quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Evolução das baleias sem dentes - embriologia, genética e paleontologia

Vídeo sobre esse mesmo assunto, basta clicar aqui.

Os cetáceos viventes são divididos primariamente em dois grandes grupos (Marx et al. 2016): Odontoceti (cetáceos com dentes) e Mysticeti (cetáceos sem dentes). Como cetáceos são mamíferos, se esses dois grupos descendem de um ancestral comum, como sugere a descendência com modificação, então devemos encontrar alguns indícios de que os ancestrais dos modernos misticetos tinham dentes. É esse o caso?

Embora os misticetos adultos sejam edêntulos (sem dentes), fetos de pelo menos alguns misticetos apresentam “brotos de dentes” (Fig. 1), que não chegam a romper as gengivas e acabam sendo degradados (Deméré et al. 2008). Essa é uma indicação embriológica bastante interessante sobre o passado evolutivo dos misticetos. O próprio Darwin (1859) mencionou esse fato curioso a respeito do desenvolvimento das baleias em A Origem das Espécies.

Figura 1. Feto de baleia-comum (Balaenoptera physalus). Destaque: brotos de dentes. Imagem: Deméré et al. 2008. 


Não bastasse isso, Meredith et al. (2011) reportaram  evidência da pseudogenização de um gene (MMP20) envolvido no desenvolvimento dos dentes. Segundo esses autores, a inserção de um retroposon nesse gene corrompeu a informação por ele codificada, tendo implicações para a perda dos dentes. Veja bem: o mesmo retroposon se encontra no mesmo lugar, no mesmo (pseudo)gene, nas diferentes espécies (representativas de todos os gêneros viventes) analisadas por esse grupo de pesquisadores. Isso só pode significar que a inserção ocorreu no ancestral comum destes misticetos viventes. A propósito, já tratamos desse retroposon em vídeo. Adicionalmente, vários outros genes com atividade importante na formação dos dentes ainda existem no genoma dos misticetos, inclusive muitos sob forma de pseudogenes (Deméré et al. 2008; Meredith et al. 2009; Springer et al. 2015; ver também Peredo et al. 2017).

E o que a paleontologia tem a dizer sobre isso? Os gêneros Mammalodon (Pritchard 1939; Fordyce & Marx 2016), Aetiocetus (Emlong 1966; Barnes et al. 1995) e Janjucetus (Fitzgerald 2006) são todos exemplos de cetáceos da linhagem misticetos viventes (Marx et al. 2016, Fig. 4.8; ver a figura 2, abaixo). Ainda assim, todos eles possuíam dentes! 

Figura 2. Filogenia simplificada dos misticetos com dentes e edêntulos. Imagem: Marx et al. 2016. 


A linhagem dos misticetos não é definida exclusivamente pela perda de dentes. Os misticetos também tem como condição ancestral a presença de cristas basiocipitais (Marx et al. 2016, Fig. 3.4), entre outras características. Podemos ver esse tipo de crista no Janjucetus (Fitzgerald 2006, Fig. 1d). Veja a figura 3, abaixo.

Figura 3. A - crânio de uma balaeia-de-minke (Balaenoptera acutorostrata), vista ventral (Marx et al. 2016, Fig. 3.4); B - Porção direita do basicrânio de uma balaeia-de-minke (Balaenoptera acutorostrata), vista ventral (Marx et al. 2016, Fig. 3.9); C - Janjucetus hunderi, crnio em vista ventral (Fitzgerald 2006, Fig. 1d); D - Zoom na região de C onde fica o osso basiocipital (bo) e a crista basiocipital (boc).  


Diferentes linhas de pesquisa apontam para a mesma conclusão: os misticetos e odontocetos são parentes biológicos de fato. Evoluíram de um ancestral comum na boca do qual eu não gostaria de pôr a mão.

Para saber mais

MARX, Felix G.; LAMBERT, Olivier; UHEN, Mark D. Cetacean paleobiology. John Wiley & Sons, 2016.

DEMÉRÉ, Thomas A. et al. Morphological and molecular evidence for a stepwise evolutionary transition from teeth to baleen in mysticete whales. Systematic Biology, v. 57, n. 1, p. 15-37, 2008.

Darwin, C. R. 1859. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray. [1st edition]

MEREDITH, Robert W. et al. Pseudogenization of the tooth gene enamelysin (MMP20) in the common ancestor of extant baleen whales. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, v. 278, n. 1708, p. 993-1002, 2010.

MEREDITH, Robert W. et al. Molecular decay of the tooth gene enamelin (ENAM) mirrors the loss of enamel in the fossil record of placental mammals. PLoS genetics, v. 5, n. 9, p. e1000634, 2009.

SPRINGER, Mark S. et al. Inactivation of C4orf26 in toothless placental mammals. Molecular phylogenetics and evolution, v. 95, p. 34-45, 2016.

PEREDO, Carlos Mauricio; PYENSON, Nicholas D.; BOERSMA, Alexandra T. Decoupling tooth loss from the evolution of baleen in whales. Frontiers in Marine Science, v. 4, p. 67, 2017.

PRITCHARD, G. B. On the discovery of a fossil whale in the older Tertiaries of Torquay, Victoria. The Victorian Naturalist, v. 55, n. 9, p. 151-159, 1939.

FORDYCE, R. Ewan; MARX, FElix G. Mysticetes baring their teeth: a new fossil whale, Mammalodon hakataramea, from the Southwest Pacific. Memoirs of Museum Victoria, v. 74, p. 107-116, 2016.

EMLONG, Douglas. A new archaic cetacean from the Oligocene of northwest Oregon. 1966.

BARNES, Lawrence G. et al. Classification and distribution of Oligocene Aetiocetidae (Mammalia; Cetacea; Mysticeti) from western North America and Japan. Island Arc, v. 3, n. 4, p. 392-431, 1994.

FITZGERALD, Erich MG. A bizarre new toothed mysticete (Cetacea) from Australia and the early evolution of baleen whales. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, v. 273, n. 1604, p. 2955-2963, 2006.


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