Se eu te mostrasse a imagem acima, e perguntasse:
- Você reconhece os bichos presentes nela?
Com quase toda certeza, você diria que sim e, provavelmente, saberia seus nomes também. Agora se eu te perguntasse o que faz desses seres vivos "animais", você teria alguma dificuldade em responder...
Fato é que, apesar da grande familiaridade com esse grupo (afinal, nossa própria espécie pertence a ele), pouco conhecimento é difundido sobre ele como um todo, apesar de hoje já sabermos bastante sobre nossa humilde origem e evolução.
Afinal, quem são nossos parentes não-animais mais próximos? De onde viemos? Como, a partir de um único ancestral, tantas formas diferentes vieram a existir? Essas são perguntas intrigantes e que eu pretendo tentar lançar um pouco de luz para nossos leitores, em mais uma série de textos aqui do blog.
AVISO IMPORTANTE
AVISO IMPORTANTE
Antes de começarmos a serie, é praticamente obrigatória a leitura de alguns textos aqui do blog, em especial os da série "Como Organizamos os Seres Vivos?" (a menos que você já domine conceitos de sistemática filogenética, é claro). Essa série dará uma base necessária para entendermos um básico de cladística, e assim, compreender por completo os textos dessa série que está começando.
Eu sei, eu sei... "mas são muitos textos" ; "são grandes, você fala muito"; "quando sai o filme?".
Sabendo que nem todos têm tempo pra ler toda a série eu vou dar uma colher de chá e indicar 2 deles, que acredito que sejam os mais relevantes. Os textos mais importantes, na minha visão, são os de número 2 e 3, por hora. Vocês podem ler eles clicando sobre os números.
Agora que já foram avisados e já leram os textos (ao menos eu espero que sim), vamos ao reino animal!
A GRANDE ÁRVORE DA VIDA
Está completamente fora do escopo dessa série falar sobre origem da vida, porém é necessário ao menos um contexto filogenético global para compreendermos nossa posição no meio de tantos galhos distintos do mundo vivo. Para isso, teremos que ir ao limite da árvore da vida, até os grupos taxonômicos mais abrangentes e inclusivos: os domínios.
De forma tradicional, temos 3 domínios válidos: Bacteria, Archaea e Eukarya, onde Archaea é grupo-irmão dos Eukarya. E claro, todas as 3 linhagens compartilhando um ancestral comum, que chamamos de LUCA (o ultimo ancestral comum universal).(1)
Adaptado de Woese et al (1). Disponível aqui. |
Porém, alguns trabalhos mais recentes têm mostrado que, na verdade, só haveriam dois domínios: Bacteria e Archaea, sendo Eukarya uma linhagem dentro de Archaea. Desta forma "Archaea" tradicional passa a ser parafilético, excluindo um grupo de descendentes (que seria a linhagem eucariota). Porém, ainda há trabalhos recentes que reconstroem a hipótese de Woese. Essa é uma discussão complexa, recente e ainda não há um consenso na academia sobre o tópico.(2)(3)
EUKARYA
Apesar de saber que o grande grupo dos eucariotos, linhagem de seres que possuem diversas organelas diferenciadas e um envoltório nuclear que porta o seu material genético, é possivelmente um ramo dentro das Archaea, ainda há muitas lacunas sobre sua origem e evolução (muito mais do que sobre os animais). Apesar disso, bons avanços têm sido feitos em termos de organização interna do grupo.
A organização dos eucariotos mudou muito desde as primeiras classificações, que consideravam 4 reinos: Reino Fungi (o grupo dos fungos), Reino Plantae (o grupo das plantas), Reino Protista (algas e protozoários) e o Reino Animalia. As relações entre esses grupos permaneceu por muito tempo incerta.
Com as filogenias moleculares, esse panorama foi completamente revirado e hoje temos 5 grandes grupos dentro de Eukarya: os Excavata, o super grupo SAR (juntando os grupos Alveolata, Rhizaria e Stramenopiles), Archaeplastida (inclui plantas terrestres, algas verdes e vermelhas), Amebozoa e Opisthokonta (grupo que inclui os animais).(4)
Observe abaixo a nova estrutura dos ramos de Eukarya.
Muitos dos grupos antes considerados naturais, foram descobertos como sendo parafiléticos ou polifiléticos. Hoje sabemos por exemplo a denominação "protozoário" é completamente artificial, sendo um grande compilado de praticamente tudo o que é unicelular e não fotossintetizante em Eukarya.
Da mesma forma, a nomenclatura popular "algas", que costuma ser usada para se referir aos organismos eucariotos fotossintetizantes, uni ou pluricelulares, excluindo apenas as plantas terrestres, hoje também é considerada polifilética.
Alguns grupos tradicionais permanecem como naturais:
- Plantae: hoje é chamado de Embryophyta, e a denominação "planta", antes usada estritamente para a linhagem de plantas terrestres, hoje está ligada a um grupo mais abrangente chamado Viridiplantae, que inclui "algas verdes" e as plantas terrestres.
- Fungi: o grupo sofreu poucas alterações em termos de nomenclatura, também permaneceu monofilético e hoje se sabe estar mais relacionado aos animais que à outros grupos tradicionais.
- Animalia: apesar do nome ter caído em desuso na nomenclatura cientifica, o grupo permanece monofilético e é chamado de Metazoa.
Retornando à arvore dos Eukarya, vamos dar um zoom em um grupo particular, o dos Opisthokonta (em Vermelho). Esse grupo se caracteriza pela presença de células uniflageladas, sendo o flagelo localizado na porção posterior da célula. Além disso, o grupo é amplamente suportado por análises moleculares e inúmeros caracteres bioquímicos. A idade do grupo foi estimada no trabalho de Tedersoo et al. publicado no ano passado, como sendo entre 1.2 e 1.3 bilhões de anos. (5)(6)
Filogenia adaptada de Torruella et al. (7) |
Nessa filogenia podemos ver com mais detalhes os clados próximos a Metazoa, sendo que seu grupo-irmão é o pequeno (e pouco conhecido pelo público leigo) grupo dos coanoflagelados.
NOSSOS IRMÃOS UNICELULARES
Os Choanoflagellata são um grupo de seres vivos aquáticos, com representantes marinhos e de água doce. Há cerca de 600 espécies descritas, número muito baixo, se comparado aos mais de 1 milhão de animais.
Sei que pode parecer estranho pensar que dentre tantas linhagens multicelulares (vários grupos de algas, plantas, fungos) um singelo grupo de seres unicelulares, alguns até vivendo em pequenas colônias, seria irmão dos animais. Mas é isso o que todas as evidencias têm nos mostrado. (7)(8)
PS: Neste texto não entraremos de fato no tópico de origem da multicelularidade em Metazoa, pois o próximo texto da serie será dedicado quase que exclusivamente à isso, afinal essa é uma das principais sinapomorfias do nosso grupo e foi com certeza crucial para a evolução dos animais.
Por hora, trarei algumas evidencias que mostram que nós animais e os coanoflagelados somos de fato muito próximos.
Por hora, trarei algumas evidencias que mostram que nós animais e os coanoflagelados somos de fato muito próximos.
AS CÉLULAS DE COLARINHO
Além das evidências moleculares, como o trabalho já apresentado anteriormente, há uma destacada evidência morfológica que nos aproxima desses pequenos seres vivos.
Um coanoflagelado possui uma estrutura celular muito bem definida; basicamente, é uma célula com dois polos distintos. Em um deles há um flagelo único, que é usado para atrair nutrientes para o corpo celular, e no outro uma porção arredondada, circundada por um colarinho com microvilosidades, uma região especializada em fagocitar as partículas de nutrientes.(8)
Observe na imagem abaixo como ele se parece:
À esquerda, detalhe de um coanoflagelado em microscopia eletrônica de varreduras, imagem aqui. À direita uma pequena colônia de coanoflgelados da espécie Codosiga botrytis, imagem aqui. |
O que é bastante curioso, é que essas células são muito parecidas em sua organização com um tipo de célula presente em Poríferos, chamada coanócito. Observe uma comparação entre um coanoflagelado e essa célula de uma esponja do mar:
Imagens aqui e aqui. |
Uma organização muito parecida com essa também foi encontrada em células da larva de um animal vermiforme do clado Nemertea (que é relativamente bem derivado em Metazoa) o que pode indicar um caso de reversão à esse plano celular ancestral.(9)
Essa organização peculiar, já sabemos hoje, ser única entre os seres vivos e muitas pesquisas apontam para uma homologia entre diversas estruturas dessas células.(8)(9)(10)
Vale lembrar também que os Poríferos são, desde as primeiras filogenias feitas para os Metazoários, considerados o primeiro (ou um dos primeiros) grupos a se diversificar. Indicando que o mais provável é que essa linhagem tenha retido essa estrutura celular que estava presente no ancestral comum entre Metazoários e coanoflagelados. Isso reforça a ideia de parentesco, nos fornecendo uma base filogenética para sustentar os Choanoflagellata como grupo-irmão dos animais.
Por hoje é só pessoal. No próximo texto dessa série falaremos um pouco sobre as características gerais dos Metazoa e um pouco sobre sua origem e evolução.
Agora o Coelho pré-Cambriano também tem um canal no youtube! O João tem feito um trabalho demais por lá e se você gosta dos nossos textos, com certeza vai gostar também dos vídeos. Para acessar o canal só clicar aqui. Abraço e até a próxima!
REFERÊNCIAS
1 - Woese, Carl R.; Kandler, O; Wheelis, M (1990). "Towards a natural system of organisms: proposal for the domains Archaea, Bacteria, and Eucarya" (PDF). Proc Natl Acad Sci USA. 87 (12): 4576–9.
2 - Hug LA, Baker BJ, Anantharaman K, Brown CT, Probst AJ, Castelle CJ, Butterfield CN, Hernsdorf AW, Amano Y, Ise K, Suzuki Y, Dudek N, Relman DA, Finstad KM, Amundson R, Thomas BC, Banfield JF (April 2016). "A new view of the tree of life". Nature Microbiology. 1(5): 16048.
3 - Da Cunha V, Gaia M, Gadelle D, Nasir A, Forterre P (June 2017). "Lokiarchaea are close relatives of Euryarchaeota, not bridging the gap between prokaryotes and eukaryotes". PLoS Genetics. 13 (6)
4 - Adl SM, Simpson AG, Lane CE, Lukeš J, Bass D, Bowser SS, et al. (September 2012). "The revised classification of eukaryotes" (PDF). The Journal of Eukaryotic Microbiology. 59 (5): 429–93. doi:10.1111/j.1550-7408.2012.00644.x
5- Adl, Sina M.; Bass, David; Lane, Christopher E.; Lukeš, Julius; Schoch, Conrad L.; Smirnov, Alexey; Agatha, Sabine; Berney, Cedric; Brown, Matthew W. (2018-09-26). "Revisions to the Classification, Nomenclature, and Diversity of Eukaryotes". Journal of Eukaryotic Microbiology. doi:10.1111/jeu.12691. ISSN 1066-5234.
6 - Tedersoo, Leho; Sánchez-Ramírez, Santiago; Kõljalg, Urmas; Bahram, Mohammad; Döring, Markus; Schigel, Dmitry; May, Tom; Ryberg, Martin; Abarenkov, Kessy (2018). "High-level classification of the Fungi and a tool for evolutionary ecological analyses". Fungal Diversity. 90 (1): 135–159.
7 - Torruella, Guifré, et al. "Phylogenetic relationships within the Opisthokonta based on phylogenomic analyses of conserved single-copy protein domains." Molecular biology and evolution29.2 (2011): 531-544.
8 - King, N.; Westbrook, M.J.; Young, S.L.; Kuo, A.; Abedin, M.; Chapman, J.; Fairclough, S.; Hellsten, U.; Isogai, Y.; Letunic, I.; et al. (February 14, 2008). "The genome of the choanoflagellate Monosiga brevicollis and the origin of metazoans". Nature. 451(7180): 783–8. doi:10.1038/nature06617
7 - Torruella, Guifré, et al. "Phylogenetic relationships within the Opisthokonta based on phylogenomic analyses of conserved single-copy protein domains." Molecular biology and evolution29.2 (2011): 531-544.
8 - King, N.; Westbrook, M.J.; Young, S.L.; Kuo, A.; Abedin, M.; Chapman, J.; Fairclough, S.; Hellsten, U.; Isogai, Y.; Letunic, I.; et al. (February 14, 2008). "The genome of the choanoflagellate Monosiga brevicollis and the origin of metazoans". Nature. 451(7180): 783–8. doi:10.1038/nature06617
9 - Cantell, Carl-Erik; Franzén, Åke; Sensenbaugh, Terry (October 1982). "Ultrastructure of multiciliated collar cells in the pilidium larva of Lineus bilineatus (Nemertini)". Zoomorphology. 101 (1): 1–15. doi:10.1007/BF00312027.
10 - Jasmine L. Mah, Karen K. Christensen‐Dalsgaard, Sally P. Leys "Choanoflagellate and choanocyte collar‐flagellar systems and the assumption of homology", 2014, https://doi.org/10.1111/ede.12060
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