quinta-feira, 25 de maio de 2023

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecular, mas por motivos de "não dá para acompanhar tudo", precisei definir o meu foco. Escolhi a paleontologia e não me arrependo (muito). 

Mas é com grande felicidade que eu vou gastar minha engergia lendo este livro (finalmente) publicado recentemente — What's in your genome? 90% of your genome is junk (livre tradução: O que há no seu genoma? 90% do seu genoma é lixo). Aceito de presente, inclusive. Laurence Moran administra e publica há anos no blog Sandwalk, onde aprendi muito sobre biologia molecular e evolutiva, bem como sobre Junk DNA




Foi lá que, felizmente, eu fui ensinado de que ao contrário do que muitos pensam e professam (literalmente, pois eu já ouvi de vários professores algo como "Junk DNA é coisa do passado"), a ideia de que os genomas carregam neles grandes quantidades de DNA sem função biológica, vai muito bem das pernas. 

Desapontando inúmeros artigos, populares e técnicos, há muitas razões para que os genomas carregem consigo esses elementos não-funcionais. Na verdade, estranho seria se não o fizessem. Assim como Larry tem feito em seu blog ao longo dos anos, ele defende nesse livro quais os motivos pelos quais ele, e muitos outros estudiosos, defendem a existência e prevalência do Junk DNA

Confira o sumário:

1 Introducing Genomes
2 The Evolution of Sloppy Genomes
3 Repetitive DNA and Mobile Genetic Elements
4 Why Don’t Mutations Kill Us?
5 The Big Picture
6 How Many Genes? How Many Proteins?
7 Gene Families and the Birth and Death of Genes
8 Noncoding Genes and Junk RNA
9 The ENCODE Publicity Campaign
10 Turning Genes On and Off
11 Zen and the Art of Coping with a Sloppy Genome

Mal posso esperar para ler. Talvez eu até compartilhe um pouco com vocês. Acho lamentável como as pessoas leigas, ou até mesmo não tão leigas assim, caíram no conto dos que negam o Junk DNA. Um dos principais motivos é a educação ruim em biologia evolutiva, frenquentemente reduzida a uma visão adaptacionista. Encerro com as palavras de Larry Moran no Prefácio:

There is no simple way to explain evolution correctly, but there are many simple ways to explain it badly.

Não há forma simples de explicar evolução corretamente, mas há muitas formas simples de explicá-la mal. 


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O Escocês Que Venceu Darwin - O Sombreado Patrick Matthew

 


Prefere vídeo? Clique aqui! Mas saiba que o vídeo é uma adaptação e não inclui tudo que está no texto abaixo. 

Uma das mais revolucionárias ideias de todos os tempos é a teoria da seleção natural. A história padrão conta que Darwin viajou a bordo do Beagle e logo após retornar já começou a considerar seriamente a possibilidade da evolução biológica. Por volta de 1838 Darwin chegou à teoria da seleção natural. Vinte anos depois ele recebeu uma carta de Alfred Wallace, na qual viu esboçadas suas ideias sobre evolução por seleção natural. Darwin e Wallace tiveram suas ideias brevemente comunicadas à Sociedade Lineana em 1858 e no ano seguinte foi publicado A Origem das Espécies. 

O que pouca gente lembra ou sabe é que ainda em 1831 um escocês chamado Patrick Matthew publicou um livro sobre madeira naval e arboricultura no qual havia um apêndice que antecipava as ideias de Darwin e Wallace sobre um processo natural de seleção. Matthew escreveu:

 

Existe uma lei natural universal na natureza, que tende a tornar cada ser reprodutor o mais adequado para sua condição. . . Como o campo da existência é limitado e previamente ocupado, apenas os indivíduos mais resistentes, mais robustos, mais adequados às circunstâncias, são capazes de lutar até a maturidade... o mais fraco, menos adequado às circunstâncias, sendo destruído prematuramente. Este princípio está em constante ação, regula a cor, a forma, as capacidades e os instintos; aqueles indivíduos cuja cor ou cobertura são mais adequadas para ocultação ou proteção contra inimigos, ou defesa contra vicissitudes e inclemências do clima, cuja compleição é melhor adaptada à saúde, força, defesa e suporte; cujas capacidades e instintos podem melhor regular as energias físicas para o benefício próprio de acordo com as circunstâncias – em tal imenso desperdício de vida primária e juvenil, aquelas só vêm a maturidade a partir da provação estrita pela qual a Natureza testa sua adaptação a seu padrão de perfeição e aptidão para continuar seu tipo por meio da reprodução. . .

 

Quando foi publicado, o livro de Matthew não causou nenhum reboliço. É como se o pequeno publicou que leu aquele apêndice em um livro sobre madeira naval e arboricultura não estivesse preparado para entender as implicações das ideias de Matthew. Gould chegou a argumentar que talvez nem o próprio Matthew reconheceu de fato o poder de sua cria intelectual. Mas depois da publicação de A Origem das Espécies, o interesse na seleção natural explodiu e Patrick Matthew escreveu ao Gardener’s Chronicle reivindicando a prioridade sobre a seleção natural.

Darwin respondeu à reivindicação, reconhecendo que “o Sr. Matthew antecipou em vários anos a explicação que ofereci da origem das espécies sob o nome de seleção natural”, porém ressaltando “que não será motivo de surpresa para ninguém que nem eu, nem, aparentemente, qualquer outro naturalista, tenha ouvido falar dos pareceres do Sr. Matthew, considerando-se a brevidade com que são expostos e o fato de terem surgido no apêndice de uma obra sobre madeira para construção naval e arboricultura.” Na terceira edição de sua grande obra, Darwin comenta sobre Matthew: “ele vislumbrou claramente toda a força do princípio da seleção natural”.

Talvez com um pouco de falta de humildade, Patrick Matthew contou sobre como chegou a conceber um processo natural de seleção:

 

A concepção dessa lei da Natureza veio intuitivamente como um fato autoevidente, quase sem esforço de concentrada reflexão... foi por uma visão geral do esquema da Natureza que eu estimei a produção de espécies como um fato reconhecível a priori.

 

Existe uma diferença importante entre Darwin e Matthew. Enquanto o primeiro era um discípulo fiel do uniformitarismo de Charles Lyell, o segundo era adepto do Catastrofismo Cuveriano, um conjunto de ideias de que a história da Terra foi pontuada por violentas revoluções sucessivas que tiveram impactos repentinos e drásticos na vida marinha e terrestre. Tais desastres repentinos seriam a causa da extinção das espécies que viviam nos períodos de estabilidade entre uma revolução e outra.

Para Matthew a extinções eram um componente importantíssimo da evolução. Uma vez que esses eventos reduziram drasticamente a diversidade, “um campo inocupado seria formado para novas e divergentes ramificações da vida”. Após essa diversificação, haveria, como já pontuado, estabilidade, que seria inclusive preservada do registro fóssil.

Darwin, Lyelliano que era, jamais poderia concordar. Para ele, era quase consenso que o Catastrofismo não poderia representar a realidade. Aos moldes de Lyell, seu mentor geológico, as revoluções que os catastrofistas enxergavam no registro fóssil nada mais eram do que o reflexo da incompletude desse “livro”.

Atualmente, é possível que, em se tratando da importância das extinções no processo evolutivo, estejamos mais para o lado de Matthew do que o de Darwin. Niles Eldredge afirma que Matthew possivelmente “foi o primeiro pensador a tentar realizar o que tantos de nós temos trabalhado na era moderna”, isto é, ele tentou explicar causalmente “os padrões de extinção em massa e reproliferação”. E é por isso que ele deve e merece ser lembrado.

Embora Gould tenha argumentado que Matthew não reconheceu o poder de sua teoria em sua completude, em seu pequeno e obscuro apêndice esse quase esquecido vitoriano parece ter entendido a “grandeza nessa visão da vida”:

Há mais beleza e unidade de design neste equilíbrio contínuo da vida com as circunstâncias, e maior conformidade com as disposições da natureza que se manifestam a nós, do que na destruição total e nova criação.

Pra finalizar, eu quero dizer que outra pessoa antecipou a ideia de seleção natural, até mesmo antes de Matthew. No esboço histórico que Darwin escreveu para a terceira edição d’A Origem, ele diz:

 

Em 1813, O Dr. W. C. Wells leu perante a Royal Society um ensaio “sobre uma mulher branca cuja pele, em determinados pontos, se assemelha à de uma negra”; ensaio esse que só foi publicado depois do surgimento, em 1818, de seu famoso Dois ensaios sobre o orvalho e visão única, e no qual reconhece com clareza o princípio da seleção natural, e este é o primeiro reconhecimento indicado; mas ele se refere apenas às raças humanas e a certas características em particular.

O propósito maior desse texto não foi discutir quem foi exatamente o primeiro a tropeçar no princípio da seleção natural, mas lançar luz sobre o tão sombreado legado de Patrick Matthew.

 

Para saber mais:

RAMPINO, Michael R. Darwin's error? Patrick Matthew and the catastrophic nature of the geologic record. Historical Biology, v. 23, n. 02-03, p. 227-230, 2011.

DARWIN, C. R. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray. 3d edition. Seventh thousand, 1861.

MATTHEW, Patrick. On naval timber and arboriculture: with critical notes on authors who have recently treated the subject of planting. A. Black, 1831.

ELDREDGE, Niles. Eternal ephemera: Adaptation and the origin of species from the nineteenth century through punctuated equilibria and beyond. Columbia University Press, 2015.

GOULD, Stephen Jay. The flamingo's smile: Reflections in natural history. WW Norton & Company, 1985.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

"Dimetrodon" já foi dinossauro



 

    Prefere vídeo? Então clique aqui!

    As vezes sou levado a ler artigos antigos em busca de curiosidades históricas, ou por pura necessidade de retornar a fontes antigas, para compreender ideias ou fatos cuja transmissão ao longo do tempo foi comprometida. Mas no presente caso fui guiado pela curiosidade. Eu me perguntei: quais foram as primeiras publicações que apareceram no primeiro número da revista Nature, lá em 1869? Bom, como descobri, uma série de temas foram abordados, mas nenhum me encantou mais do que uma breve contribuição paleontológica.

    Thomas H. Huxley, avô do escritor Aldous Huxley e fiel amigo de Charles Darwin, contribuiu com duas publicações no primeiro número do primeiro volume da Nature, uma delas intitulada “Dinossauros do Triássico”. É uma contribuição realmente breve, na qual Huxley relata algumas espécies que se acreditava serem de dinossauros do Triássico e ressalta a distribuição geográfica delas. Nessa mesma publicação Huxley chama os dinossauros de “elos entre répteis e aves”, mas isso não vem ao caso agora. E não tire conclusões precipitadas. 

    Das espécies mencionadas como provavelmente sendo dinossauros, hoje sabemos que muitas não são dinossauros. Na verdade, algumas estão bem longe disso. Por exemplo, Bathygnathus borealis, o segundo vertebrado fóssil nomeado da história do Canadá (Dendrerpeton acadianum, um temnospondilo, foi o primeiro).

    Trata-se da ponta de um focinho (fig. 1) que foi coletada Ilha do Príncipe Eduardo, Canadá, em 1845, em estratos que hoje são atribuídos ao período Permiano. A espécie foi formalmente nomeada em 1853 pelo paleontólogo Joseph Leidy, que finalmente descreveu o material no ano seguinte, erroneamente interpretando o fóssil como parte do osso dentário (um osso da mandíbula) de algum réptil bípede. Posteriormente, Bathygnathus foi considerado um dinossauro, inclusive pelo próprio Leidy.


Figura 1. Holótipo de "Bathygnathus" borealis (ver discussão abaixo, no texto). De Brink et al. 2015.


    Em 1876, o insigne e por vezes infame anatomista Richard Owen reinterpretou o fóssil, argumentando que se tratava, na verdade, de um focinho parcialmente preservado (hoje sabemos que ele estava certo) e que não era um dinossauro, mas um sinápsido teriodonte. Owen errou na atribuição taxonômica, mas estava quase lá. No começo do século 20, paleontólogos reconheceram que é um focinho parcial de um sinápsido esfenacodontídeo. Você conhece um esfenacodontídeo, quer apostar? Por exemplo, Dimetrodon.

    Resumindo o que sabemos até esse ponto do texto: Bathygnathus borealis foi um sinápsido esfenacodontídeo e, portanto, foi um parente mais próximo do Dimetrodon e dos outros sinápsidos (incluindo nós, mamíferos) do que dos dinossauros. Mas essa história não para por aí...

      Em 2015 um grupo de pesquisadores canadenses resolveu reavaliar o fóssil. O que eles encontraram foi bem interessante. Uma série de características, principalmente as dos dentes, fizeram com que a análise filogenética (i.e., parentesco) realizada pelos pesquisadores recuperasse a espécie Bathygnathus borealis como sendo membro de um clado formado pelas espécies de Dimetrodon.  Mais ainda, trata-se de um espécie válida e seria a espécie-irmã de Dimetrodon grandis (fig. 2).


Figura 2. Filogenia, posicionamento da espécie "Bathygnathus" borealis. Note que B. borealis se localiza bem aninhada no grupo formado exclusivamente pelas espécies do gênero Dimetrodon. De Brink et al. 2015.  

 

    Se Bathygnathus é do mesmo gênero Dimetrodon, como as análises sugerem, então deveria ter prioridade taxonômica, já que Dimetrodon só foi nomeado em 1878. Assim, Dimetrodon seria um sinônimo júnior de Bathygnathus. Ou seja, tudo o que foi descrito como sendo Dimetrodon deveria ser atribuído a Bathygnathus. Momentos de tensão...

    Entretanto, como Dimetrodon é um nome amplamente utilizado, tanto na literatura especializada quanto na popular, os autores defenderam perante a Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN) que é melhor dar preferência ao gênero Dimetrodon e, portanto, rebatizaram a espécie com a nova combinação Dimetrodon borealis. Em 2019 a ICZN atendeu ao pedido dos autores, declarando que “o nome genérico Dimetrodon” foi conservado e foi dada “precedência a ele sobre o seu subjetivo sinônimo sênior Bathygnathus”. Ufa!  

    Então, é isso. Bathygnathus borealis dá tchauzinho, Dimetrodon borealis diz “olá” (fig. 3). E assim a ciência nos provê algo talvez irônico. É de comum conhecimento (embora não tão comum quanto o desejado) que Dimetrodon não é um gênero de dinossauro (veja esse vídeo do canal The Mingau); os Dimetrodon estão muito mais relacionados aos mamíferos do que aos dinossauros. Não são dinossauros nem de longe, nem de perto. Contudo, como Bathygnathus é Dimetrodon e o primeiro já foi considerado um dinossauro, então por algum tempo um fóssil de Dimetrodon foi considerado dinossauro!


Figura 3. Dimetrodon borealis. Por Danielle Dufault. Imagem aqui


 

Para saber mais:

HUXLEY, T. Triassic Dinosauria. Nature 1, 23–24 (1869). https://doi.org/10.1038/001023a0

BRINK, Kirstin S. et al. Re-evaluation of the historic Canadian fossil Bathygnathus borealis from the Early Permian of Prince Edward Island. Canadian Journal of Earth Sciences, v. 52, n. 12, p. 1109-1120, 2015.

INTERNATIONAL COMMISSION ON ZOOLOGICAL NOMENCLATURE. Opinion 2446 (Case 3695)–Dimetrodon Cope, 1878 (Synapsida, Sphenacodontidae): name conserved. The Bulletin of Zoological Nomenclature, v. 76, n. 1, p. 200-201, 2019.


 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Os Irmãos Perdidos dos Pterossauros – Foram Encontrados?

 

Novo estudo lança luz sobre o mistério da origem e evolução dos pterossauros. Reconstrução de um lagerpetídeo, por Rodolfo Nogueira. 

Prefere ver o vídeo? Clique aqui!

Introdução

Até onde se sabe, os pterossauros foram os primeiros répteis a voar ativamente. Eles surgiram no período Triássico e seus fósseis mais antigos, também do Triássico, como o Eudimorphodon ranzii (fig. 1), já têm aquela carona de pterossauro típico, com osso pteróide e o quarto dedo hipertrofiado, onde se ancora a membrana alar. Assim, existe uma lacuna morfológica bem gritante entre os primeiros pterossauros preservados no registro fóssil e os outros répteis.


Figura 1. Holótipo do pterossauro do Triássico Eudimorphodon ranziiBy Tommy from Arad - Eudimorphodon Uploaded by FunkMonk, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=28413946.


Muito por causa disso, o posicionamento dos pterossauros na árvore da vida sempre foi motivo de muita disputa. Ao longo dos anos, foram sugeridas diversas hipóteses de parentesco entre pterossauros e outros répteis, mas a hipótese que ganha cada vez mais aceitação é "Hipótese Ornithodira", segundo a qual esses animais volantes estariam mais intimamente relacionados ao grupo Dinosauromorpha (fig. 2), que inclui os famosíssimos dinossauros e formas afins. Vale ressaltar, contudo, que apesar do parentesco próximo, pterossauros não são dinossauros.


Figura 2. Filogenia dos Arcossauros. É comum recuperar Lagerpetidae como sub-grupo de Dinosauromorpha (= [Lagerpetidae + (Silesauridae + Dinosauria)]). De Nesbitt et al. 2017.


Nova luz é lançada sobre o enigma

Ainda que o posicionamento próximo aos dinossauromorfos se torne cada vez mais aceito, o fato é que a lacuna morfológica persiste. Agora, um novo estudo por Ezcurra et al. (2020) lança luz sobre a origem e as relações filogenéticas (= de parentesco) dos pterossauros e, se sobreviver ao tempo e às novas descobertas, é um passo significativo na direção do preenchimento dessa lacuna morfológica.

Os lagerpetídeos são répteis gráceis de pequeno a médio porte, geralmente com menos de um metro de comprimento. Seus fósseis foram encontrados em rochas do Triássico Médio e Triássico Superior da América do Norte, América do Sul (inclusive no Brasil) e Madagascar. Por enquanto, são conhecidos pelo menos quatro gêneros de lagerpetídeos: Dromomeron (EUA e Argentina), Lagerpeton (Argentina), Ixalerpeton (Brasil; fig. 3) e Kongonaphon (Madagascar).

 

Figura 3. Ixalerpeton, um lagerpetídeo brasileiro. Reconstrução: Maurício Garcia.


Segundo o novo estudo, que fez novas observações sobre fósseis já conhecidos, mas também trouxe detalhes de novos espécimes fósseis, os lagerpetídeos exibem “uma combinação de características que reduz a lacuna morfológica entre os pterossauros e outros répteis”. A seguir, algumas dessas características são ressaltadas.

 

Mandíbula e dentes

Lagerpeton e Ixalerpeton têm dentários cuja extremidade anterior é edêntula e pontuda, uma condição também observada em pterossauros do triássico, como Seazzadactylus (fig. 4), Carniadactylus e Raeticodactylus, e a maioria dos silesaurídeos. Alguns dentes dos lagerpetídeos têm coroas dentárias com três cúspides, sendo a cúspide central a mais desenvolvida. Dentes com múltiplas cúspides são raros em arcossauriformes, mas além dos lagerpetídeos, ocorrem também em vários dos mais antigos pterossauros, como o Austriadraco (fig. 5).

Figura 4. Dentários. A - Dromomeron, B - Seazzadactylus. Modificado a partir de Ezcurra et al. 2020.


Um outro exemplo de arcossauriforme cujos dentes são multicuspados é o gênero Longobardisaurus, que é da linhagem dos répteis tanistrofeídeos, que no novo estudo foram recuperados como parentes consideravelmente distantes dos lagerpetídeos e pterossauros. Os dentes com múltiplas cúspides desse gênero, portanto, deve-se ao fenômeno da convergência evolutiva.


Figura 5. Dentes. Lagerpetídeo: Ixalerpeton; pterossauro: Austriadraco. Modificado a partir de Ezcurra et al. 2020.

 

Encéfalo “Intermediário”

Por meio de tomografia computadorizada, foram construídos modelos dos encéfalos de Dromomeron gregorii e Ixalerpeton. O que isso revelou é que os flóculos cerebelares desses lagerpetídeos eram relativamente bem desenvolvidos, projetando-se póstero-lateralmente, ao mesmo tempo em que afunilam nesse mesmo sentido. Essa condição é semelhante aos lobos floculares ainda mais desenvolvidos dos pterossauros (fig. 6).


Figura 6. Modelo dos encéfalos de um lagerpetídeo (Dromomeron gregorii) e um pterossauro (Allkaruen). Modificado a partir de Ezcurra et al. 2020.

Há uma conexão entre os flóculos e a coordenação da movimentação dos olhos, cabeça e pescoço. Para os pterossauros, foi proposto que o aumento dos flóculos está correlacionado com o voo, pois seria importante no processamento de informação relacionada a essa capacidade. Se esse for o caso, os flóculos aumentados dos lagerpetídeos indicam que, pelo menos incialmente, o aumento dessas estruturas não se deu devido ao voo.

Enquanto os flóculos eram bem desenvolvidos nos pterossauros, os bulbos olfativos eram pouco desenvolvidos, refletindo em uma olfação mais limitada. Os lagerpetídeos, por outro lado, mantiveram a condição ancestral dos arcossauromorfos, ou seja, sem redução dos bulbos olfativos. Portanto, pode-se dizer que os lagerpetídeos tem uma neuroanatomia que é de certa forma intermediária entre pterossauros e outros arcossauriformes do Triássico.

 

Ouvido Interno

A conformação do ouvido interno, isto é, a disposição e morfologia dos canais semicirculares, que detectam o movimento da cabeça, é bastante similar em lagerptetídeos e pterossauros (fig. 7). O canal semicircular anterior é fortemente curvado em ambos os grupos. Em primatas e aves, sabe-se que um canal semicircular anterior com curvatura mais forte melhora o equilíbrio. Em se tratando de fósseis, essa conformação pode indicar uma relação com o ambiente arbóreo, formas ágeis de locomoção terrestre e movimentos rápidos, bem como organismos planadores ou voadores.


Figura 7. Labirintos do ouvido interno, vista lateral. Pseudosúquio: Arizonasaurus; lagerpetídeo: Dromomeron gregorii; pterossauro: Allkaruen. Moficada a partir de Ezcurra et al. 2020. Nota: os pseudosúquios são da grande linhagem Pseudosuchia, que inclui os crocodilianos.


A pelve

Na pelve dos lagerpetídeos Lagerpeton e Ixalerpeton, púbis e ísquio fazem um considerável contato, que se estende ventralmente até o nível da margem anteroventral do púbis, formando o que se chamada tecnicamente de placa pubo-isquiática. O mesmo se observa nos pterossauros mais antigos (fig. 8), como Austriadraco, Peteinosaurus, que são do Triássico, mas também no Dimorphodon, um gênero do Jurássico.


Figura 8. Pelves de lagerpetídeos e pterossauros. Lagerpetídeo: Lagerpeton chanarensis; pterossauro: Dimorphodon macronyx. Modificada a partir de Ezcurra et al. 2020.

 

Um salto na árvore da vida

Esses foram apenas alguns exemplos das 33 características que o estudo encontrou como sendo uma combinação que une Lagerpetidae a Pterosauria dentro da linhagem Pterosauromorpha. Embora o estudo ressalte que continuamos com uma carência de dados no que diz respeito à evolução de estruturas relacionadas ao voo dos pterossauros, a garra manual de pelo menos um lagerpetídeo (Dromomeron romeri) é fortemente curvada, sugerindo que os membros anteriores não eram usados meramente na locomoção terrestre, mas podem ter facilitado a escalada (de árvores, por exemplo) e auxiliado na captura presas. 

O quadro geral que se pode pintar dos lagerpetídeos segundo o novo estudo é o seguinte: eram pequenos predadores gráceis, ágeis, com um senso de equilíbrio melhorado e possivelmente com hábitos arborícolas, embora seja difícil dizer quanto tempo eles dispendiam vivendo em árvores.

É importante ressaltar que, ao contrário do que é tentador concluir, os lagerpetídeos não eram ancestrais diretos dos pterossauros (fig. 9). Assim como o chimpanzé moderno não é nosso ancestral. Contudo, é bem possível que a partir do conhecimento da anatomia e ecologia dos lagerpetídeos, possamos ter uma ideia melhor de como eram e se comportavam os ancestrais não-voadores dos pterossauros.


Figura 9. Filogenia proposta por Ezcurra et al. 2020. Veja que Lagerpetidae é o grupo-irmão de Pterosauria. Ornithodira = Pterosauromorpha + Dinosauromorpha. De Ezcurra et al. 2020.


O enigma da origem dos pterossauros ainda não foi desvendado, no sentido de que ainda não temos aqueles fósseis que estão mais próximos dos animais voadores, mas ainda assim não tão distante dos completamente terrestres. Entretanto, esse estudo, se consolidado, é um passo importante. Um pequeno passo para um pterossauro, mas um grande salto para os lagerpetídeos, certamente. Um salto nos galhos da árvore da vida. Um salto em nosso conhecimento sobre eles.



O roteiro desse post foi revisado pelo paleontólogo Maurício Garcia, a quem eu agradeço pelos comentários e sugestões. 


O artigo:

EZCURRA, M. D. et al. Enigmatic dinosaur precursors bridge the gap to the origin of Pterosauria. Nature.

 

Artigo discutindo neuroanatomia de pterossauros:

Witmer, L. M., Chatterjee, S., Franzosa, J., & Rowe, T. (2003). Neuroanatomy of flying reptiles and implications for flight, posture and behaviour. Nature, 425(6961), 950.

 

Vídeo do canal Coelho Pré-Cambriano sobre o artigo anterior:

https://www.youtube.com/watch?v=Q_l08MmpJnQ

 

Uma discussão da neuroanatomia dos pterossauros também pode ser lida em:

Witton, M. P. (2013). Pterosaurs: natural history, evolution, anatomy. Princeton University Press.

 

Post no blog dos Colecionadores de Ossos sobre o novo artigo:

https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2020/12/09/a-origem-dos-pterossauros/

 

Live no canal Coelho Pré-Cambriano sobre o tema:

https://youtu.be/R61alVyYxfA

 

Live dos Colecionadores de Ossos com o Mario Bronzati, um dos autores do estudo:

https://youtu.be/a5xh4rWSco4


Vídeo "O Enigma dos Pterossauros":

https://www.youtube.com/watch?v=4x-gIU-DEtA

 

sábado, 28 de novembro de 2020

Paleontólogo identifica possível dinossauro terópode do triássico brasileiro

 


Capa. Erythrovenator jacuiensis caçando um cinodonte, por Márcio L. Castro.

Os estratos do Triássico Superior do Brasil são verdadeiros monumentos da história evolutiva inicial dos dinossauros, pois lá são encontrados alguns dos mais antigos dinossauros do mundo. No Brasil, há considerável diversidade de sauropodomorfos do Triássico Superior. Por outro lado, a situação é bem mais precária para os terópodes. O Nhamdumirim waldsangae é considerado por alguns autores como sendo um terópode do Carniano (uma idade da época Triássico Superior, ~237 a ~227 milhões de anos atrás), mas outros discordam, argumentando que se trata, na verdade, de um sauropodomorfo. Da idade seguinte, Noriano (~227 a 208.5 milhões de anos atrás), talvez Guaibasaurus candelariensis seja um terópode, mas não há consenso. Ele já foi, por exemplo, recuperado como sendo um sauropodomorfo. Há outro material possivelmente de terópode Noriano; uma porção distal de fêmur esquerdo.


Figura 1. Sítio Niemeyer, por Janaína Brand-Dillmann.  


É nesse contexto que entra em cena mais uma contribuição do paleontólogo do CAPPA/UFSM, Rodrigo T. Müller. Nesse novo artigo, Müller descreveu e analisou a posição filogenética de um espécime fragmentário de dinossauromorfo (que já havia sido brevemente descrito e discutido na literatura; ver Pavanatto et al, 2018) particularmente interessante. Trata-se de uma porção proximal de fêmur (o esquerdo, no caso), provavelmente do Noriano, embora uma idade Carniana não possa ser descartada. O material foi coletado no Sítio Niemeyer (fig. 1), no município de Agudo, Rio Grande do Sul, Brasil. Embora muito fragmentário, o estudo atribui o material a uma nova espécie de dinossauro terópode, que foi batizada de Erythrovenator jacuiensis (capa, acima).


Figura 2Erythrovenator jacuiensis, o "caçador vermelho do Rio Jacuí", por Márcio L. Castro.

O nome genérico, “Erythrovenator”, significa “caçador vermelho/avermelhado”. O adjetivo vermelho/avermelhado foi escolhido por causa do tom avermelhado do holótipo (= espécime com base no qual a espécie foi descrita e nomeada). O epíteto “jacuiensis” é uma referência ao Rio Jacuí, cujo curso passa por Agudo. O “caçador vermelho do Rio Jacuí” teria cerca de 2 metros de comprimento e 9 quilogramas (fig. 2). Embora não conheçamos dentes ou material craniano dessa espécia, como os dinossauros terópodes mais primitivos eram carnívoros, supõe-se que o Erythrovenator jacuiensis também se alimentava de carne.


Figura 3. Fotografias, scans 3D e desenhos esquemáticos da porção proximal do fêmur esquerdo do holótipo de Erythrovenator jacuiensis em vistas (A) anterior, (B) lateral, (C) proximal, (D) medial, (E) posterior. A abreviação "at" indica o trocânter anterior. Figura 2 de Müller (2020, p. 3).   

E o que sugere que seja um terópode? Erythrovenator tem um trocânter anterior bem desenvolvido. A porção proximal desse trocânter (fig. 3) é triangular em vista anterior (algo tipicamente presente nos dinossauros neoterópodes). Adicionalmente, a porção proximal do trocânter anterior se separa do corpo do fêmur por uma fenda bem marcada (fig. 4), como no caso dos dinossauros terópodes (mas também alguns silessaurídeos). Diz-se, portanto, que um trocânter anterior com essa conformação tem forma piramidal. Nos sauropodomorfos, como Saturnalia e Pampadromaeus, a ponta proximal do trocânter anterior se separa do corpo do fêmur por uma fenda menos expressiva, isso quando a conexão com o corpo não é completa. O trocânter anterior se estende medialmente, formando uma plataforma, unicamente presente em terópodes. A análise filogenética corrobora a inclusão da nova espécie dentro de Theropoda. Os valores estatísticos que dão suporte a essa hipótese, contudo, são relativamente baixos.


Figura 4. Vistas mediais de fêmures de dinossauriformes selecionados. A - Erythrovenator jacuiensis; B - Syntarsus kayentakatae; C - Dilophosaurus wetherilli; D - Buriolestes schultzi; E - Saturnalia tupiniquim; F - Pampadromaeus barberenai. Abreviações importantes: at, trocânter anterior; c, fenda. O corpo do fêmur é a parte longa, da qual se preservou apenas a porção proximal (isto é, mais próxima da pelve/bacia). Figura 3 de Müller (2020, p. 4). 


Müller encerra sua contribuição ressaltando que “o reconhecimento de potenciais sinapomorfias [dos terópodes], como um trocânter anterior com forma piramidal, nos ajuda a identificar espécimes fragmentários em níveis menos inclusivos, lançando luz sobre as nossas mais antigas faunas de dinossauros.”

 

Para saber mais:

Rodrigo T. Müller. A new theropod dinosaur from a peculiar Late Triassic assemblage of southern Brazil, Journal of South American Earth Sciences, 2020, 103026, ISSN 0895-9811. https://doi.org/10.1016/j.jsames.2020.103026.

PAVANATTO, Ane Elise Branco et al. A new Upper Triassic cynodont-bearing fossiliferous site from southern Brazil, with taphonomic remarks and description of a new traversodontid taxon. Journal of South American Earth Sciences, v. 88, p. 179-196, 2018.

 

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Dinossauros contra a evolução – Owen vs. Lamarck

As evidências da descendência com modificação e ampla ancestralidade comum da vida são, além de numerosas, poderosas. A paleontologia de dinossauros, por exemplo, fornece um conjunto robusto de fatos que sustentam muito bem a evolução. Quando eu preciso tentar convencer alguém sobre a possibilidade de evolução em grande escala, quase sempre me volto ao que é um dos maiores triunfos da paleontologia de vertebrados das últimas décadas: o estabelecimento do fato que as aves são dinossauros viventes.


Figura 1. Megalosaurus do Crystal Palace. Escultura de Benjamim Waterhouse Hawkins. By www.CGPGrey.com, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=708630.


O que eu não sabia é que ao erigir o grupo Dinosauria em 1842, Richard Owen (fig. 2), um grande anatomista da Era Vitoriana e um dos maiores rivais de Charles Darwin, não meramente declarou uma proposta taxonômica. Ele usou os dinossauros contra as ideias transmutacionistas da época, especialmente as ideias de Robert Grant, que muito admirava e também defendia o transmutacionismo nos moldes do que foi proposto pelo francês e historicamente injustiçado Jean-Baptiste de Lamarck.


Figura 2. Richard Owen com um crânio de crocodilo, 1856. By Maull & Polyblank - Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7899253.


Quando os primeiros dinossauros foram descritos, Megalosaurus (por Buckland, 1824) e Iguanodon (por Gideon Mantell, 1825), ainda sem serem reconhecidos como “dinossauros”, evidentemente, eles foram concebidos como sendo versões gigantes de lagartos. As estimativas de comprimento foram feitas, portanto, assumindo-se as proporções típicas desses répteis. Assim, Buckland estimou que o Megalosaurus se "igualava em altura [aos] nossos maiores elefantes e, em comprimento, deve ter ficado um pouco aquém das nossas maiores baleias". Após a consideração de algumas complicações, ele chegou ao valor mais modesto de algo entre 18 e 21 metros de comprimento.

Richard Owen, desconfiado dessas estimativas assombrosas, abordou a questão de forma diferente. Empregando um método de medição das vértebras e estimativa do número total delas com base em crocodilianos e lagartos, Owen reduziu a estimativa de comprimento: Megalosaurus, por exemplo, teria, segundo Owen, cerca de 9 metros. E essa não foi a única modificação. Owen deu um ar mais mamaliano aos dinossauros, em termos de proporções e até anatomia: ao invés de imaginar os dinossauros com membros se projetando lateralmente (como nos lagartos), Owen adotou uma postura mais mamaliana, com os membros mais para abaixo do corpo.

O Resultado dessa revisão, pelo menos em se tratando da anatomia e da aparência, pode ser visto nas reconstruções de dinossauros do Crystal Palace (fig 1.), que foram feitas sob supervisão de Richard Owen. Percebe-se que elas têm um quê de répteis gigantes um pouco similares a mamíferos paquidermes, aos quais, inclusive, Owen fez alusão algumas vezes na descrição dos dinossauros.


Figura 3. Megalosaurus, reconstrução de Richard Owen. Imagem extraída de Desmond (1979). 


Os dinossauros de Owen, na visão dele, eram o apogeu dos répteis. Ele escreveu:

Os Megalossauros e Iguanodontes, regozijando-se com essas modificações mais perfeitas do tipo Reptiliano, atingiram a maior massa e devem ter desempenhado os papéis mais conspícuos... que este mundo já testemunhou em criaturas ovíparas e de sangue frio.

Uma vez que Owen tinha reconhecido apenas três espécies (Hylaeosaurus era a terceira) de dinossauros até então, e considerando que os espécimes eram fragmentários, é justificável pensar que Owen inferiu muito com base em tão pouco. Assim, a transformação que Owen impôs sobre os dinossauros não é simplesmente um reflexo de um melhor conhecimento dos fatos. Seja como for, os novos dinossauros, conforme Owen os concebeu, tinham o benefício de refutar o transmutacionismo Lamarckista de Robert Grant (fig. 4).


Figura 4. Robert E. Grant, 1852. By Unknown author - Desmond A. 1982. Archetypes and ancestors. p117 [1], Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4307438.


Robert Edmond Grant foi professor de Darwin em Edimburgo, quando o jovem Charles tentava, por livre e espontânea pressão paterna, uma carreira na medicina. Sobre Grant, Darwin disse em sua autobiografia:

Um dia, quando caminhávamos juntos, ele fez um discurso elogioso das ideias de Lamarck sobre a evolução. Ouvi-o com surpresa e em silêncio e, tanto quanto posso julgar, sem que aquilo surtisse efeito em minha mente.

Ao contrário do que se aprende em muito cursos, que enfatizam demais a herança dos caracteres adquiridos (inclusive atribuindo falsamente a ideia a Lamarck) e o uso e desuso, no coração das ideias transmutacionistas de Lamarck estava a organização da vida em um contínuo de complexidade, dos mais simples organismos ao homem. Robert Grant, então na University College London, comparou essa ideia central com o registro fóssil, avaliando se a história da vida era de ascensão e escalada de complexidade e perfeição ou não. Grant concluiu que “a doutrina das petrificações, mesmo em sua condição imperfeita presente, nos fornece considerações que parecem favorecer a hipótese do Sr. Lamarck.”

Os dinossauros de Owen, bem como outras instâncias do registro fóssil, refutavam essa alegação. Ora, se eles eram o apogeu da condição reptiliana e haviam existido no longínquo Mesozoico, onde está a escalada em complexidade, perfeição ou "nobreza taxonômica" que Lamarck e Grant supunham existir? Onde os trasmutacionistas diziam ver ascensão, Owen reivindicava degeneração, pois os répteis da fauna moderna não são tão "elevados" quanto os dinossauros, aqueles "terríveis lagartos" do passado distante.

Assim, a concepção dos dinossauros atestou contra a transmutação. Hoje, em se tratando da evolução nos moldes Darwinianos de ancestralidade comum e descendência com modificação, a maturidade da paleontologia de dinossauros provê o efeito oposto. Ironias da história. Não são elas um chamado para a humildade intelectual?

 

Para saber mais:

DESMOND, Adrian J. Designing the dinosaur: Richard Owen's response to Robert Edmond Grant. Isis, v. 70, n. 2, p. 224-234, 1979.

OWEN, Richard. Report on British fossil reptiles, part II. Report for the British Association for the Advancement of Science, Plymouth, v. 1841, p. 60-294, 1842.

RUPKE, Nicolaas; OWEN, Richard. Biology without Darwin, a revised edition. 2009.

DARWIN, Charles. 1882. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

 

 

 

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...