segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A caixa-preta de Behe - uma resposta bioquímica à Complexidade Irredutível


EVOLUÇÃO EM LABORATÓRIO: O OPERON DE HALL 

A bactéria E. coli pode utilizar a lactose (Fig 1) para obter a energia necessária à manutenção das funções vitais. 

Figura 1. Molécula de lactose. Imagem disponível aqui.

Para isso, no entanto, a lactose precisa ser hidrolisada, resultando em galactose e glicose, as quais vão ser metabolizadas e utilizadas na produção de energia. A enzima que catalisa essa reação (Fig 2) é conhecida como beta-galactosidase ou lactase (Fig 3). 

Figura 2. Reação de clivagem da lactose pela enzima beta-galactosidase. Imagem disponível aqui



Figura 3. Enzima beta-galactosidase. Imagem disponível aqui


Especificando mais ainda, a capacidade da E. coli de metabolizar lactose depende de:

1 -  Um gene que produz beta-galactosidase. 
2 - Uma proteína permease que, como o nome sugere, de certa forma torna a membrana permeável à entrada de lactose, isto é, a permease age como um transportador. 
3 - Uma região reguladora tal que a produção dos produtos gênicos necessários para metabolizar a lactose só sejam produzidos quando lactose estiver presente, desta forma reduzindo o gasto energético. 

Um trecho de DNA no cromossomo bacteriano é a base genética dessas funções: o operon lac (Fig 4).


Figura 4. Representação esquemática do operon lac. lacZ é um gene que codifica a informação necessária para a produção da beta-galactosidase. Imagem disponível aqui. 



O funcionamento geral do operon lac está representado na Figura 5 (antes de prosseguir, leia a legenda) Na parte superior da imagem, temos a situação onde a lactose não está presente. Na ausência de lactose, o repressor se mantém ligado ao operador, criando uma barreira mecânica, impedindo a passagem da RNA polimerase. Portanto, não há transcrição gênica. Na porção inferior da imagem, a lactose está presente. A lactose se liga ao repressor, altera sua conformação e, assim, o repressor se desliga do operador, permitindo a passagem da RNA polimerase e, portanto, há transcrição dos genes necessário para lidar metabolicamente com a lactose. 


Figura 5. Representação esquemática do funcionamento do operon lac. 1 - RNA polimerase (amarelo); 2 - repressor (verde); 3 - promotor (laranja); 4 - operador (vermelho); 5 - lactose; 6 - lacZ; 7 - lacY; 8 - lacA. Imagem disponível aqui

Em 1982, Barry Hall, da Universidade de Rochester, condiu uma série de experimentos com desdobramentos interessantíssimos. Os experimentos começaram com uma cepa (strain DS4680A), que é também o resultado de experimentos de evolução dirigida. A obtenção desta cepa ocorreu da seguinte forma: bactérias cujo gene lacZ, que produz a beta-galactosidade, havia sido deletado, foram crescidas em meio contendo lactose. Sugiram mutantes que produziam um enzima com atividade de beta-galactosidase, embora ineficiente. Essa enzima foi chamada de ebg (evolved beta-galactosidase ou beta-galactosidase evoluída). De acordo bom Barry Hall, essa cepa não poderia crescer com sucesso em meio rico em lactose porque:

a - Não tinha um enzima capaz de hidrolisar a lactose eficientemente. Lembre-se que a ebg não é eficiente em sua atividade de hidrolisar lactose. 

b - Tinha um repressor ebg insuficientemente sensível à lactose como indutora. Isto é, a lactose não era capaz de fazer com que o repressor se desligasse do operador, o que impedia a transcriação. 

c - A síntese de permease não era induzida pela lactose. 

Por meio de mutação e seleção das variedades promissoras, Barry Hall conseguiu obter ao final dos experimentos uma cepa bacteriana plenamente capaz de utilizar lactose. Mais ainda, Hall mapeou as mutações que tornaram isso possível. Três mutações estão associadas à evolução dessa cepa. 

1 - Uma mutação no gene ebgA permitiu com que a enzima ebg fosse capaz de hidrolisar lactose eficientemente. 

2 - Uma mutação no gene ebgR tornou o repressor ebg hipersensitivo à lactose como indutor. Nesse estágio (agora com duas mutações), a cepa resultante era capaz de utilizar lactose, mas apenas se a síntese da permease de lactose fosse induzida pelo IPTG, um composto análogo à lactose. Embora claramente necessitasse do IPTG para se manter, essa cepa apresentava vantagens com relação à cepa anterior (ancestral, que tinha apenas a mutação 1), pois conseguia sobreviver mais tempo sem o IPTG do que a sua ancestral. 

3 - O último passo foi uma segunda mutação no gene egbA, resultando em uma enzima egb alterada capaz de converter a lactose em um indutor de lactose permease. Assim, essa cepa não precisava mais do IPTG para crescer no meio contendo lactose. 

De acordo com Barry Hall:

O operon ebg na cepa 5A1032 [nome da cepa portadora das 3 mutações descritas acima] está muito próximo de perfeitamente evoluído  para a utilização de  lactose: na ausência de lactose nem a enzima ebg e nem a lactose permease são sintetizadas acima dos níveis basais normais. Na presença de lactose, a síntese da enzima ebg é induzida e esta enzima, por sua vez, converte lactose em um indutor do operon lac e lactose permease é sintetizada. 

A solução para este problema evolutivo de adquirir uma nova função (utilização da lactose) é particularmente interessante, pois o operon ebg da cepa 5A1032 controla não só a sua própria expressão, mas a expressão de um outro operon requerido para a via de utilização de lactose funcionar. Estes resultados são uma verificação experimental da hipótese de Wilson de que a maioria das mudanças evolutivas significativas surge de mutações regulatórias que resultam em controle coordenado de conjuntos de genes que eram anteriormente regulados separadamente. 

Fantástico, não é mesmo?!

O OPERON  DE HALL ENQUANTO RESPOSTA AO DESAFIO DA COMPLEXIDADE IRREDUTÍVEL

Michael J. Behe, um dos principais defensores do Design Inteligente, propôs em seu livro Darwin's Black box, publicado pela primeira vez em 1996, que sistemas irredutivelmente complexos seriam um desafio à evolução darwiniana. Ele definiu complexidade irredutível assim:

Por irredutivelmente complexo quero dizer um único sistema composto de várias partes que interagem e contribuem para a função básica, e onde a remoção de qualquer uma das partes faz com que o sistema efetivamente cesse o funcionamento. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a funcionar pelo mesmo mecanismo) por pequenas modificações sucessivas de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo que falte uma parte é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se existe tal coisa, seria um poderoso desafio à evolução Darwiniana. [leia mais a respeito aqui]

Agora façamos a seguinte pergunta: será que esse sistema ebg obtido por Hall se encaixa na definição de um sistema irredutivelmente complexo? Os componentes desse sistema evoluído são três:

1 - Um repressor ebg hipersensível à lactose;
2 - Uma ebg capaz de hidrolisar lactose eficientemente; e
3 -  Uma reação enzimática que converte a lactose um indutor de lactose permease. 

Se um dos componentes não estiver presente, o sistema não funciona. Claramente é um sistema irredutivelmente complexo. Entretanto, esse sistema é resultado de evolução. Conclui-se, para a surpresa de poucos que já estudaram o assunto, que sistemas irredutivelmente complexos existem, sim, mas que isso de maneira alguma significa que eles não podem ser o resultado de processo evolutivo algum.

Com a palavra final, Barry Hall: 


As mutações descritas acima foram deliberadamente selecionadas em laboratório como modelo sobre a maneira como vias bioquímicas podem evoluir de tal maneira que estejam apropriadamente organizadas com respeito à célula e o seu ambiente. É razoável perguntar se este modelo pode ter qualquer relação com o mundo real, fora do laboratório. Se assumido que a seleção é estritamente para o uso da lactose, então uma vantagem de crescimento existe apenas quando todas as três mutações estão presentes simultaneamente. Qualquer uma das mutações sozinhas podem muito bem ser neutras (é improvável que alguma seja desvantajosa); mas mutações neutras de fato adentram nas populações por meio de eventos aleatórios, e são fixadas por um processo aleatório chamado de deriva genética. Em um background de uma mutação egbA ou egbR, uma segunda mutação no gene alternativo aumenta o fitness ligeiramente por meio do acréscimo na sobrevivência do mutante duplo na presença de lactose. A seleção poderia, assim, aumentar a frequência do duplo mutante na população. A terceira mutação, ocorrendo no duplo mutante como background, é claramente fortemente vantajosa. 
...

Nós podemos seguramente concluir que a evolução de vias bioquímicas bem integradas e organizadas podem envolver muitas mutações, nem todos precisando ser individualmente vantajosas. Da mesma forma, este estudo fornece um exemplo concreto de uma via na qual mutações neutras podem contribuir não apenas para a diversidade genética das populações, mas também contribuir com o potencial adaptativo dos organismos. 

Assista ao vídeo para fixar as ideias. 




Referências

Hall, B. G. (1982). Evolution of a regulated operon in the laboratory. Genetics101(3-4), 335-344.

Griffiths, A.J.F. et.al. Introdução à genética. 9. ed. Rio de Janeiro,Guanabara Koogan, 2009.


Behe, M. J. 2006. Darwin’s black box : the biochemical challenge to evolution (10th Anniversary Edition). Simon and Schuster, New York, NY.

???.  Evolution Before Our Eyes: Complex Mutations in Microbes Giving New Functions. <https://letterstocreationists.wordpress.com/2017/11/04/evolution-before-our-eyes-complex-mutations-in-microbes-giving-new-functions/>



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