dinosauromorpha (= [Lagerpetidae + (Silesauridae + Dinosauria)]). De Nesbitt et al. 2017. |
Nova
luz é lançada sobre o enigma
Ainda que o posicionamento próximo aos
dinossauromorfos se torne cada vez mais aceito, o fato é que a lacuna
morfológica persiste. Agora, um novo estudo por Ezcurra et al. (2020) lança luz
sobre a origem e as relações filogenéticas (= de parentesco) dos pterossauros
e, se sobreviver ao tempo e às novas descobertas, é um passo significativo na
direção do preenchimento dessa lacuna morfológica.
Os lagerpetídeos são répteis gráceis de pequeno a
médio porte, geralmente com menos de um metro de comprimento. Seus fósseis
foram encontrados em rochas do Triássico Médio e Triássico Superior da América
do Norte, América do Sul (inclusive no Brasil) e Madagascar. Por enquanto, são
conhecidos pelo menos quatro gêneros de lagerpetídeos: Dromomeron (EUA e
Argentina), Lagerpeton (Argentina), Ixalerpeton (Brasil; fig. 3)
e Kongonaphon (Madagascar).
|
Figura 3. Ixalerpeton, um lagerpetídeo brasileiro. Reconstrução: Maurício Garcia. |
Segundo o novo estudo, que fez novas observações sobre
fósseis já conhecidos, mas também trouxe detalhes de novos espécimes fósseis,
os lagerpetídeos exibem “uma combinação de características que reduz a lacuna
morfológica entre os pterossauros e outros répteis”. A seguir, algumas dessas
características são ressaltadas.
Mandíbula
e dentes
Lagerpeton
e Ixalerpeton têm dentários cuja extremidade anterior é edêntula e
pontuda, uma condição também observada em pterossauros do triássico, como Seazzadactylus
(fig. 4), Carniadactylus e Raeticodactylus, e a maioria dos silesaurídeos. Alguns dentes dos
lagerpetídeos têm coroas dentárias com três cúspides, sendo a cúspide central a
mais desenvolvida. Dentes com múltiplas cúspides são raros em arcossauriformes,
mas além dos lagerpetídeos, ocorrem também em vários dos mais antigos
pterossauros, como o Austriadraco (fig. 5).
|
Figura 4. Dentários. A - Dromomeron, B - Seazzadactylus. Modificado a partir de Ezcurra et al. 2020. |
Um outro exemplo de arcossauriforme cujos dentes são
multicuspados é o gênero Longobardisaurus, que é da linhagem dos répteis
tanistrofeídeos, que no novo estudo foram recuperados como parentes
consideravelmente distantes dos lagerpetídeos e pterossauros. Os dentes com
múltiplas cúspides desse gênero, portanto, deve-se ao fenômeno da convergência
evolutiva.
|
Figura 5. Dentes. Lagerpetídeo: Ixalerpeton; pterossauro: Austriadraco. Modificado a partir de Ezcurra et al. 2020. |
Encéfalo
“Intermediário”
Por meio de tomografia computadorizada, foram
construídos modelos dos encéfalos de Dromomeron gregorii e Ixalerpeton.
O que isso revelou é que os flóculos cerebelares desses lagerpetídeos eram
relativamente bem desenvolvidos, projetando-se póstero-lateralmente, ao mesmo
tempo em que afunilam nesse mesmo sentido. Essa condição é semelhante aos lobos
floculares ainda mais desenvolvidos dos pterossauros (fig. 6).
|
Figura 6. Modelo dos encéfalos de um lagerpetídeo (Dromomeron gregorii) e um pterossauro (Allkaruen). Modificado a partir de Ezcurra et al. 2020. |
Há uma conexão entre os flóculos e a coordenação da
movimentação dos olhos, cabeça e pescoço. Para os pterossauros, foi proposto
que o aumento dos flóculos está correlacionado com o voo, pois seria importante
no processamento de informação relacionada a essa capacidade. Se esse for o
caso, os flóculos aumentados dos lagerpetídeos indicam que, pelo menos incialmente,
o aumento dessas estruturas não se deu devido ao voo.
Enquanto os flóculos eram bem desenvolvidos nos
pterossauros, os bulbos olfativos eram pouco desenvolvidos, refletindo em uma
olfação mais limitada. Os lagerpetídeos, por outro lado, mantiveram a condição
ancestral dos arcossauromorfos, ou seja, sem redução dos bulbos olfativos.
Portanto, pode-se dizer que os lagerpetídeos tem uma neuroanatomia que é de
certa forma intermediária entre pterossauros e outros arcossauriformes do Triássico.
Ouvido
Interno
A conformação do ouvido interno, isto é, a disposição
e morfologia dos canais semicirculares, que detectam o movimento da cabeça, é
bastante similar em lagerptetídeos e pterossauros (fig. 7). O canal
semicircular anterior é fortemente curvado em ambos os grupos. Em primatas e
aves, sabe-se que um canal semicircular anterior com curvatura mais forte
melhora o equilíbrio. Em se tratando de fósseis, essa conformação pode indicar
uma relação com o ambiente arbóreo, formas ágeis de locomoção terrestre e movimentos
rápidos, bem como organismos planadores ou voadores.
|
Figura 7. Labirintos do ouvido interno, vista lateral. Pseudosúquio: Arizonasaurus; lagerpetídeo: Dromomeron gregorii; pterossauro: Allkaruen. Moficada a partir de Ezcurra et al. 2020. Nota: os pseudosúquios são da grande linhagem Pseudosuchia, que inclui os crocodilianos.
|
A
pelve
Na pelve dos lagerpetídeos Lagerpeton e Ixalerpeton,
púbis e ísquio fazem um considerável contato, que se estende ventralmente até o
nível da margem anteroventral do púbis, formando o que se chamada tecnicamente
de placa pubo-isquiática. O mesmo se observa nos pterossauros mais antigos
(fig. 8), como Austriadraco, Peteinosaurus, que são do Triássico,
mas também no Dimorphodon, um gênero do Jurássico.
|
Figura 8. Pelves de lagerpetídeos e pterossauros. Lagerpetídeo: Lagerpeton chanarensis; pterossauro: Dimorphodon macronyx. Modificada a partir de Ezcurra et al. 2020. |
Um
salto na árvore da vida
Esses foram apenas alguns exemplos das 33
características que o estudo encontrou como sendo uma combinação que une
Lagerpetidae a Pterosauria dentro da linhagem Pterosauromorpha. Embora o estudo
ressalte que continuamos com uma carência de dados no que diz respeito à
evolução de estruturas relacionadas ao voo dos pterossauros, a garra manual de pelo
menos um lagerpetídeo (Dromomeron romeri) é fortemente curvada,
sugerindo que os membros anteriores não eram usados meramente na locomoção
terrestre, mas podem ter facilitado a escalada (de árvores, por exemplo) e auxiliado
na captura presas.
O quadro geral que se pode pintar dos lagerpetídeos
segundo o novo estudo é o seguinte: eram pequenos predadores gráceis, ágeis,
com um senso de equilíbrio melhorado e possivelmente com hábitos arborícolas,
embora seja difícil dizer quanto tempo eles dispendiam vivendo em árvores.
É importante ressaltar que, ao contrário do que é tentador
concluir, os lagerpetídeos não eram ancestrais diretos dos pterossauros (fig.
9). Assim como o chimpanzé moderno não é nosso ancestral. Contudo, é bem
possível que a partir do conhecimento da anatomia e ecologia dos lagerpetídeos,
possamos ter uma ideia melhor de como eram e se comportavam os ancestrais não-voadores
dos pterossauros.
|
Figura 9. Filogenia proposta por Ezcurra et al. 2020. Veja que Lagerpetidae é o grupo-irmão de Pterosauria. Ornithodira = Pterosauromorpha + Dinosauromorpha. De Ezcurra et al. 2020. |
O enigma da origem dos pterossauros ainda não foi
desvendado, no sentido de que ainda não temos aqueles fósseis que estão mais
próximos dos animais voadores, mas ainda assim não tão distante dos
completamente terrestres. Entretanto, esse estudo, se consolidado, é um passo
importante. Um pequeno passo para um pterossauro, mas um grande salto para os
lagerpetídeos, certamente. Um salto nos galhos da árvore da vida. Um salto em
nosso conhecimento sobre eles.
O roteiro desse post foi revisado pelo paleontólogo Maurício Garcia, a quem eu agradeço pelos comentários e sugestões.
O
artigo:
EZCURRA,
M. D. et al. Enigmatic dinosaur precursors bridge the
gap to the origin of Pterosauria. Nature.
Artigo
discutindo neuroanatomia de pterossauros:
Witmer,
L. M., Chatterjee, S., Franzosa, J., & Rowe, T. (2003). Neuroanatomy
of flying reptiles and implications for flight, posture and behaviour. Nature, 425(6961), 950.
Vídeo
do canal Coelho Pré-Cambriano sobre o artigo anterior:
https://www.youtube.com/watch?v=Q_l08MmpJnQ
Uma
discussão da neuroanatomia dos pterossauros também pode ser lida em:
Witton,
M. P. (2013). Pterosaurs: natural history, evolution, anatomy. Princeton University Press.
Post
no blog dos Colecionadores de Ossos sobre o novo artigo:
https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2020/12/09/a-origem-dos-pterossauros/
Live
no canal Coelho Pré-Cambriano sobre o tema:
https://youtu.be/R61alVyYxfA
Live
dos Colecionadores de Ossos com o Mario Bronzati, um dos autores do estudo:
https://youtu.be/a5xh4rWSco4
Vídeo "O Enigma dos Pterossauros":
https://www.youtube.com/watch?v=4x-gIU-DEtA