Os cetáceos viventes são divididos primariamente em dois grandes grupos (Marx et al. 2016): Odontoceti (cetáceos com dentes) e Mysticeti (cetáceos sem dentes). Como cetáceos são mamíferos, se esses dois grupos descendem de um ancestral comum, como sugere a descendência com modificação, então devemos encontrar alguns indícios de que os ancestrais dos modernos misticetos tinham dentes. É esse o caso?
Embora os misticetos adultos sejam edêntulos (sem
dentes), fetos de pelo menos alguns misticetos apresentam “brotos de dentes” (Fig. 1),
que não chegam a romper as gengivas e acabam sendo degradados (Deméré et al. 2008). Essa é uma indicação
embriológica bastante interessante sobre o passado evolutivo dos misticetos. O
próprio Darwin (1859) mencionou esse fato curioso a respeito do desenvolvimento
das baleias em A Origem das Espécies.
Figura 1. Feto de baleia-comum (Balaenoptera physalus). Destaque: brotos de dentes. Imagem: Deméré et al. 2008. |
Não bastasse isso, Meredith et al. (2011) reportaram evidência
da pseudogenização de um gene (MMP20) envolvido no desenvolvimento dos dentes. Segundo
esses autores, a inserção de um retroposon nesse gene corrompeu a
informação por ele codificada, tendo implicações para a perda dos dentes. Veja
bem: o mesmo retroposon se encontra no mesmo lugar, no mesmo (pseudo)gene,
nas diferentes espécies (representativas de todos os gêneros viventes)
analisadas por esse grupo de pesquisadores. Isso só pode significar que a
inserção ocorreu no ancestral comum destes misticetos viventes. A propósito, já
tratamos desse retroposon em vídeo. Adicionalmente, vários outros genes
com atividade importante na formação dos dentes ainda existem no genoma dos misticetos, inclusive muitos sob forma de pseudogenes (Deméré et al. 2008; Meredith et al.
2009; Springer et al. 2015; ver também
Peredo et al. 2017).
E o que a paleontologia tem a dizer sobre isso? Os gêneros
Mammalodon (Pritchard 1939; Fordyce
& Marx 2016), Aetiocetus (Emlong
1966; Barnes et al. 1995) e Janjucetus (Fitzgerald 2006) são todos
exemplos de cetáceos da linhagem misticetos viventes (Marx et al. 2016, Fig. 4.8; ver a figura 2, abaixo). Ainda assim, todos eles possuíam dentes!
Figura 2. Filogenia simplificada dos misticetos com dentes e edêntulos. Imagem: Marx et al. 2016. |
A linhagem
dos misticetos não é definida exclusivamente pela perda de dentes. Os
misticetos também tem como condição ancestral a presença de cristas
basiocipitais (Marx et al. 2016, Fig.
3.4), entre outras características. Podemos ver esse tipo de crista no Janjucetus (Fitzgerald 2006, Fig. 1d). Veja a figura 3, abaixo.
Diferentes linhas de pesquisa apontam para a mesma
conclusão: os misticetos e odontocetos são parentes biológicos de fato. Evoluíram
de um ancestral comum na boca do qual eu não gostaria de pôr a mão.
Para saber mais
MARX, Felix G.; LAMBERT, Olivier; UHEN, Mark D. Cetacean paleobiology. John Wiley &
Sons, 2016.
DEMÉRÉ, Thomas A. et
al. Morphological and molecular evidence for a stepwise
evolutionary transition from teeth to baleen in mysticete whales. Systematic Biology, v. 57, n. 1, p.
15-37, 2008.
Darwin, C. R.
1859. On the origin of species by means of natural selection, or the
preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray.
[1st edition]
MEREDITH, Robert W. et al. Pseudogenization of the
tooth gene enamelysin (MMP20) in the common ancestor of extant baleen whales. Proceedings of the Royal
Society B: Biological Sciences, v. 278, n. 1708, p. 993-1002, 2010.
MEREDITH, Robert W. et al. Molecular decay of the
tooth gene enamelin (ENAM) mirrors the loss of enamel in the fossil record of
placental mammals. PLoS genetics, v. 5, n. 9, p.
e1000634, 2009.
SPRINGER, Mark S. et al. Inactivation of C4orf26 in
toothless placental mammals. Molecular phylogenetics and evolution, v. 95, p. 34-45, 2016.
PEREDO, Carlos Mauricio; PYENSON, Nicholas D.;
BOERSMA, Alexandra T. Decoupling tooth loss from the evolution of baleen in
whales. Frontiers in Marine Science, v. 4, p. 67, 2017.
PRITCHARD, G. B. On the discovery of a fossil whale in
the older Tertiaries of Torquay, Victoria. The Victorian Naturalist, v. 55, n. 9, p.
151-159, 1939.
FORDYCE, R. Ewan; MARX, FElix G. Mysticetes baring
their teeth: a new fossil whale, Mammalodon hakataramea, from the Southwest
Pacific. Memoirs of Museum Victoria, v. 74, p. 107-116, 2016.
EMLONG, Douglas. A new archaic cetacean from the
Oligocene of northwest Oregon. 1966.
BARNES, Lawrence G. et al. Classification and
distribution of Oligocene Aetiocetidae (Mammalia; Cetacea; Mysticeti) from
western North America and Japan. Island Arc, v. 3, n. 4, p.
392-431, 1994.
FITZGERALD, Erich MG. A bizarre new toothed mysticete
(Cetacea) from Australia and the early evolution of baleen whales. Proceedings of the Royal
Society B: Biological Sciences, v. 273, n. 1604, p. 2955-2963, 2006.
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