quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Convergência de Evidências - Aves, Crocodilos e Tartarugas

Segundo a Teoria da Ancestralidade Comum Universal, todos os seres vivos estão relacionados de maneira genealógica. Se pudermos reconstruir o padrão deixado pelo processo de descendência com modificação, a Árvore Filogenética resultante deve ser uma única. Claro, no mundo real as coisas não são tão simples. Entretanto, conseguimos descobrir as relações genealógicas evolutivas com uma dada precisão, conforme a qualidade e quantidade dos dados disponíveis. Também podemos produzir cladogramas a partir de diferentes tipos de dados, como morfológicos e moleculares.

Em um primeiro momento, não há razão para suspeitar que dados morfológicos e moleculares devem, necessariamente, resultar no mesmo cladograma. Isto é, se você desconsiderar a Ancestralidade Comum.  Uma vez considerada esta teoria, a previsão é clara: as análises provenientes de dados de natureza diferente devem refletir a mesma imagem geral, ou seja, uma mesma filogenia. Aqui, examinaremos o caso particular das relações filogenéticas entre aves, crocodilos e tartarugas. Mas antes tratemos de uma objeção que poder ser levantada.  Como ela já foi respondida no post-tradução anterior, vou apenas repeti-la.

Uma objeção comum é a afirmação de que a anatomia não é independente da bioquímica e, portanto, os organismos anatomicamente similares são provavelmente bioquimicamente similares (por exemplo, em suas sequências moleculares) simplesmente por razões funcionais. De acordo com este argumento, então, devemos esperar que as filogenias baseadas em sequências moleculares sejam semelhantes às filogenias baseadas na morfologia, mesmo que os organismos não estejam relacionados por ancestralidade comum. Este argumento está muito errado. Não há uma razão biológica conhecida, além da descendência comum, para supor que morfologias similares devem ter bioquímica similar. Embora esta lógica possa parecer bastante razoável inicialmente, toda a biologia molecular refuta essa correlação de "senso comum". Em geral, DNA e bioquímica semelhantes implicam morfologia e função semelhantes, mas o inverso não é verdadeiro — morfologia e a função semelhantes não são necessariamente o resultado de DNA ou bioquímica semelhantes. O motivo é facilmente compreendido uma vez explicado; muitas sequências de DNA ou estruturas bioquímicas muito diferentes podem resultar nas mesmas funções e nas mesmas morfologias...
Agora sim, prossigamos com o assunto.

Em 1999, Hedges e Poling concluíram A Molecular Phylogeny of Reptiles [Uma Filogenia Molecular dos Répteis] com as seguintes palavras:

Estes resultados destacam uma discordância significativa entre as estimativas morfológicas e moleculares da filogenia para um grupo importante de organismos. O padrão consistente de uma relação tartaruga-crocodilianos em genes nucleares independentes contrasta com a filogenia tradicional dos vertebrados amniotas. Determinar como os muitos grupos de répteis extintos do Paleozoico tardio e do Mesozoico precoce se encaixam nesta filogenia molecular será um desafio para os paleontólogos.  

Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras... Vejamos a figura 1, extraída do estudo.

Figura 1. Relação entre os principais grupos de répteis vivos. Em (A) temos a filogenia clássica, baseada na morfologia e no registro fóssil. Em (B), a filogenia de Máxima Verossimilhança a partir de sequências combinadas de 11 proteínas nucleares. (C) é uma filogenia consensual de sequências combinadas a partir de 4 genes codificadores de proteínas nucleares.

Coisas importantes a se ressaltar: nenhuma das análises posicionou nenhum réptil de tal maneira que ele fosse mais relacionado com algum mamífero do que com outros répteis. No cladograma  (B), dos 945 cladogramas possíveis, a análise nos forneceu um que ainda nos permite concluir que aves estão mais próximas filogeneticamente de crocodilos e tartarugas, a mesma conclusão que podemos chegar com base em (A). (C) nos conta uma história similar: dos 10,395 cladogramas possíveis, o cladograma obtido indica que aves, crocodilos e tartarugas estão intimamente relacionados. Além disso, a politomia em (C) aponta para uma fragilidade no conjunto de dados, seja quantidade ou qualidade. 

O conflito de interesse é que, de acordo com dados morfológicos, crocodilos e aves deveriam se relacionar conforme (A), pois ambos são arcossauros. Por outro lado, os dados moleculares sugerem, em (B), que crocodilos se relacionam mais fortemente com tartarugas do que com aves. Este é o embate. Em 1999, suponha, criacionistas bradaram felizes: "a evolução produz resultados incongruentes, os fósseis apontam para uma direção, enquanto a morfologia aponta para outro". 

Infelizmente (para os criacionistas), a ciência não para. Tínhamos razões demais para agrupar crocodilos e aves no mesmo grupo, com a exclusão das tartarugas. Algo deveria estar errado... Bem, talvez não errado, mas incompleto.

Quando um time de pesquisadores publicou, em 2012, Pylogenomic analyses support the position of turtles as the sister group of birds and crocodiles (Archosauria) [Análise filogenômica suportam a posição das tartarugas como grupo irmão de aves e crocodilos (Archosauria)], foi ressaltado que:

As causas dos sinais conflitantes e / ou a falta de resolução obtida na maioria dos estudos foram atribuídas ao número limitado de genes considerados, pobre amostragem de táxons, heterogeneidade da taxa de substituição entre os genes e entre os táxons e saturação ou seleção ocorrendo em alguns dos marcadores. Além disso, os testes estatísticos realizados para avaliar topologias alternativas baseadas nestes conjuntos de dados iniciais de sequência molecular geralmente não alcançaram significância, provavelmente por causa do número reduzido de genes incluídos, mas também possivelmente devido à heterogeneidade nas árvores de genes.

Este grupo usou um conjunto filogenômico de dados sobre 248 genes nucleares em 16 táxons vertebrados para resolver qual a posição filogenética das tartarugas (o que implica na posição filogenética das aves). Na seção de resultados, eles relataram que o seu "conjunto de dados filogenômicos fornece forte apoio à posição filogenética das tartarugas como grupo-irmão de Archosauria". Isto é, neste estudo aves e crocodilos foram colocados no mesmo grupo, como previa a análise morfológica e o registro fóssil. Veja a figura 2, extraída deste estudo. 
Figura 2. Relações filogenéticas dos amniotas inferidas das análises do conjunto de dados com 248 genes. (a) Topologia Bayesiana de consenso obtida da análise de um conjunto de dados de aminoácidos. (b) Topologia Bayesiana de consenso obtida pela análise completa do conjunto de dados de nucleotídeos. Note que (a) e (b) diferem apenas na posição de Python. É uma incongruência, é claro. Mas lembre-se que com 16 táxons é possível construir 6,190,283,353,629,375 cladogramas. 

Nas conclusões, os autores afirmam:
De fato, nossas análises mostram que a hipótese de uma relação de grupo-irmão entre tartarugas e crocodilianos é provavelmente um artefato de reconstrução filogenética relacionado à saturação de substituição. Quando este artefato é levado em consideração usando os melhores modelos de evolução de sequências atualmente disponíveis, encontramos um forte apoio em todos os casos para identificar tartarugas como um grupo-irmão para Archosauria, com exclusão de qualquer hipótese filogenética alternativa. 

Eu poderia parar por aqui. Mas vejamos alguns resultados interessantes obtidos pelos pesquisadores que, em 2014, publicaram Three crocodilian genomes reveal ancestral patterns of evolution among archosaurs [Três genomas crocodilianos revelam padrões ancestrais de evolução entre arcossauros]. Neste trabalho, foram geradas duas filogenias, vistas na figuras 3 e 4.



Figura 3. Filogenia dos amniotas inferida com base na análise de máxima verossimilhança de loci ancorados a UCE [Ultraconserved Elements, ou Elementos Ultraconservados] particionado. Todos os ramos receberam suporte com um bootstrap de 100% (clique aqui e/ou aqui para entender o significado deste valor). Observe que, assim como na figura 2, os crocodilos estão mais relacionados com as aves e o conjunto (aves + crocodilos) está diretamente relacionado com as tartarugas.





 Figura 4. Filogenias produzida por meio da análise de 337 sequências de genes ortólogos de cópia única. Conforme os autores "a análise filogenética de um alinhamento concatenado desses genes produziu um árvore congruente com a filogenia baseada em UCE" (figura 3) e também congruente com "outras filogenias de amniotas" (figura 2). Antes que os criacionistas direcionem o olhar somente para a direita dessa imagem, devo dizer que os autores deixaram claro, nos Materiais Suplementares, que a filogenia mais suportada pelos dados é aquela mais à esquerda, confirmando o resultado representado na figura 3. A isto soma-se o fato de que esta "topologia também foi a mais suportada por árvores de genes individuais".

Referências

Hedges SB, Poling LL. A molecular phylogeny of reptiles. Science. 1999;283:998–1001. doi: 10.1126/science.283.5404.998. [PubMed] [Cross Ref]

Chiari Y, Cahais V, Galtier N, Delsuc F. Phylogenomic analyses support the position of turtles as the sister group of birds and crocodiles (Archosauria) BMC Biol. 2012;10:65. [PMC free article] [PubMed]

R. E. Green, E. L. Braun, J. Armstrong, D. Earl, N. Nguyen, G. Hickey, M. W. Vandewege, J. A. St. John, S. Capella-Gutierrez, T. A. Castoe, C. Kern, M. K. Fujita, J. C. Opazo, J. Jurka, K. K. Kojima, J. Caballero, R. M. Hubley, A. F. Smit, R. N. Platt, C. A. Lavoie, M. P. Ramakodi, J. W. Finger, A. Suh, S. R. Isberg, L. Miles, A. Y. Chong, W. Jaratlerdsiri, J. Gongora, C. Moran, A. Iriarte, J. McCormack, S. C. Burgess, S. V. Edwards, E. Lyons, C. Williams, M. Breen, J. T. Howard, C. R. Gresham, D. G. Peterson, J. Schmitz, D. D. Pollock, D. Haussler, E. W. Triplett, G. Zhang, N. Irie, E. D. Jarvis, C. A. Brochu, C. J. Schmidt, F. M. McCarthy, B. C. Faircloth, F. G. Hoffmann, T. C. Glenn, T. Gabaldon, B. Paten, D. A. Ray. Three crocodilian genomes reveal ancestral patterns of evolution among archosaurs. Science, 2014; 346 (6215): 1254449 DOI: 10.1126/science.1254449 

2 comentários:

  1. Show de mais o artigo. Só vou ressaltar uma observação, a palavra 'examinaremos' no segundo parágrafo, está com dois m's.

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    1. Obrigado, Vítor. Vou corrigir o erro. Muito bom você ter avisado. = )

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