terça-feira, 22 de dezembro de 2020

"Dimetrodon" já foi dinossauro



 

    Prefere vídeo? Então clique aqui!

    As vezes sou levado a ler artigos antigos em busca de curiosidades históricas, ou por pura necessidade de retornar a fontes antigas, para compreender ideias ou fatos cuja transmissão ao longo do tempo foi comprometida. Mas no presente caso fui guiado pela curiosidade. Eu me perguntei: quais foram as primeiras publicações que apareceram no primeiro número da revista Nature, lá em 1869? Bom, como descobri, uma série de temas foram abordados, mas nenhum me encantou mais do que uma breve contribuição paleontológica.

    Thomas H. Huxley, avô do escritor Aldous Huxley e fiel amigo de Charles Darwin, contribuiu com duas publicações no primeiro número do primeiro volume da Nature, uma delas intitulada “Dinossauros do Triássico”. É uma contribuição realmente breve, na qual Huxley relata algumas espécies que se acreditava serem de dinossauros do Triássico e ressalta a distribuição geográfica delas. Nessa mesma publicação Huxley chama os dinossauros de “elos entre répteis e aves”, mas isso não vem ao caso agora. E não tire conclusões precipitadas. 

    Das espécies mencionadas como provavelmente sendo dinossauros, hoje sabemos que muitas não são dinossauros. Na verdade, algumas estão bem longe disso. Por exemplo, Bathygnathus borealis, o segundo vertebrado fóssil nomeado da história do Canadá (Dendrerpeton acadianum, um temnospondilo, foi o primeiro).

    Trata-se da ponta de um focinho (fig. 1) que foi coletada Ilha do Príncipe Eduardo, Canadá, em 1845, em estratos que hoje são atribuídos ao período Permiano. A espécie foi formalmente nomeada em 1853 pelo paleontólogo Joseph Leidy, que finalmente descreveu o material no ano seguinte, erroneamente interpretando o fóssil como parte do osso dentário (um osso da mandíbula) de algum réptil bípede. Posteriormente, Bathygnathus foi considerado um dinossauro, inclusive pelo próprio Leidy.


Figura 1. Holótipo de "Bathygnathus" borealis (ver discussão abaixo, no texto). De Brink et al. 2015.


    Em 1876, o insigne e por vezes infame anatomista Richard Owen reinterpretou o fóssil, argumentando que se tratava, na verdade, de um focinho parcialmente preservado (hoje sabemos que ele estava certo) e que não era um dinossauro, mas um sinápsido teriodonte. Owen errou na atribuição taxonômica, mas estava quase lá. No começo do século 20, paleontólogos reconheceram que é um focinho parcial de um sinápsido esfenacodontídeo. Você conhece um esfenacodontídeo, quer apostar? Por exemplo, Dimetrodon.

    Resumindo o que sabemos até esse ponto do texto: Bathygnathus borealis foi um sinápsido esfenacodontídeo e, portanto, foi um parente mais próximo do Dimetrodon e dos outros sinápsidos (incluindo nós, mamíferos) do que dos dinossauros. Mas essa história não para por aí...

      Em 2015 um grupo de pesquisadores canadenses resolveu reavaliar o fóssil. O que eles encontraram foi bem interessante. Uma série de características, principalmente as dos dentes, fizeram com que a análise filogenética (i.e., parentesco) realizada pelos pesquisadores recuperasse a espécie Bathygnathus borealis como sendo membro de um clado formado pelas espécies de Dimetrodon.  Mais ainda, trata-se de um espécie válida e seria a espécie-irmã de Dimetrodon grandis (fig. 2).


Figura 2. Filogenia, posicionamento da espécie "Bathygnathus" borealis. Note que B. borealis se localiza bem aninhada no grupo formado exclusivamente pelas espécies do gênero Dimetrodon. De Brink et al. 2015.  

 

    Se Bathygnathus é do mesmo gênero Dimetrodon, como as análises sugerem, então deveria ter prioridade taxonômica, já que Dimetrodon só foi nomeado em 1878. Assim, Dimetrodon seria um sinônimo júnior de Bathygnathus. Ou seja, tudo o que foi descrito como sendo Dimetrodon deveria ser atribuído a Bathygnathus. Momentos de tensão...

    Entretanto, como Dimetrodon é um nome amplamente utilizado, tanto na literatura especializada quanto na popular, os autores defenderam perante a Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN) que é melhor dar preferência ao gênero Dimetrodon e, portanto, rebatizaram a espécie com a nova combinação Dimetrodon borealis. Em 2019 a ICZN atendeu ao pedido dos autores, declarando que “o nome genérico Dimetrodon” foi conservado e foi dada “precedência a ele sobre o seu subjetivo sinônimo sênior Bathygnathus”. Ufa!  

    Então, é isso. Bathygnathus borealis dá tchauzinho, Dimetrodon borealis diz “olá” (fig. 3). E assim a ciência nos provê algo talvez irônico. É de comum conhecimento (embora não tão comum quanto o desejado) que Dimetrodon não é um gênero de dinossauro (veja esse vídeo do canal The Mingau); os Dimetrodon estão muito mais relacionados aos mamíferos do que aos dinossauros. Não são dinossauros nem de longe, nem de perto. Contudo, como Bathygnathus é Dimetrodon e o primeiro já foi considerado um dinossauro, então por algum tempo um fóssil de Dimetrodon foi considerado dinossauro!


Figura 3. Dimetrodon borealis. Por Danielle Dufault. Imagem aqui


 

Para saber mais:

HUXLEY, T. Triassic Dinosauria. Nature 1, 23–24 (1869). https://doi.org/10.1038/001023a0

BRINK, Kirstin S. et al. Re-evaluation of the historic Canadian fossil Bathygnathus borealis from the Early Permian of Prince Edward Island. Canadian Journal of Earth Sciences, v. 52, n. 12, p. 1109-1120, 2015.

INTERNATIONAL COMMISSION ON ZOOLOGICAL NOMENCLATURE. Opinion 2446 (Case 3695)–Dimetrodon Cope, 1878 (Synapsida, Sphenacodontidae): name conserved. The Bulletin of Zoological Nomenclature, v. 76, n. 1, p. 200-201, 2019.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DNA Lixo: a volta dos que não foram

Nos últimos tempos, quando escrevo algo, geralmente trato de paleontologia. Antes eu dedicava maior atenção ao que acontecia no mundo molecu...